Você já deve ter se deparado com o vídeo de uma esposa-troféu na internet. Elas vão à academia, ao pilates, almoçam fora, fazem viagens, compras, assistem séries no meio da tarde. Acessam procedimentos estéticos e investem bastante tempo em salões de beleza, em horários que a maioria das pessoas está presa ao trabalho. A rotina de luxo e conforto evidencia o acordo desse tipo de relação: os homens vão atrás do dinheiro, enquanto elas ficam em casa, gerenciando uma rotina de descanso e beleza – não são donas de casa. Mais tarde, elas são exibidas pelos parceiros como um troféu.
Parte da rotina de ser uma esposa-troféu é compartilhada por elas em redes sociais, principalmente no Tik Tok. Em um desses vídeos, uma jovem vestida para fazer exercícios físicos aparece junto ao marido e mostra como será seu dia. “14:00, indo tomar um cafezinho no Starbucks, para depois ir à academia. Ele vai trabalhar. Venci”, comenta. A aparente vida perfeita e confortável faz sucesso entre meninas e mulheres.
Entre os quase dois mil comentários que lotam a postagem, uma das seguidoras pede por dicas: “Me ajuda?” A demanda é respondida em conteúdos com o objetivo de ensinar como se tornar uma esposa-troféu. As sugestões são cuidar do corpo, ler livros, saber o que está acontecendo no mundo e ser inteligente. “Porque homem rico não gosta de mulher fútil”, ensina uma delas.
Ainda que essa seja vendida como uma possibilidade para todas, não é. Para ser uma esposa-troféu, a mulher precisa ser lida socialmente como uma conquista. Alguém que possa mostrar, com a sua imagem, o poder e a influência desse homem. É nesse lugar que racismo, gordofobia e etarismo se cruzam. Símbolos de status, esposas-troféu são – em sua maioria – mulheres brancas, magras e jovens. E devem fazer de tudo para se manter assim. Expectativas que as afastam de direitos básicos como o de envelhecer.
Sem autonomia real
A maioria delas fala da condição com orgulho, reforçando que estão nesse lugar por uma escolha. Quando são criticadas, muitas usam o feminismo como argumento. Dizem que a luta histórica das mulheres existe para que cada uma tenha a liberdade de fazer o que quiser da própria vida. Justificativa válida, mas que traz pontos cegos.
Nesse tipo de relação há desigualdade de poder. Uma mulher que é esposa-troféu não pode decidir em quais dias da semana vai querer ser exibida ou apresentada para os amigos do trabalho, por exemplo. Ela até pode escolher entrar em uma relação assim, mas não significa que ela tem total autonomia quando está em uma.
Não é possível dizer que esposas-troféu sofrem mais violência que mulheres em situação diferente. Mas quanto menos autonomia uma mulher tem sobre a própria vida e o próprio corpo, mais vulnerável ela está. Casamentos estabelecidos nessa configuração, em que a imagem dela é parte fundante do acordo, as deixa em uma posição instável.
É sempre esse olhar masculino que vai decidir se ela ainda pode ocupar esse papel ou não. “Por isso que o feminismo discutiu a instituição do casamento e ter as filhas nas heranças. Isso passa por [mulheres terem] decisão, autonomia e dinheiro,” explica Marília Moschkovich, professora do departamento de sociologia na Universidade de São Paulo (USP).
Avanço do conservadorismo
O avanço do conservadorismo e, por consequência, o ataque às pautas feministas estão intimamente ligados ao crescimento desse conteúdo nas redes sociais. Popular entre pessoas da geração Z e millenium, esse movimento vira desejo de consumo e de sucesso, na mesma velocidade em que pautas caras para o feminismo começam a ser perseguidas – principalmente as de sexualidade e identidade de gênero nas escolas.
“A pessoa que tem 25 anos hoje, nos últimos dez anos tinha 15, e cresceu num ambiente de bastante conservadorismo. Tudo o que a gente conquistou por políticas públicas, depois de 2010, foi derrubado”, explica a pesquisadora Marília Moschkovich.
Em dezembro de 2021, Caucaia, um município do estado do Ceará, aprovou uma lei que proíbe a discussão de “assuntos relacionados à sexualidade” e “ideologia de gênero” nas escolas municipais. A Human Rights Watch, organização que pesquisa direitos humanos, verificou que, em 2022, pelo menos 21 leis que proíbem direta ou indiretamente a educação sobre gênero e sexualidade continuavam em vigor no Brasil (1 estadual e 20 municipais).
Em alguns municípios projetos de lei do tipo não foram para frente, mas a repressão violenta no ambiente escolar teve efeito. “Nós víamos filmes e fazíamos debates e discussões em sala de aula [sobre gênero e sexualidade]. Agora tenho medo e tomo muito cuidado“, contou uma professora do ensino médio da rede pública de Londrina, no Paraná. A fala faz parte do relatório feito pelo Human Rights Watch, divulgado em 2022.
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Dependência financeira
Quando se tornam esposa-troféu muitas mulheres abandonam a carreira e o mercado de trabalho, algumas mantêm apenas suas ocupações como influenciadoras. Em um post, uma delas diz: “dois diplomas na gaveta, porque agora sou esposa-troféu, que vai para a academia às 14:00 e depois faz compras no shopping”. Quem opta por ocupar esse lugar considera que ter as contas pagas pelos parceiros é uma forma de enaltecimento.
Entre os argumentos a favor dessa decisão, existe a ideia de que ser uma esposa-troféu é uma espécie de reparação histórica. Uma compensação pelo trabalho invisível que as mulheres executam há séculos. Se antes elas eram responsáveis por executar os serviços domésticos e cuidar do casamento, agora podem só cuidar de si. Nesse raciocínio, ser uma esposa-troféu seria uma espécie de libertação e emancipação.
A questão é que a forma com que essa mulher é vista não mudou. Ela possivelmente não será amparada quando romper a relação e será julgada por ter escolhido ser uma esposa-troféu caso seja abandonada. “Vivemos numa sociedade que não repensou a forma que enxerga a mulher, ela ainda está num lugar subalterno”, analisa a educadora financeira Amanda Dias.
Ser dependente financeiramente traz perigos adicionais. Tanto para quem se vê desamparada depois de romper a relação ou ser deixada, quanto para quem se mantém em relacionamentos abusivos porque não tem renda própria. Uma pesquisa do DataSenado mostrou que 46% das mulheres não romperam suas relações por serem dependentes financeiramente de seus companheiros.
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A farsa do cartão ilimitado
As esposas-troféu falam que possuem um cartão de crédito ilimitado, o que lhes permitiria comprar e usar o que quiserem e como quiserem. Mas o método esconde uma forma de controle. O parceiro terá sempre acesso a toda e qualquer movimentação financeira que ela fizer, assim como pode bloquear o cartão ou tirá-lo quando bem entender.
Mulheres que estão ou pretendem entrar em uma relação nesse formato deveriam pedir a quantia em dinheiro. Isso não só para manter a privacidade, mas para fazer uma poupança, caso precise. “O ideal, nesse sentido, é que o dinheiro seja colocado em uma conta que o parceiro não possa supervisionar,” sugere a educadora financeira.
A romantização e glamourização desse tipo de acordo também distrai mulheres para coisas que poderiam protegê-las no futuro. Casar no papel sem prestar atenção no tipo de acordo que está sendo feito e não negociar o regime de divisão de bens são erros comuns. “Essa mulher agrega valor ocupacional e simbólico na vida desse parceiro e precisa de garantias e segurança financeira nesse processo”, explica Amanda Dias.
Focar nos benefícios do presente, sem pensar a longo prazo, é também uma estratégia para manter as mulheres reféns nesse papel. Uma vez desinformadas, elas correm o risco de não conseguirem reivindicar os seus direitos se forem descartadas ao não servirem mais para serem exibidas.