logo AzMina

O sonho nas rimas: o que fala a nova geração do rap feminino

A nova geração canta autoestima, liberdade sexual, ostentação, raça e gênero

Nós fazemos parte do Trust Project

e

“Espero que vocês entendam, vida, ahn

Adoro as músicas, mas preciso provar meu ponto

Eu tenho o rosto, tenho o corpo e eu tenho a rima

Se eu tivesse um pau, os bofes iam tá mamando”

Em 4 minutos e 51 segundos do seu novo rap “Espero Que Entendam”, MC Ebony expõe sem medo a atitude machista de ignorar o que é produzido por artistas mulheres. A cantora do Rio de Janeiro é hoje destaque na cena Hip Hop, com seus 20 anos de idade. Na faixa diss (termo traduzido por música de insatisfação), lançada recentemente, Ebony critica rimadores famosos, dando nomes, recados, servindo poder e treta.  Dê o play nesse hino e siga aqui

Conheça mais aqui algumas artistas da nova cena do rap

“Não vou deixar com que homens limitem qual tamanho mulheres podem chegar
E o que que elas podem ou não fazer, entendeu? E a todos
E daqui, e daqui a dez anos vão entender, mano, é isso que é foda
Daqui: Ah, tá, porque não sei o que, entendeu?
Pô, eu quero dar uma casa pra minha mãe, viado
Foda-se”
 

A falta de visibilidade feminina, que Ebony criticou na letra acima, não é de hoje. Infelizmente, ao longo dos últimos 40 anos de Hip Hop no Brasil, as mulheres sempre tiveram dificuldades de se destacarem comercialmente. Mas, na última década, artistas pretas de diferentes partes do Brasil estão tomando seus espaços no rap. E as MCs da nova cena falam sobre liberdade sexual, conquistas financeiras e fazem uma egotrip (viagem ao ego) própria delas. Nesta reportagem, AzMina se propõe a entender de onde vêm esses discursos e qual o poder de tudo isso em meio a representatividade que atinge a outra ponta do fone de ouvido: o público.

Presentes desde sempre

Drik Barbosa, rapper da zona sul de São Paulo, canta em “Sonhando” como chegou ao lugar que ocupa hoje. Ela faz parte de uma geração anterior à Ebony, começou nos anos 2000, e faz questão de ressaltar suas conquistas artísticas, financeiras e profissionais, agradecendo às rappers nas quais pôde se espelhar.

“Eu agradeço por tá aqui

Valeu Gizza, Dina Di, Sharylaine, Rubia MC

Kmilla CDD, Stefani, Cris MC

Atitude feminina, salve Negra Li”

“Eu brinco com meus amigos que a Drik Barbosa é a minha Beyoncé do rap. Pra mim tudo que ela entrega é excelente. Ela me agregou e me acolheu como amiga”, disse a cantora de rap Cristal, do Rio Grande do Sul.  

A pesquisadora de rap Nerie Bento afirma que as mulheres e pessoas transfemininas estão presentes na construção dessa cultura desde o marco zero. “Muitas foram invisibilizadas e, por questões que atravessam raça, gênero e classe, tiveram que deixar os seus corres.”

Nos microfones, o contexto social e à proximidade com o movimento negro, faziam com que as composições entoadas pelas rappers tivessem caráter de protesto. Nerie conta que naquele momento eram poucas as pessoas brancas no Hip Hop e, assim como o Racionais MCs, “as rappers também estavam falando da violência e da pauta racial, mas a partir do atravessamento de gênero”.

Liberdade sexual nas letras

Hoje, jovens negras de várias partes do Brasil, como Tasha e Tracie, Slipmami, Ebony, Duquesa, Cristal, N.I.N.A, MC Luanna e Monna Brutal, dão novos significados às canções. Em uma análise d’AzMina baseada nas 10 músicas mais ouvidas dessas oito artistas/dupla até outubro de 2023, notamos que o assunto mais recorrente é a liberdade sexual (20,3% das expressões usadas). Todas são baddies (rebeldes), mas algumas são mais voltadas para a questão igualitária de “tomar o lugar” que as pertence. Existem alguns momentos romântico – “Ainda sou tua menina/E se eu ainda tenho efeito“, canta NINA -, mas logo elas voltam a sentir ódio, como na letra de Duquesa: “Como eu consigo odiar o que eu amo”.

O sexo está presente na obra da maioria das MCs, em especial no trabalho das cariocas N.I.N.A e Slipmami, e é tratado de forma explícita. Um exemplo está em “Big Momma Freestyle” de Slipmami.

“Eu tenho um tipo

Eu gosto de cara sacana, que me chupa igual uma manga

Me fode igual uma puta safada e, no final do dia, ele não explana.” 

Elemento característico do gênero rap, a egotrip se tornou mais recorrente nas letras das mulheres e pessoas transfemininas da cena na última década. O estilo de escrita vindo das batalhas de rima se caracteriza pela narrativa em primeira pessoa e de autoexaltação, mas ganha contornos próprios no caso delas, inclusive um tom imperativo. É comum que a egotrip e a liberdade sexual se misturem nas músicas ao criticar a superioridade masculina, como na colaboração de Duquesa e MC Luanna em “99 Problemas”.

“No RJ tem pica, em SP tem pica (aham)

Em BH tem pica, sempre vai ter pica (aham)

Noventa e nove problemas de uma negra bonita

Pica não tá na lista, pica não tá na lista”

Para a pesquisadora Nerie, há um caráter feminista nas composições ao demarcar a posição de poder das artistas. “Elas também dizem: olha, agora não é a vez de vocês, agora é a nossa vez, a gente é foda.”

Monna Brutal usa a arte como ferramenta de criação de novos locais para as pessoas na sociedade. “Ser uma pessoa de periferia influencia demais, se eu não morasse na quebrada talvez o meu relacionamento com Hip Hop seria outro”, explicou a MC. Em resposta ao patriarcado e “aos muitos homens falando de puta” no rap, a MC da zona norte de São Paulo passou a usar a expressão “puto” nas suas músicas. Entre os seus lançamentos mais reproduzidos, a aparição de “puto” fica atrás apenas de “dollar” em referência a dinheiro.

Ostentação e autoestima elevada

Cifrão, grana, money, dim, cash”. Nas primeiras gerações do rap, esse assunto era pouco mencionado, mas o dinheiro e as aquisições que ele pode proporcionar estão agora no top 5 dos temas mais presentes nas composições das rappers. A ostentação surge a partir do avanço de políticas públicas que mudam o olhar do povo preto, periférico e do próprio Hip Hop.

“A gente está falando de uma era pós-internet, onde a população da periferia conseguiu algumas fissuras do ponto de vista de classe”, explica Nerie Bento. Elas citam marcas de grife, sobretudo de streetwear (roupa casual urbana) a exemplo da Adidas.

A autoestima da quebrada está na possibilidade de sonhar. Há dez anos na cena profissional, Monna conta que o seu primeiro contato com o Hip Hop foi assistindo aos dançarinos de breaking e charme da Jova Rural, bairro da extrema zona norte paulista. A experiência a impactou com uma sensação de pertencimento e a fez se aventurar na dança também. Para ela, a arte tem uma influência quase religiosa sobre a autoestima do público. “Quando a gente ouve outros artistas e se identifica, a gente canta e determina coisas para nós mesmos.” Em Limonada ela canta:

“Tô aonde quero, afinal com meu dinheiro tenho possibilidade de oferecer comida

Pra quem está ao meu lado e também pra mim mesma

Fiz do limão, limonada, o rap mudou minha vida”

Estética no palco

A possibilidade de sonhar está também na representatividade.O que representam Tasha e Tracie chegando no BET Awards – premiação internacional dedicada à música negra – vestindo um estilo autoral com influências das periferias paulistanas?

O tema estética está intrinsecamente atrelado à carreira das gêmeas. A categoria, que é a quarta mais falada nas músicas que analisamos, se apresenta no palco, nas letras, clipes, capas de singles e EPs – formato menor que um álbum – de Tasha e Tracie. O trabalho visual delas já foi tão longe que virou referência para Kendrick Lamar ao compartilhar um take do videoclipe “Diretoria” – projeto inspirado na estética do carnaval das escolas de samba.

E as experiências particulares de uma jovem negra fazem diferença na identificação enquanto ouvinte. Fernanda Nunes, 25 anos, é fã de rap desde 2018 e conta que antes ouvia mais homens, porque era o que chegava para ela. Depois ela passou a curtir mais a sonoridade das mulheres. “Por mais que tenha bastante qualidade no trabalho feito por eles, chega a um ponto que não gera mais identificação com a minha percepção de mundo.”

Leia mais: O que está por trás da nova onda de alisamento entre mulheres negras

Elas cantam suas lutas

A liberdade artística e personalidade de cada uma – como o gosto por animes ou a região onde cresceu – revelam abordagens específicas que se tornam diferenciais das artistas. Enquanto os rappers homens tendem a falar muito sobre os mesmos temas, principalmente corpos de mulheres, elas diversificam mais e abordam sentimentos e desigualdades como a de gênero e a violência. 

As questões de raça não aparecem de forma tão crítica nas músicas que verificamos. O tema costuma surgir para falar de relacionamentos interpessoais. A rapper gaúcha Cristal é a que mais se posiciona politicamente sobre ser mulher negra, algo que está em quase metade das suas canções.

Cristal diz que mesmo indo na contramão do movimento, falar sobre raça para ela é natural hoje e não uma pauta que ficou nos anos 80 e 90. “Ser uma mulher negra está dentro de tudo que eu sou, represento e vivo”. Criada por duas mulheres, mãe e avó, ela também percebe o impacto do machismo no cotidiano da família. “Cresci com mulheres lutando e batalhando por si sem depender de ninguém, mas também sem escolha.” A mãe dela se tornou sua produtora musical. Hoje, Cristal tem 21 anos, e elas já trabalham e vivem da música Hip Hop. 

Leia mais: Pretas nas letras

A artista gaúcha defende que a negritude também seja celebrada. “Não esquecer que a gente é feliz e tem direito de vibrar, de comemorar.” Por muito tempo, comenta Cristal, o rap foi muito sério, e agora pode falar de curtição. “Só acho que o motivo não pode se perder, o rap não é bagunça e existe uma causa.” A MC cita a religiosidade de matriz africana, que está na faixa “Teve uma garota”, da carioca N.I.N.A, na qual ela homenageia às entidades Maria Padilha e Yemanjá.

Sinceramente eu me perdi no seu olhar

Me encontrei nesse caminho e vim contar

Que seu perfume ainda tá na minha cabeça

Não que eu esqueça” 

A vivência travesti preta de Monna Brutal se destaca na cena Hip Hop. A Bicha Papão conta que começou seu letramento racial e a transição de gênero enquanto já se entendia MC, fato que incidiu na sua arte. No começo da sua carreira, ainda usando o nome TFlow, costumava fazer mais rimas sobre amor-próprio, já que não via pessoas LGBTQIA+ ocupando esses espaços. Ao assumir-se Monna Brutal, trouxe uma persona combativa, com letras mais longas. Ela costuma falar no show que cada corpo dissidente, cada travesti, cada bixa viva é uma bomba ambulante.”Se ela está ali viva, ela teve que se defender e se esquivar de muita coisa, o que torna ela um ser humano fora da média.”

Leia mais: Artistas negras para seguir e indicar

E o público?

“E tipo assim: ‘Ah, vai perder público’

Que público? Os bofe não escuta a gente, mano”

O trecho acima, que está tá lá na diss de Ebony, explica o espaço desigual que as artistas recebem nos festivais de rap – seja nas line-ups ou no tratamento dos bastidores. Monna propõe a mudança a partir da contratação de pessoas transfemininas na organização de eventos e nas gravadoras especializadas, além de uma nova postura dos próprios rappers que estão em destaque. “Tem que fazer valer esse dinheiro que eles ganham as custas do Hip Hop, que é uma ideologia voltada para dar voz a minorias, não só a deles, mas as nossas minorias também.”

Com ou sem eles, as MCs do passado e do presentem fomentam os projetos das que ainda estão por vir, seja para trabalhar com o Hip Hop ou para se permitir sonhar alto. “Vão surgir novas MCs, DJs e B-girls a partir do que as meninas dessa geração estão produzindo hoje e da autoestima que estão tornando possíveis”, prevê Nerie Bento.

Leia mais: “A cultura é onde o povo preto se refaz”, diz Laura Santos, mestra de Jongo

*Para fazer essa reportagem, além de entrevistas com cantoras e pesquisadora da área, verificamos as dez principais músicas de 8 artistas/dupla. As palavras que compõem a nuvem foram selecionadas a partir do levantamento das expressões presentes em maior quantidade nas músicas mais ouvidas das artistas até outubro de 2023 e subtração de termos de conexão. O resultado obtido foi categorizado de acordo com o contexto das músicas e assuntos identificados pela pesquisadora Nerie Bento como característicos do rap cantado por mulheres e pessoas transfemininas na atualidade. Veja aqui o github com o código aberto utiizado nessa matéria.

Metodologia

A análise de dados foi realizada por Nadja Pereira em etapas conforme descrito: 1. Seleção das cantoras mais novas, sendo 7 cis e 1 trans; 2. Utilização das 10 primeiras músicas mais visualizadas das artistas do site letras.mus, porque ele possui o melhor ranqueamento do Google; 3. Importação das letras de música dos links usando as bibliotecas do python usando request, spacy, BeautifulSoup e Counter; 4. Contar as palavras sem pronomes pessoais, pronomes demonstrativos, artigos, dentre outros; 5. Exportação de dados para o Excel; 6. Após a exportação, separação das palavras em categorias como "preta" = "negritude", por exemplo;

Faça parte dessa luta agora

Tudo que AzMina faz é gratuito e acessível para mulheres e meninas que precisam do jornalismo que luta pelos nossos direitos. Se você leu ou assistiu essa reportagem hoje, é porque nossa equipe trabalhou por semanas para produzir um conteúdo que você não vai encontrar em nenhum outro veículo, como a gente faz. Para continuar, AzMina precisa da sua doação.   

APOIE HOJE