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O silêncio atrás da serra

De todos os abusos sofridos pelos kalungas do Goiás, um em particular deixa a comunidade em carne viva: os silenciosos casos de violência sexual contra meninas com idade entre 5 e 14 anos

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Os anos correm entre um século e outro, mas os problemas permanecem os mesmos para os kalungas. Quilombolas que há mais de 200 anos encontraram lar entre os muros de pedra da Chapada dos Veadeiros, na região norte do estado de Goiás, ainda vivem com pouca ou quase nenhuma infraestrutura. Lá, certas feridas perpassam gerações e nunca cicatrizam. De todos os abusos sofridos, um em particular deixa a comunidade em carne viva: os silenciosos casos de violência sexual contra meninas com idade entre 5 e 14 anos.

Pouco adiantou figurar entre grandes reportagens da imprensa nacional em abril do ano passado. Os holofotes até atraíram o poder público que viajou os cerca de 300km de Brasília a Cavalcante para presenciar uma realidade há muito tempo ignorada. Mas passado o afã das denúncias de abuso sexual que explodiram na cidade, Cavalcante retornou ao seu curso natural. E assim os kalungas continuam a viver, no esquecimento, no abandono e, principalmente, no medo.

As vítimas de pedofilia, estupro e trabalho infantil não viram seus algozes punidos. A cidade não recebeu o básico prometido, como um delegado e um juiz fixo, e por lá só se ouve um eco dos discursos feitos há mais de um ano. O silêncio prevalece e grita alto naquelas que se arriscaram a mostrar suas feridas.

O sentimento é o de ter se exposto em vão.

De acordo com dados da Justiça goiana, até junho deste ano, nenhum dos investigados nos 47 processos de violência sexual na cidade estava na cadeia. O único condenado a regime fechado cumpre domiciliar. Outros quatro cumprem pena: um em regime semiaberto; outros dois cumprem em regime aberto e um em prisão domiciliar. Cinco estão foragidos e dez casos foram arquivados. Os demais processos estão em andamento.

“É uma situação muito triste, porque muitas famílias denunciaram. No fundo, toda essa repercussão foi negativa, porque os agressores não foram punidos. Então, a tendência é que o número de denúncias diminua, já que não houve resultado”, avalia a secretária de Igualdade Racial e da Mulher de Cavalcante, Wanderleia dos Santos. Quilombola da comunidade do Vão de Almas, Wanda, como é conhecida pelos kalungas, demonstra uma decepção indisfarçável com a impunidade, que, para ela, persiste por falta de vontade do poder público com as comunidades tradicionais. “Eles alegam que na cidade não tem um juiz, não tem um delegado. Muitos casos ficam a desejar por esse motivo. Se tivesse vontade política, se resolveria”, sentencia.

Sem o delegado e o juiz efetivo recomendado por três relatórios elaborados pela Câmara dos Deputados, pela Assembleia Legislativa de Goiás e pela então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Cavalcante conta com apenas uma instância estadual: o Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO). É ele que recebe e repassa as denúncias, mas vê o andamento dos processos estagnado nesse sistema. Nem mesmo o Núcleo Especializado de Apoio à Mulher (Neam), criado a partir das denúncias, resistiu. Em menos de seis meses, ele foi desfeito. Não bastasse a violência física e psicológica sofrida pelas crianças, agora elas têm que lidar com a impunidade. “A gente viu toda aquela revolução na mídia, mas, na comunidade, as famílias continuam atrás da serra, recuadas”, lamenta Wanda.

Relembre o caso

Ninguém sabe ao certo quando tudo começou, mas os recorrentes casos de abuso sexual infantil se tornaram públicos em abril de 2015. A questão já era velha conhecida da comunidade de Cavalcante, mas o silêncio prevalecia e as vozes das vítimas eram abafadas pelo medo de retaliação e até mesmo pela naturalização da violência. Concretizou-se na cidade a ideia de que estupro de crianças e adolescentes kalungas era cultural, longe de ser considerado crime. O receio instalou-se entre as vítimas de tal forma que, entre as procuradas pela reportagem, ninguém quis relatar as violências sofridas.

“O abuso acontece primeiro no âmbito familiar. É o tio, o padrasto, o irmão, o pai. Talvez por isso essa lei do silêncio seja tão impregnada aqui. É difícil expor a própria família, denunciar o próprio pai”, relata a promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), Úrsula Fernandes, presente há cerca de 20 anos no município. Os abusos só tomaram visibilidade quando saíram da esfera familiar e entraram na esfera pública. Foi a denúncia de que o vereador Jorge Elias Cheim (PSD) teria abusado de uma menina de 12 anos que chamou atenção da imprensa. Com a cobertura jornalística, eclodiu o escândalo de que crianças kalungas eram entregues pelos pais a pessoas da cidade com a promessa de estudo e moradia em casa de família.

Assim, eram vítimas de exploração do trabalho infantil, além de serem abusadas sexualmente pelos patrões.

Com as denúncias tornadas públicas, surgiram os questionamentos e, finalmente, foi dado aos casos a atenção há tanto desejada. “Já era sabido. A gente já tinha pedido estrutura para investigar esses casos há muito tempo”, lembra o delegado Diogo Luiz Barreira. Na época, titular de Alto Paraíso de Goiás, foi ele quem ficou à frente da força-tarefa que resultou na abertura de 11 inquéritos contra abusadores de crianças. Para averiguar a gravidade da situação, foram apurados 57 nascimentos de crianças cujas mães eram menores de 15 anos.

Os casos considerados mais graves, que envolviam “peixes grandes” da cidade, tiveram encaminhamento, mas um ano e cinco meses após as denúncias que abalaram a rotina na Chapada dos Veadeiros, ninguém está preso, nem mesmo o vereador Jorge Cheim, que teve dois pedidos de prisão preventiva indeferidos pela Justiça goiana. As investigações que se iniciaram com todo gás perderam força rapidamente assim que a imprensa se retirou da cidade. E, embora os casos averiguados sejam apontados como crimes individuais, ouve-se falar em questões ainda mais chocantes, como relata a socióloga e professora da Universidade de Brasília (UnB) Tânia Cruz, que atua na Licenciatura em Educação no Campo.

“O leilão das virgens é uma prática que ocorre lá. O pai e a mãe que faz isso vive uma miséria tão grande que a única chance que tem de ter uma vaquinha de leite é participar desse leilão. Para eles, não é uma venda, nem é visto como um crime”, contextualiza. “É tudo muito silencioso. Geralmente é o pai que negocia o corpo da criança”, conta. A despeito do relato ser reforçado por cidadãos da cidade, o delegado Diogo afirma que “isso nunca ocorreu enquanto trabalhei lá.”

Briga política define rotina da cidade

A promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás, Úrsula Fernandes

“As avós sofreram violência, as mães passaram por isso, e cria-se uma ideia de que todas as que vierem também vão sofrer esse abuso. Isso tem que parar. Isso não é cultura, é um ciclo de violência”, enfatizou a promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás, Úrsula Fernandes, durante palestra realizada na festa em louvor a Nossa Senhora da Abadia, na comunidade kalunga de Vão de Almas, em agosto. O discurso combativo soa como uma bronca diante da comunidade quilombola, mas a voz da promotora Úrsula esbarra em um parentesco que comprometeu sua imagem.

Representante da única instância do poder público estadual presente diariamente no município, ela é casada com o primo do vereador Jorge Elias Cheim. O político foi acusado de abusar sexualmente de uma garota de 12 anos. Ela morava e trabalhava na casa de Cheim, que também é marido da atual vice-prefeita, Maria Celeste Cavalcante Alves (PSD). O abuso teria ocorrido em outubro de 2014.Por conta do parentesco com o vereador, a promotora Úrsula declarou-se incapaz de continuar no processo, sendo substituída. Ainda assim, ela foi acusada de inoperância funcional por não ter requerido a instauração de inquéritos policiais em casos de registro de 57 nascimentos de crianças sem paternidade de mães com idade entre 13 e 15 anos.

Ela também teve que responder por suposto aliciamento feito para que jovens gestantes kalungas cedessem seus filhos à adoção. As denúncias foram arquivadas em fevereiro deste ano pela Corregedoria Nacional do Conselho Nacional do Ministério Público. Segundo o órgão, a investigação mostrou que o aliciamento não existiu e foi constatado que não ocorreram falhas na atuação de Úrsula. “Eu tenho dados que comprovam meu trabalho”, garante a promotora, e afirma que as acusações são fruto de uma briga política que vigora no município. Há, inclusive, a tese de que as denúncias contra o vereador também surgiram de divergência política.

A desavença entre a prefeitura e o Ministério Público – somado à Câmara de Vereadores – é evidente, segundo o delegado Diogo Luiz Barreira. “Algumas pessoas tentam atacar a promotoria, ela já entrou com muitas ações contra a prefeitura. É uma questão política, quem é a favor do prefeito é contra a promotora”, conta, sem dizer de quem partiu a denúncia contra o vereador. A defesa do prefeito João Pereira Neto, por sua vez, surge mesmo sem questionamento. “Dizem por aí que fui eu que comecei as denúncias, mas não é verdade”, defende-se, aproveitando para se queixar da dificuldade de governar com a oposição ferrenha da Câmara de Vereadores. João ressalta, desiludido, que não tentará a reeleição, por motivos pessoais.

Vereador acusado de abuso continua no cargo

O processo criminal que investiga a participação do vereador Jorge Elias Cheim tramita em segredo de Justiça. A Polícia Civil pediu duas vezes a prisão preventiva do acusado, mas os pedidos foram indeferidos pelo juiz Lucas Lagares. Segundo o delegado Diogo Luiz Barreira, o Judiciário alegou falta de detalhes técnicos. “Pediram um laudo psicológico da vítima, mas não tem psicólogo na região”, explica em entrevista à reportagem.

Em outra ocasião, o delegado afirmou à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados que “tinham sido apresentados todos os indícios necessários” para a prisão preventiva do vereador. Sem a detenção preventiva de Cheim, o caso perdeu força, pois as testemunhas voltaram atrás nos depoimentos. “Ao final da investigação, só a vítima chegou afirmando o ocorrido. É difícil conseguir a condenação assim”, lamenta o delegado, e conta: “Disseram que a família tinha recebido uma bola de arame para retirar a queixa. Mas a gente não sabe. Eles não falam, então, é difícil afirmar.”

Com o processo em andamento, o ex-prefeito do município, Jorge Elias Cheim segue atuando como vereador na cidade.

A reportagem buscou o vereador por diversas semanas para ouvir o que ele tem a dizer sobre o caso, mas não conseguiu contatá-lo.

Afinal, quem são os Kalungas? O que são quilombolas?

O caminho para chegar até os kalungas, em Cavalcante (GO), já fala muito sobre a própria origem da comunidade quilombola. O acesso exige tempo e um veículo com tração que consiga superar as difíceis subidas e descidas da Chapada dos Veadeiros. Quando chegaram à região, no século 18, eles queriam se esconder. Era a forma de resistir à escravidão imposta pelo sistema colonial no Brasil.

Resultantes da luta dos negros, os quilombos brasileiros são uma forma de organização social caracterizada pela manutenção e reprodução dos modos de vida próprios. Para isso, os escravos fugidos buscavam locais de difícil acesso. Foi apenas com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que essas comunidades passaram a ter direito sobre seus territórios, com o surgimento do termo “remanescentes de quilombo”, associado a uma identidade histórica. Atualmente, existem no Brasil cerca de 2.600 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares.

O quilombo Kalunga é o maior território quilombola do país.

Os escravos das lavras das minas de ouro da região dos afluentes do Rio Paraná e do Tocantins, no nordeste goiano, fugiam da violência em busca de liberdade e autonomia. Dessa forma, se instalaram no norte de Goiás, em meio às serras do que hoje é o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.

A comunidade se estende pelos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás, compreendendo povoados como Vão de Almas, Diadema, Vão do Moleque e Engenho. Com uma área total de 262 mil hectares, o território kalunga é habitado por, aproximadamente, 8 mil pessoas, dispersas em pequenas unidades territoriais, que têm na agricultura e na criação de animais seu sustento.

Embora estejam espalhados pelo território, a comunidade kalunga se mostra unida, tanto nos festejos típicos quanto na busca por melhores condições para a população. Líderes dos quilombos se reúnem na Associação Quilombo Kalunga, em Cavalcante, para tratar de temas que variam desde a implementação de uma rede de comunicação e informática até a violência doméstica.

No Vão de Almas, onde é realizada anualmente a festa em louvor a Nossa Senhora da Abadia, os quilombolas saem de diversos locais da Chapada e se reúnem, no mês de agosto, no vilarejo cheio de casebres de barro. Lá a tradição religiosa se mistura com um clima quase carnavalesco. Carnes são estendidas em varais ao sol e levadas à mão mesmo para as casas e para os restaurantes improvisados que recebem os visitantes. A comida é preparada ao lado dos clientes.

Protagonistas da festa e ao mesmo tempo mão de obra, as mulheres trabalham enquanto os homens sentam à sombra para amenizar o calor abafado que incide no vilarejo, localizado em meio a serras. Para se refrescar, os jovens se jogam no rio, enquanto mulheres vestidas com cores vibrantes transitam equilibrando grandes bacias na cabeça, cheias de louça a serem lavadas na água corrente. É comum ver meninas visivelmente jovens carregando seus bebês no colo.

Em 1991, o quilombo foi reconhecido como Sítio Histórico e Patrimônio Cultural pelo Estado de Goiás e no ano de 2000, foi titulado pela Fundação Cultural Palmares. Apesar disso, somente em 2015 a eletricidade chegou ao território, por meio do programa Luz Para Todos, do Governo Federal. Porém, problemas fundiários, falta de saneamento, precariedade nas estradas e dificuldade de acesso à escola ainda persistem.

Em Cavalcante, falta o básico para acabar com os casos de violência sexual contra quilombolas

Além de cobrar consequências para os casos de pedofilia recorrentes contra crianças quilombolas kalungas em Cavalcante (GO), é importante entender por quê a impunidade acontece no município. Localizado em uma região de difícil acesso, com pouca (ou quase nenhuma) estrutura, a comunidade kalunga capenga ao ter seus direitos respeitados.

Levantamento da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Violação dos Direitos da Criança da Assembleia Legislativa de Goiás identificou diversas falhas no sistema, problemas que favorecem a ocorrência de abuso sexual em municípios do interior goiano e, em particular, em Cavalcante.

Entre os fatores, o mais imediato deles é a falta de policiais na cidade. Cavalcante não tem delegado exclusivo, nem um efetivo suficiente de policiais civis e militares. Quem cumpre o cargo de autoridade policial hoje é o delegado de Campos Belos, Carlos Eduardo Florentino da Cruz, que vai esporadicamente a Cavalcante, pois ainda atende outros municípios.

Sem o suporte policial, as denúncias não têm onde chegar. Quando chegam, não conseguem ser investigadas de forma efetiva até que se crie o inquérito a ser enviado à Justiça. Se ainda assim for cumprido o processo, com condenação, não se tem contingente necessário para fazer cumprir a pena. O resultado é o número de condenados foragidos, situação constante na comarca – das 10 execuções penais, cinco condenados estão foragidos.

À frente da força-tarefa que concluiu 11 inquéritos no ano passado, o delegado Diogo Luiz Barreira, relata a peleja enfrentada no andamento das investigações na região. Ele atuou em Cavalcante por cinco meses – de janeiro a maio de 2015 –, quando liderava a delegacia de Alto Paraíso de Goiás, além de atender outras três cidades. Dividindo-se entre os cinco municípios, o delegado cruzava mais de 500 km entre o primeiro e o último.

Na época, as idas à Cavalcante eram quase diárias.

“Quando cheguei lá, não tínhamos nem um carro para ir no território quilombola”, conta o delegado ao lembrar da estrada de terra, por onde só passam carros com tração traseira.

As subidas e descidas pela serra não deixam qualquer um chegar ao esconderijo dos kalungas. Para ir ao encontro deles, é necessário cruzar o cerrado e atravessar três rios pelo caminho.

“Os maiores entraves que enfrentei naquele período foram a falta de estrutura e de pessoal. Também tínhamos dificuldade de ir até os kalungas, porque ficam muito longe da cidade. A gente leva um dia inteiro para ir e voltar. Nem intimar as pessoas você consegue, porque eles não têm telefone”, lamenta o delegado Diogo, que hoje atua em Goiás Velho, para onde se mudou ao fim da força-tarefa.

A falta de um corpo técnico, com psicólogo criminalístico para elaboração de laudos que amparem as denúncias, faz com que muitos casos percam a força e acabem sem provas suficientes para condenação. Falta também um efetivo feminino para atendimento das vítimas. “Elas se sentem mais amparadas por outras mulheres. Muitas vezes os policiais têm uma posição machista no atendimento à vítima”, avalia.

Casos ficam estagnados no Judiciário

Outra força essencial inexistente na cidade é o Judiciário. Sem um juiz exclusivo, os casos não têm celeridade e ficam estagnados, dando chance para fugas e coação das vítimas e testemunhas. Quem responde pela comarca de Cavalcante é o juiz Lucas de Mendonça Lagares. Titular da cidade de Formosa, não tem a possibilidade de dar a devida atenção à Cavalcante.

Lagares justifica a falta de juiz permanente na cidade ao déficit no número de magistrados no Estado de Goiás. “Apesar disso, tenho envidado esforços para julgar o maior número de processos penais possíveis neste curto espaço de tempo que tenho, enquanto juiz respondente (não titular) da comarca”, declara Lagares.

O esforço do Judiciário local, no entanto, é questionado pela deputada estadual Adriana Accorsi (PT/GO), ao afirmar que a questão não está sendo tratada com a devida seriedade pela Justiça, o que gera uma sensação de impunidade. Ela explica que a morosidade na investigação fere o inquérito e impossibilita uma condenação justa.

“As pessoas têm medo de denunciar, não se sentem apoiadas pela Justiça e pela polícia. As que denunciam retiram queixas. O fortalecimento dessas duas instâncias é imprescindível para combater a impunidade.”

A ausência do Estado nas instâncias policial e judiciária é tamanha que nem a presidente do Conselho Tutelar de Cavalcante, Maria Aparecida Figueiredo, sabe dizer quem são os protagonistas atualmente. “A gente tinha delegado pelo menos uma vez no mês. Agora é um problema. Não estou nem lembrada de quem está no cargo”, reclama e diz não saber se a Justiça está dando prioridade aos casos de abuso sexual infantil. “Ainda não fui intimada para nenhum caso de abuso que eu atendi”, relatou em julho à reportagem d’AzMina. Segundo ela, “coisas de um ano atrás só estão sendo resolvidas agora pela Justiça.”

Mas o discurso de intolerância para os casos de pedofilia prevalece na boca do juiz Lucas Lagares. “Estupradores de crianças e adolescentes não passarão. Não ficarão sem a devida reprimenda penal, desde que provado sua culpa, de acordo com o devido processo legal, e respeitados os princípios da ampla defesa e do contraditório”, declara.

Conselho Tutelar sofre com dificuldades estruturais

Apesar dos percalços, o Conselho Tutelar é uma das poucas instituições que funcionam em prol das crianças vítimas de violência na região. Com cinco funcionários, o conselho cobre praticamente toda a área, mas emperra nas estradas que exigem um veículo com tração. Sem o 4×4, comunidades como Vão de Almas e Vão do Moleque ficam sem receber o suporte dos conselheiros. O grupo também trabalha sem sede própria, por falta de condições financeiras.

As ameaças são constantes. Após os casos ganharem repercussão, representantes do Conselho Tutelar afirmaram ter sofrido retaliação.

Eles tiveram a sede invadida e relatórios referentes a crimes sexuais contra menores roubados.

Mesmo com todo o esforço, a atuação do Conselho sofre não apenas com a questão estrutural, mas também em uma certa descrença da real situação. A presidente do órgão, Maria Aparecida Figueiredo, disse não haver tantos casos de abuso sexual como divulgado. “Sempre que a gente recebe a denúncia, vai no local, ouve a criança, ouve os demais, encaminha o caso… Mas é muito raro. Não é aquilo que a mídia saiu falando, não”, desacredita, e diz que, ainda entre os casos atendidos pelo Conselho, a maioria é de crianças não quilombolas.

Cidade se esvaziou com saída da imprensa

A sensação de impunidade após um ano das denúncias virem à tona gerou um novo desconforto na cidade, dessa vez com a imprensa. A descrença no que foi noticiado em maio de 2015 não permeia apenas o discurso da conselheira tutelar. Outras vozes cogitaram questionar o que foi dito. A secretária de Igualdade Racial e da Mulher de Cavalcante, Wanderleia dos Santos, diz estar tão chocada com a impunidade que às vezes pensa se tudo que foi dito realmente aconteceu.

Ao mesmo tempo, os quilombolas demonstram uma mágoa por terem se exposto tanto e recebido nenhuma resposta. “A TV Record ganhou prêmio em cima das quilombolas. A reportagem tocou em gente que sempre foi explorada. Explorou o caso e não resolveu a situação. Fico decepcionada em ver que mais uma vez somos sujeitos de exploração, de pesquisa”, disse Wanderleia.

Os olhares tortos para as câmeras e a negativa ao gravador são explicados por um grupo de jovens quilombolas entre 15 e 17 anos. Elas contam que, quando os casos começaram a tomar visibilidade, muitas famílias se motivaram a denunciar.

“Hoje essas meninas andam pela cidade e são motivo de piada. As pessoas julgam, apontam o dedo”, conta uma das garotas em Cavalcante, que pediu para não ser identificada.

“É muito difícil pra elas, porque elas tiveram a coragem de denunciar, deram até entrevista para os jornais e televisão, mas hoje continuam convivendo com os agressores, porque eles ainda não foram punidos. É uma cidade pequena, não tem como fugir”, lamenta.

Para o delegado Diogo Luiz, é visível que, após a saída das equipes de reportagem que encheram a cidade em maio de 2015, a atuação do estado foi reduzida. “Depois que os holofotes se apagaram, todo mundo esqueceu os kalungas, aquele povo sofrido. Na hora, veio deputado, veio ministro, ganhamos um pouco de estrutura… Mas a gente lamenta que as instituições de direitos humanos só agiram mesmo por causa da mídia. Hoje acabou, ninguém fala mais nada, está tudo como estava”, queixa-se.

Medidas contra estupro de meninas quilombolas não foram além dos relatórios

A desilusão dos quilombolas e moradores de Cavalcante não é à toa. A euforia no município nos meses de abril e maio de 2015 transformou a cidade em uma grande sala de reuniões. Por lá passaram deputados estaduais, federais e membros do Executivo Federal. Uma visibilidade política que a pequena cidade de 9 mil habitantes nunca teve.

À época, uma comitiva formada pelas Secretarias de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Direitos Humanos, Políticas para Mulheres da Presidência da República e a Fundação Cultural Palmares realizou uma série de reuniões com instituições do estado de Goiás e lideranças quilombolas. O objetivo era articular ações de prevenção e combate ao trabalho infantil e à violência sexual.

A Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados também marcou presença na região. Ouviu a comunidade, as vítimas. Além disso, averiguou denúncias de suposta omissão por parte de autoridades públicas para coibir práticas de pedofilia no município.

O vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, o deputado Paulo Pimenta (PT/RS) afirma que o tema continua na pauta da comissão, independentemente do caos parlamentar e político vivido atualmente pelo país. Ele alega que o papel da comissão foi cumprido, ao dar encaminhamento às denúncias. “A ação coordenada pela comissão contribuiu para dar visibilidade aos múltiplos aspectos da situação de Cavalcante, e para que procedimentos investigativos fossem instaurados”, diz.

A abordagem mais recente do caso é da Assembleia Legislativa do estado de Goiás. O assunto desencadeou a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Violação dos Direitos da Criança para investigar os crimes de abuso sexual, trabalho infantil e adoção irregular de crianças e adolescentes de todo o estado. Os trabalhos foram encerrados em maio deste ano, com apresentação do relatório final. No documento com 504 páginas, há uma extensa avaliação dos fatores que deixam essas meninas vulneráveis à violência e, assim como os demais relatórios, é recheado de recomendações a serem tomadas pelo poder público.

A questão tem sido acompanhada pelos parlamentares, conforme afirma a deputada estadual Adriana Accorsi (PT/GO), vice-presidente da CPI. Não foram apurados não apenas os crimes, mas também uma série de outras questões, como a necessidades de escola, acesso à saúde, viaturas para a polícia que possibilitem chegar aos locais onde as comunidades estão, etc. “Ainda não temos um juiz. Não temos delegado de polícia. A estrutura do Conselho Tutelar ainda é muito precária. É uma situação muito grave, que acontece em todo o estado, e precisa não só de visibilidade, mas necessita ser combatida com muito rigor”, afirmou a deputada, ao contar que, com o fim da CPI, seria criada uma frente parlamentar de combate a esse tipo de crime.

Na opinião dos parlamentares, mais do que uma dificuldade estrutural, a situação esbarra em uma questão ainda mais minuciosa.

“Há um racismo institucional, sim, e a lentidão do Sistema de Justiça é uma maneira de o Estado colocar suas instituições contra todas as comunidades tradicionais”, avaliou o deputado Paulo Pimenta.

Ponto de vista compartilhado por Accorsi, cuja tese é de que há morosidade nos processos. “Esses casos têm sido julgados de forma muito lenta no estado de Goiás. E nem sempre o julgamento é tão rigoroso quanto a lei permite”, critica.

O juiz responsável pela comarca de Cavalcante, Lucas Lagares, reconhece que há dificuldade de atuação do judiciário, mas afirma que os problemas são estruturais, relacionados a fatores geográficos e econômicos. “Faltam políticas públicas voltadas à promoção da parcela mais carente da população e as primeiras vítimas são, geralmente, as crianças e os adolescentes. Essa situação de penúria e abandono, ainda que exista uma vontade pessoal de mudança, não pode ser totalmente contornada pelo Poder Judiciário”, diz.

O governo do estado de Goiás ainda não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Cor, gênero e pobreza: o que torna as quilombolas mais vulneráveis ao estupro?

Os abusos sexuais são uma trágica realidade na vida de milhares de crianças brasileiras. As denúncias de violência sexual feitas ao Disque 100 em 2015 chegaram a quase 50 por dia, de acordo com levantamento divulgado este ano pelo Disque-Denúncia Nacional, que aponta que mais de 17 mil crianças foram vítimas.

Entre essas, a maioria é de meninas negras, entre 4 e 11 anos. Porém, no quilombo Kalunga, localizado em Cavalcante (GO), os casos recorrentes seguem subnotificados, em meio a ameaças, silêncios e tabus.

Por meio de relatos de mulheres da própria comunidade e de profissionais que trabalham diretamente com os kalungas, constata-se que situações como as denunciadas em abril de 2015 continuam ocorrendo. E a violência também acontece em casa. “É muito comum ter crianças iniciadas sexualmente pelo avô, pai, padrasto, irmão mais velho. É ‘normal’. Anormal é questionar isso”, afirma a socióloga e professora da Universidade de Brasília (UnB) Tânia Cruz, que atua diretamente no quilombo por meio do curso de Licenciatura em Educação no Campo.

De acordo com o delegado que atuou em Cavalcante nos casos divulgados em 2015, Diogo Luiz Barreira, a situação é recorrente. “A maioria ocorre dentro de casa. Quando a menina sai do interior e vai para casa de outra família para estudar e trabalhar, é abusada pelo patrão. E os familiares tentam esconder, para isso não se tornar motivo de difamação”, comenta Barreira. O delegado afirma que muitas vezes as vítimas nem sequer percebem que se trata de um crime, porque já acontece por gerações.

Na opinião da socióloga Tânia Cruz, as meninas sabem que estão sofrendo abuso, sim, mas mantêm o silêncio.

“Falar implica em ser emudecida, em apanhar e ser violentada com muito mais força.”

“Tem um estigma muito grande, não só do corpo, mas da condição psicológica dessas meninas. Elas preferem não falar porque não ganham absolutamente nada falando”, considera.

Cultura do machismo

A violência contra meninas e mulheres deixa marcas profundas nas vítimas e a dura experiência sofrida permanece na mente dessas pessoas. Toda mulher – seja na infância, seja na vida adulta – está vulnerável a sofrer assédio, exploração sexual, estupro, tortura, violência psicológica, agressões por parceiros ou familiares, perseguição e feminicídio. Conforme constata Tânia Cruz, quando se fala em um país que tem um histórico de colonização e desenvolvimento econômico estruturalmente baseado em relações racializadas, esses crimes adquirem outras matizes.

De acordo com o estudo “Violência tem cor”, divulgado em março deste ano pela relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre questões de minorias, Rita Izsák-Ndiaye, as pessoas negras estão mais suscetíveis a sofrer violência. E quando se faz o recorte de gênero, a situação piora. O Mapa da Violência 2015 apresenta o fato: entre os anos de 2003 e 2013, as taxas de homicídios entre as mulheres e meninas negras tiveram um aumento de 19,5%, enquanto entre as mulheres brancas houve uma queda de 11,9%. Na década analisada, a vitimização de negras, que era de 22,9% em 2003, cresceu para 66,7% em 2013.

No estudo da ONU, Rita Izsák-Ndiaye mostra a vulnerabilidade das comunidades quilombolas, cujos habitantes afrodescendentes enfrentam uma discriminação adicional.

“São agrupamentos pobres, rurais e de zonas periféricas que nem sempre conseguem fazer valer seus direitos”, apresenta o estudo. Dessa forma, as mulheres quilombolas ficam ainda mais sujeitas à qualquer tipo de violência.

“Se ser mulher no Brasil é delicado, imagina mulher descendente de escravo”, destaca a socióloga Tânia Cruz, que completa: “Esse corpo vai valer menos ainda.”

A maneira como as mulheres negras são tratadas é destacada pela professora kalunga da comunidade Vão do Moleque Nilça dos Santos. Ao comentar sobre o assédio que meninas da região sofrem, Nilça desabafa: “Eu não sei porque a mulher negra é atraente para os homens. Quando o homem vê uma menina negra bonita, jovem, não pensa no casório, só pensa ‘naquelas coisas’. É muito comum ver isso acontecer aqui na cidade. É algo que vem de muitos anos, desde a época da escravidão, quando pegavam as negras para ‘outras coisas’. É cultural.”

O professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) e ex-coordenador do Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, Joseleno Vieira dos Santos, explica que o Brasil escravagista comprava, vendia, abusava ou prostituía meninas negras, escravas ‘ganhadeiras’, inclusive com o aval da constituição de 1824, que garantia os direitos absolutos dos senhores sobre os corpos e a vida das pessoas escravizadas.

Para o pesquisador, fatores raciais e socioeconômicos geram desigualdades de direitos e de oportunidades nas realizações econômicas, políticas, sociais, culturais, na sexualidade e no prazer. “Têm sido construídas historicamente justificativas que naturalizam essas desigualdades a partir do pressuposto básico de inferioridade da mulher em relação ao homem, do negro em relação ao branco e da criança em relação ao adulto. As dimensões de classe, de gênero e de raça/etnia são reafirmadas no contexto das relações sociais e sexuais. Guardam especificidades, mas se encontram enquanto possibilidades de domínio, exploração e da exclusão social”, avalia.

Durante a apuração da reportagem d’AzMina, jovens quilombolas repetiram frases como “é assim mesmo” e “isso é comum” quando o assunto era os abusos, que variam desde a cantada na rua até o estupro. Sem ter acesso a dispositivos legais, o que resulta é a naturalização do crime. “Os casos também existem na cidade, mas há uma vigilância maior, o que, de certa forma, dificulta a atuação do criminoso. No quilombo, elas estão totalmente isoladas, então naturalizar isso é quase uma consequência. É uma relação arcaica, secular que está justificada pela própria condição de nascer mulher”, lamenta a professora Tânia Cruz.

Kalungas acreditam na educação para salvar meninas da violência sexual

Desacreditados da atuação do poder público no combate aos casos de abuso sexual de crianças e adolescentes kalungas em Cavalcante (GO), os quilombolas da região enxergam na educação uma solução possível para mudar essa realidade.

Para a professora da comunidade quilombola Vão do Moleque Nilça dos Santos, que trabalha com o ensino infantil, fundamental e médio, o caminho para a mudança dessa “cultura” se dará dentro do próprio grupo. “Eu acredito que tem que mudar a própria mulher, haver uma preparação para as meninas que vão crescendo, por meio de cursos e oficinas nas escolas”, afirma e reclama da falta de estrutura escolar: “Nós, professores, não temos recursos mínimos, trabalhamos apenas com o ‘gogó’ mesmo. E a gente percebe a necessidade de ter melhores meios para trabalhar minimamente a educação sexual”, afirma.

Durante suas aulas, a professora aproveita para falar sobre sexualidade, direito ao corpo e abusos. “A menina tem que saber, desde muito jovem, que se alguém quiser tocar no corpo dela, fazer um carinho, ela tem que permitir, isso tem que ser bom pra ela”, considera.

Na mesma perspectiva, a secretária de Igualdade Racial e da Mulher de Cavalcante, Wanderleia dos Santos, não espera ações do Estado. “Nós mesmos, a comunidade, as organizações sociais, devemos fazer ações educativas, fazer um trabalho de base comunitária para trabalhar esse assunto junto à comunidade”, acredita.

Soma-se a essas perspectivas, o Projeto de Extensão Juventude Rural, promovido pela Universidade de Brasília (UnB). O núcleo kalunga do projeto atende aos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina e é aberto à comunidade, como informa a historiadora e professora do curso de Licenciatura no Campo da Universidade Regina Coeli. “Participam do projeto estudantes de 16 a 20 anos, em sua maioria meninas. Durante as atividades propostas, surgem por parte dos próprios estudantes temas como violência doméstica, gravidez precoce e abuso sexual”, conta.

Coeli observa que entre as meninas mais jovens surge um olhar mais crítico sobre a própria realidade. “As estudantes já conseguem perceber e têm se mobilizado em torno desse debate da violência. São situações que a gente já ouviu falar em sala de aula, em trabalhos em grupo, e que, inclusive, foram tema de trabalhos de conclusão de curso. Na universidade, as meninas estão falando sobre isso, estão pesquisando e acreditam que esse é um debate que merece ser aprofundado. A gente trabalha na perspectiva de fortalecimento da identidade, do empoderamento social, do despertar desse olhar mais crítico para sua própria cultura”, explica.

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