Desde que se conhecem, há cinco anos, Anna Paula Bokel, 34 anos, e sua companheira, Letícia Meyer, 37 anos, planejavam a chegada do filho, Hugo. Durante os anos, discutiram a questão e decidiram que, por ser mais velha, Letícia seria a primeira a gestar. Pesquisaram muito e entenderam que fazer uma inseminação artificial seria financeiramente inviável para elas – o procedimento custa em média R$ 20 mil – e por isso optaram por fazer uma inseminação caseira.
Em 2018 começaram as tentativas. As duas primeiras não deram certo, mas na terceira vez Letícia engravidou. As duas pesquisaram sobre os trâmites legais para registrar o bebê. Quando nascesse, bastaria ir a um cartório e registra-lo como filho da mãe que gestou e da outra mãe por filiação socioafetiva, sem burocracia ou custos altos.
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Então Hugo nasceu no dia 15 de agosto de 2019. Exatamente na véspera, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) havia mudado as normas para registro de filhos e Anna descobriu no cartório que não poderia ser registrada como mãe do filho. Entrou na Justiça e até agora, quase quatro meses depois, ainda não conseguiu o registro.
“Isso me magoou muito. Não que eu me sinta menos mãe, mas é um direito nosso. Para a sociedade eu não sou mãe dele. Se acontece uma coisa com a Letícia, ele vai para um orfanato, porque no papel eu não sou mãe do meu filho”, conta Anna.
A história de Anna e Letícia é similar a de diversas outras famílias de mulheres que optaram pela inseminação caseira e, desde agosto, têm tido dificuldades para registrar seus filhos no nome das duas mães devido ao provimento 83 do CNJ, que mudou as regras para registro por filiação socioafetiva, que é o reconhecimento da maternidade por meio dos laços de afeto. Antes, era possível fazer esse registro direto no cartório. Agora, isso terá que ser feito via processo judicial.
O que é inseminação caseira?
Inseminação caseira é em um procedimento simples, feito sem acompanhamento médico, em que um doador coleta o sêmen em recipiente esterilizado e, logo em seguida, a mulher o injeta na vagina e espera deitada para que aconteça a fecundação.
Apesar de não ser legalmente reconhecido, o procedimento é muito usado por casais de mulheres e também casais heterossexuais sorodiscordantes (quando um dos dois tem HIV e o outro não). Em grupos do Facebook, que chegam a ter milhares de participantes, é possível observar que o método é bastante usado, com relatos de tentativas e casos de sucesso.
O principal motivo da busca pelo método é o custo: enquanto uma inseminação assistida em clínica pode chegar a custar R$ 20 mil por tentativa, a caseira tem apenas o custo do frasco para coletar o sêmen e da seringa usada para inserir na vagina. No entanto, o método é considerado controverso entre médicos.
“Quase não existem estudos de qualidade para falar sobre eficácia da inseminação caseira. Mas as práticas e relatos de mulheres mostram que há quem consegue bons resultados”, afirma a ginecologista do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Halana Faria. Para ela, de fato falta um olhar da medicina para estudar e entender melhor o método, mas a princípio ele seria seguro.
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“As mulheres que se submetem a esse tipo de procedimento na tentativa de engravidar devem estar cientes dos riscos envolvidos nesse tipo de prática. Como são atividades feitas fora de um serviço de saúde e o sêmen utilizado não provém de um banco de espermas, as vigilâncias sanitárias e a Anvisa não têm poder de fiscalização”, diz nota da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) no site do Ministério da Saúde.
A Anvisa explica que, do ponto de vista biológico, o principal risco do procedimento é a possibilidade de transmissão de doenças graves que poderão afetar a saúde da mãe e do bebê. “Isso se dá devido à introdução no corpo da mulher de um material biológico sem triagem clínica ou social, que avalia os comportamentos de risco, viagens a áreas endêmicas e doenças pré-existentes no doador, bem como a ausência de triagem laboratorial para agentes infecciosos, como HIV, Hepatites B e C, Zika vírus e outros”, diz a nota.
A ginecologista Halana diz ao escolher pela inseminação caseira, deve-se ter cuidados higiênicos na manipulação do material, para não haver contaminação, e também em relação ao espermatozóide, que pode carregar ISTs [infecções sexualmente transmissíveis], como sífilis, HIV e gonorreia, que podem ser transmitidos pelo esperma. “Então o doador deve ser testado para essas doenças”, explica Halana.
Além disso, há a questão legal: no Brasil os bancos de sêmen, com doador anônimo, estão disponíveis apenas para a fertilização assistida. Então os casais que optam pela inseminação caseira precisam buscar um doador, que não será anônimo, e correm o risco de um dia ele vir a demandar reconhecimento de paternidade, já que não há uma lei regulamentando isso.
A advogada Tatiane Mendonça recomenda que a relação com o doador seja a mínima possível e que seja feito um contrato particular em que ele abre mão da paternidade, com firma reconhecida. Mas ela alerta que “esse termo não possui validade legal e não garante nada, porém, a lei se adequa às mudanças da sociedade, então, pode ser que em um momento futuro esse termo ajude numa possível ação judicial pelo reconhecimento de paternidade, se houver”.
O que mudou com a norma da CNJ?
No Brasil, não há leis específicas para regular o registro de filhos de casais homoafetivos, e sim decisões da Justiça e regulações do CNJ. “Desde 2011, quando o STF [Supremo Tribunal Federal] equiparou a união estável homossexual à união formada por homem e mulher, o CNJ tem desempenhado um relevante protagonismo em uniformizar os procedimentos a serem realizados pelos cartórios para garantir o acesso dos casais LGBT a conversão da união estável em casamento e ao registro conjunto de filhos tidos por adoção ou técnica de reprodução medicamente assistida”, explica a advogada Laís Lopes, pesquisadora de direitos sexuais e reprodutivos, com doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Em 2016, o CNJ publicou o provimento 52, que dá ao casal homoafetivo com relação estável o direito a conceber seus filhos e registrá-los, a partir de inseminação artificial in vitro, com doador anônimo. Este procedimento é, normalmente, realizado em clínicas de fertilização particulares. “No Brasil, essas técnicas ainda são pouco acessíveis: reduzidas unidades do SUS as ofertam a casais com diagnóstico de infertilidade (no qual, tecnicamente, casais LGBT não necessariamente se enquadram) e a oferta particular permanece extremamente cara, sendo que índices de sucesso de cada ciclo são ainda baixos”, afirma Laís.
Em 2017, por pressão do movimento LGBTQI+, foi publicado o provimento 63 que, entre outras coisas, flexibiliza o registro de filhos gerados por inseminação caseira com doador conhecido. Na prática, as mães que escolhiam pelo método precisavam somente tomar os devidos cuidados com sua saúde e a do doador para fazer o procedimento e, depois da criança nascida, fazer o registro no cartório, apresentando os documentos das duas mães.
Até que em 14 de agosto de 2019, o provimento de 83 retira todas as possibilidades de essas mães conseguirem registrar seus filhos diretamente no cartório. Com a nova norma, o registro de filhos por filiação socioafetiva em cartório só pode ser feito depois da criança completar 12 anos. Antes dessa idade, as mães agora precisam entrar na Justiça para pedir o registro.
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Casais que optam pela inseminação artificial em clínica e têm comprovante médico do procedimento conseguem fazer o registro de filhos em cartório ainda. No entanto, como a inseminação caseira não é prevista na lei brasileira, essas famílias não são contempladas na lei.
Procurado pela reportagem, o CNJ informou que as novas disposições foram motivadas por demandas de atores da seara da infância para conferir “maior segurança aos registros de vínculos socioafetivos”. Sobre a inseminação caseira, o órgão disse que “ainda não há regulação para o registro de filhos havidos pelos chamados métodos ‘caseiros’ de inseminação. Em regra, o filho será registrado apenas em nome da mulher que pariu, conforme apontado pela DNV – Declaração de Nascido Vivo”.
Como nos procedimentos caseiros não há uma clínica e um médico para dar respaldo jurídico no assento do nascimento, o CNJ diz que para registrar a criança será necessário recorrer ao Poder Judiciário, para que seja apreciada a viabilidade do registro.
Mais difícil, caro e arriscado
“Isso é considerado um problema para os casais que optam pela inseminação caseira principalmente por conta da burocracia e possível demora que pode haver nesse registro, assim como nos gastos, uma vez que agora não existe mais um simples procedimento de ir até o cartório e fazer o registro”, diz a advogada Tatiane Mendonça, especialista em casos LGBTQI+, que desde agosto já prestou assessoria a 20 casais de mulheres na questão.
Para as especialistas, a mudança deixa casais LGBT em situação mais vulnerável e desprotegidos juridicamente. Agora, o Ministério Público é quem tem o poder de determinar a parentalidade e os nomes que constarão na certidão de nascimento da criança.
Desde a mudança, é preciso contratar um advogado e entrar na Justiça solicitando o registro. Existem dois caminhos possíveis: um é o pedido de adoção da criança pela mãe que não gestou e outro é pedir a filiação socioafetiva.
Anna Paula e Letícia, por exemplo, optaram pelo segundo caminho. Apresentaram a certidão de casamento, fotos provando estarem juntas há anos, recibos e diversos documentos para provar ao Ministério Público que são um casal e que o filho foi planejado pelas duas. No momento, ainda aguardam a decisão. “É muito triste, é como se a sociedade não se importasse com você”, reclama Anna.
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E enquanto esperam, ficam na ansiedade de que o registro seja negado, com base em posicionamento pessoal de um promotor. É que com a nova norma, fica aberta margem também para decisões preconceituosas do judiciário, afirma Laís Lopes. “No caso do reconhecimento de direitos de pessoas LGBT, em geral, qualquer abertura a garantia judicial e individualizante desses direitos corre o risco de encontrar entrave no posicionamento pessoal e religioso de operadores do Direito, como juízes e promotores, que não sejam comprometidos com o pluralismo sexual e de gênero e com a garantia democrática de atribuição da totalidade de direitos civis a todas as pessoas”, explica a advogada.
“Acredito que o objetivo desta restrição é evitar a adoção ‘à brasileira’, mas representa um retrocesso para a população LGBT, que precisará recorrer ao Judiciário para fins de reconhecimento deste direito”, afirma Vinicius Conceição Silva e Silva, defensor público coordenador-auxiliar do Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial, da Defensoria Pública de São Paulo. Por “adoção à brasileira”, estamos falando de registros de crianças cuja guarda foi obtida ilegalmente, como em casos de roubo ou tráfico de menores de idade.
“Enquanto lésbica, mãe e também profissional que lida diretamente com o sonho da maternidade, eu de fato preciso olhar para essa mudança como algo que tira de muitas mulheres lésbicas a possibilidade de constituírem uma família perante a Justiça. Tira de muitas famílias já existentes a possibilidade de legitimar essa existência”, diz a parteira Mariana Castello Branco, que é mãe graças a um procedimento de fertilização em in vitro, que destaca que para quem pode pagar pelo procedimento, nada muda.
Lésbicas não conseguem acessar inseminação pelo SUS
Desde 2012, o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece o Programa de Inseminação Artificial ou Fertilização In Vitro. Além de a fila de espera ser grande, para ter direito é preciso ter recebido o atestado de infertilidade e não ter conseguido engravidar pelo método natural por dois anos.
“As regras para o acesso ao tratamento são bastante discriminatórias. O SUS tem que atender as mulheres pobres. Porque são elas as que sofrem os maiores constrangimentos ao fazer a inseminação caseira ou se expondo a ter relações sexuais para poderem realizar o sonho de ser mãe”, diz o advogado Fábio Rodrigues da Silva, que atua com registros de filhos em relações multiparentais.
Para Anna, que segue esperando ser reconhecida legalmente como mãe do seu filho, tanto essa regra do SUS quanto o provimento do CNJ são sintomas de um sistema excludente com as mulheres lésbicas e sem recursos. “Eu entendo que é preciso ter norma, que não pode qualquer pessoas chegar e dizer que é filho e registrar, porque existe tráfico humano”, afirma. Mas questiona porque as normas e leis seguem ignorando a inseminação caseira. “Ela acontece e está aí para a grande maioria das mulheres que não têm problema de fertilidade. Até que ponto essa norma do CNJ não é uma pressão dessas clínicas ou da bancada conservadora do governo?”, questiona.
Colaborou para a reportagem Eliane Almeida