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Na África do Sul, as mulheres são prisioneiras do próprio corpo

Nós vivemos com medo das estatísticas. As do ano passado, por exemplo, mostram que 650 mil foram estupradas

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Atriz sul africana Andrea Dondolo segura cartaz: “Protesto porque sei que os homens podem parar de estuprar”

N a África do Sul, as mulheres são prisioneiras de seus próprios corpos, que são policiados por uma sociedade patriarcal e machista. E eu aprendi isso quando tinha apenas 16 anos. No Ensino Médio, eu ia a pé de casa à escola e sempre passava diante do vendedor de jornais que trabalhava por ali. Não me lembro exatamente das palavras que ele me falou, só que eram insinuações sexuais nojentas. Dali em diante, eu passei a me vestir como um garoto. Eu entendi que eu deveria esconder a minha feminilidade.

Em meu país, as mulheres vivem com medo das estatísticas. As do ano passado, por exemplo, que foram recentemente publicadas, mostram que 50 mil pessoas denunciaram terem sido estupradas. Pesquisas mostram que apenas 1 em cada 13 vítimas de estupro sul africanas chegam a denunciar o crime. Então, multiplique 50 mil por 13 e pasme com os 650 mil por ano que irá obter. Em um estudo de 2010, dois terços dos estupradores confessaram terem abusado das mulheres porque acreditavam que era seu direito – eles pensam que mulheres devem a eles a satisfação sexual.

Assim fica fácil de entender porque eu enrolava meu cabelo em um lenço, colocava um boné por cima, escondendo parte do rosto, e usava calças bem largas naquela época. Lembro-me até de, um dia, ter passado em frente ao supermercado e um cara gritado: “Hey, mano! Quer comprar maconha?”. Aquele era o mesmo grupo de homens que recentemente havia mexido comigo quando eu passava por lá.

Mas o meu corpo estava mudando rápido demais e se tornava impossível esconder o fato de que eu era uma mulher. “Esse é um problema antigo”, uma amiga desabafa comigo. “Cresci nos anos 1970, em uma família de classe média de Joanesburgo, e minhas amigas e eu sempre sofríamos com o assédio de homens que passavam de carro. Eles colocavam o torso para fora da janela e faziam um som de arrepiar, assoprando por entre os dentes “kiskiskiskis”, como se fôssemos animais. Muitas de minhas amigas adolescentes eram assediadas por homens bem mais velhos que, às vezes, eram de sua própria família, amigos da família ou pais de suas amigas.

“Uma vez, quando eu tinha 15 anos, uma amiga e eu fomos perseguidas por um grupo de homens jovens enquanto caminhávamos à noite. Outra, tive que ameaçar saltar de um carro em movimento porque o cara que havia me levado ao baile estava me tocando de maneiras com as quais eu não concordava.

“A melhor coisa de ficar velha, pra mim, foi não ter mais que lidar com o assédio.”

Voltando à minha história: mais tarde, já crescida, tive que ficar sem carro por dois anos e fui forçada a pegar o transporte público. Não sou nenhuma patricinha, me entenda, mas isso significava cruzar com uma série de homens desagradáveis nas ruas. Naquela época, se qualquer homem viesse em minha direção, eu cruzava a rua pro outro lado. Quando tive dinheiro para um carro, senti um alívio imenso. Foi então que percebi quanta tensão eu carregava nos ombros naquele período.

Tinham sido dois anos de brigar, exigir respeito ou tolerar insultos de homens que eu rejeitava. No começo, eu até tentava me explicar educadamente, dizer que não estava interessada. “Por quê? Você é casada, por acaso? Não vejo nenhuma aliança!” – como se a única razão para eu não querer nada com eles fosse “pertencer” a outro homem. Com o tempo percebi que falar com eles só aumentavam suas expectativas de conseguir meu número e marcar pontos com os coleguinhas por ter me comido. Mas se eu apenas os ignorasse, eles ficavam enfurecidos: “Nem te queria mesmo, sua puta! Como você é feia!”. E, por isso, eu só usava tênis, porque seria mais fácil correr se necessário. E, mesmo já crescida, eu ainda tentava, em vão, me vestir para esconder que era mulher.

Uma de minhas amigas, porém, não tinha essa escolha. Ela era médica e precisava se vestir bem para atender aos pacientes. “Eu amo usar saias e vestidos, maquiagem e brincos. Normalmente, quando algum estranho mexe comigo por conta de minha aparência, para manter a paz, eu sorrio e continuo andando. Mesmo assim, mais de uma vez homens já me seguiram até meu carro, me ofendendo e me acusando de ser uma esnobe e fazendo aqueles cliques com a língua. Alguns desses homens não me atraem em absolutamente nada, então, por que eu deveria celebrar que eles me achem bonita?

“Certa vez, um desses homens estava completamente drogado, tinha mais de dois metros de altura e eu fiquei aterrorizada. Odeio que tenha que te explicar que roupas estava usando para mostrar que eu realmente não estava tentando chamar a atenção. Nunca soube de nenhum homem que ficou preocupado em chamar atenção porque saiu de casa de shorts. Ou que teve medo de retocar a maquiagem porque ia sair de casa à noite. Fico furiosa porque, apesar de eu ter todo o direito de mandar esses caras à merda, me sinto forçada a sorrir para evitar o confronto. Quando um homem mexe comigo assim eu não me sinto elogiada, me sinto violada! Mas tenho medo porque eu também conheço as estatísticas.”

As estatísticas do estupro são o lado da história que eu e minhas amigas conhecemos, mas não experimentamos na pele. São sobre crianças e mulheres que, como nós, não puderam se proteger. Em 2008, me lembro que a África do Sul fez manchetes no mundo inteiro quando uma mulher foi violentada sexualmente por uma horda de taxistas na frente de um monte de gente. Eles rasgaram suas roupas, disseram coisas abusivas, enfiaram os dedos em suas partes íntimas – e aquelas dezenas de pessoas só ficaram em silêncio, assistindo. Um desses taxistas foi entrevistado naquele dia e disse que as mulheres, na verdade, é que abusam dos homens ao andaram “semi-nuas”. Outro homem disse que as mulheres não deveriam usar minissaias porque isso incita os homens ao estupro. Uma senhora entrevistada por ali afirmou, pra completar, que “o jeito que as mulheres se vestem hoje provoca os homens”.

Essas são as atitudes que alimentam o machismo e fazem do estupro só mais uma parte do nosso cotidiano, algo aceitável. Aqui, na África do Sul, nós escutamos essas coisas todos os dias. Ninguém escapa: de bebês a avós, há vítimas de estupros em todas as faixas etárias. As mulheres e seus sonhos não são valorizados. Somos prisioneiras de nossos corpos que são mera propriedade pública. E pior: eu e as amigas que contam aqui suas histórias somos apenas a parcela que teve muita, muita sorte.

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