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Marielle continua movendo estruturas após sua morte

Voz da vereadora, assassinada há um ano, encontrou eco e levou mais mulheres negras para a política

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Mulher negra, favelada, lésbica e defensora dos direitos humanos, Marielle foi assassinada há um ano (Leonardo Coelho/Ponte Jornalismo)

“Aqueles envolvidos nessa crueldade não sabiam o que aconteceria”, escreveu Mônica Benício, viúva de Marielle Franco. Não sabiam mesmo como sua voz continuaria ecoando e encontraria coro. O assassinato da vereadora do Rio de Janeiro, em 14 de março de 2018, acabou por levar mais mulheres para a política, elegeu mais mulheres negras nas últimas eleições e tornou seu nome e luta reconhecidos internacionalmente.

“Quem executou Marielle não sabia que ela tinha essa potência toda”, diz Dayana Gusmão, cria do Complexo da Maré, integrante da coletiva resistência Lesbi de Favelas e parceira de militância de Marielle.

“Mesmo depois de morta, ela continua fazendo o que ela fazia de melhor em vida, que é aglutinar pessoas.”

Após o assassinato de Marielle, o Rio foi o Estado com o maior número de mulheres autodeclaradas pretas concorrendo nas Eleições de 2018, segundo levantamento do Congresso em Foco com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Foram 231 mulheres autodeclaradas negras aptas a concorrer no Rio em 2018, um número 151% maior do que em 2014.

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O Rio elegeu quatro mulheres negras ligadas ao trabalho e ao legado da vereadora. Amiga de Marielle e vereadora com o maior número de votos em Niterói nas últimas eleições municipais, Talíria Petrone foi eleita deputada federal pelo Estado – ela se junta a outras 12 mulheres negras na Câmara dos Deputados. Já Renata Souza, Mônica Francisco e Dani Monteiro, todas assessoras de Marielle, foram eleitas como deputadas estaduais.

Sementes de Marielle

“Muitas mulheres se dispuseram a entrar na vida pública e política por causa dela”, diz Mariana Janeiro, candidata a deputada estadual por São Paulo nas Eleições de 2018. Filósofa, feminista negra e mãe, Mariana é, ela própria, uma dessas mulheres, que ficaram conhecidas como “sementes de Marielle”.

Ela concorreu a deputada federal meio às pressas, depois que a candidata da campanha da qual trabalhava precisou desistir da candidatura por questões pessoais. “Encontrei no caminho institucional um meio de fazer algo realmente efetivo para mudar as coisas”, conta.

Mariana não foi eleita, mas de sua campanha nasceu a Rede Somos Valentes, que faz o acolhimento de mulheres vítimas de violência em Jundiaí (interior de São Paulo) e região. Durante a campanha ela foi percebendo que existiam mulheres politizadas e que queriam se engajar na região e a partir daí nasceu a Rede. Nas Eleições de 2020 ela planeja se candidatar a vereadora por Jundiaí.

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E mais está por vir. Diversas iniciativas de entidades e da sociedade civil têm buscado amplificar esse movimento. Exemplo disso é o “Programa  Marielle Franco de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras”, do Fundo Baobá de Equidade Racial. Ele arrecadou US$ 10 milhões (equivalente a R$ 33 milhões) com as fundações Kellogg, Ford, Open Society e Ibirapitanga para o programa que pretende formar novas lideranças como Marielle

“O principal desafio a ser enfrentado pelo programa é contribuir para que as mulheres negras, em sua diversidade, consolidem-se como lideranças políticas e ocupem espaços e posições de poder simbólico e material, seja em espaços comunitários, sindicatos, associações, coletivos não governamentais organizados; no setor privado; ou mesmo nas estruturas formais do Estado”, diz nota do Baobá.

Sessão solene na Câmara dos Deputados em homenagem e memória à Marielle e ao motorista Anderson Gomes, assassinados no centro do Rio de Janeiro (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O jeito Marielle de fazer política

Cinco meses após o assassinato de Marielle, a Câmara Municipal do Rio aprovou cinco projetos de autoria da vereadora. Eles refletem as pautas de direitos humanos que Marielle sempre encampou, entre elas gênero, segurança pública e educação. “Marielle virou uma prática política de mulher preta, pensando e executando política para o coletivo”, diz Mariana Janeiro. Marielle costumava dizer que seu gabinete era um lugar para o debate do gênero, da favela e da negritude.

O jeito de fazer política de Marielle representava uma renovação na política tradicional, de quem não se deixou corromper e se manteve fiel às suas origens de mulher negra, favelada e lésbica.

A jornalista e ativista lésbica Camila Marins, que participou da articulação na Câmara do projeto de lei da Visibilidade Lésbica de Marielle, lembra que o mandato da vereadora foi o primeiro a abrir as portas para as mulheres lésbicas. E não foi nas postura de “tragam as suas demandas”, mas sim de ir até as pessoas. Camila conta que ela ligou para as lideranças para que elas ajudassem a construir o projeto de lei juntas.

Essa característica agregadora de Marielle também dá sinais de que suplantou sua morte. Dayane conta que o assassinato da vereadora obrigou a militância a reorganizar as bases sociais. “A gente tem visto grupos de mulheres que historicamente eram brigadas, sentando, dialogando e construindo junto.”

Debate de gênero

Na questão de gênero, um dos projetos da Marielle que foi aprovado cria uma campanha permanente de conscientização e enfrentamento ao assédio e violência sexual. Entre as ações previstas estão a promoção de campanhas educativas, a formação de servidores e prestadores de serviços, a divulgação das políticas públicas existentes de atendimento a vítimas e a conscientização de mulheres para que elas denunciem abusos.

Ainda sobre questões de mulheres, um outro projeto de lei aprovado cria o Dossiê Mulher Carioca, um estudo que reúne estatísticas periódicas sobre as mulheres atendidas pelas políticas públicas do município.

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Para Dayane, das pautas defendidas por Marielle, a de gênero foi a que mais avançou neste um ano. “As mulheres transformaram a dor em movimento. Como diz a Angela Davis: quando uma mulher negra se movimenta, toda uma sociedade se movimenta junto com ela, porque essa sociedade é pautada sobre o machismo e o racismo”, diz.

Na área da educação, um outro projeto de lei aprovado de Marielle beneficia sobretudo as mães que trabalham ou estudam à noite, ao criar o programa Espaço Infantil Noturno. O projeto de lei prevê o uso de creches e outras estruturas da rede municipal para oferecer atividades para crianças de até cinco anos para “atender à demanda de famílias que tenham suas atividades profissionais ou acadêmicas concentradas no horário noturno”.

Crítica da segurança pública

Voz crítica à atuação da polícia no Rio, Marielle tinha no debate da segurança pública um dos pilares de sua política. Essa é uma das pautas que sofrem retrocesso no atual governo federal, na avaliação da ativista Camila. “Um governo que tenta avançar em pautas militares e no armamento da população é um governo que ameaça a população negra e as mulheres alvos de feminicídio”, afirma.

Um dos projetos de lei de Marielle aprovados no ano passado tratava do cumprimento de pena de jovens infratores. Ele cria um “programa de efetivação de medidas socioeducativas em meio aberto”, voltado para adolescentes entre 14 e 21 anos condenados a tais medidas por terem cometido atos infracionais menos graves (sem violência ou ameaça). Entre as medidas, prevê para esses adolescentes uma cota de 20% de vagas de jovem aprendiz em órgãos da administração pública.

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“Marielle falava e atuava muito em segurança pública, uma pauta extremamente necessária que boa parte da militância não pauta”, diz Mariana. Segundo ela, esse é um assunto que precisa ser discutida para além de questões partidárias.

Manifestantes fazem passeata no centro do Rio de Janeiro para lembrar 120 dias do assassinato de Marielle e seu motorista, Anderson Gomes, e as vítimas durante operações policiais no combate ao tráfico de drogas (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Quem mandou matar?

Na semana em que o crime que matou Marielle e o motorista Anderson Gomes completa um ano, policiais da Divisão de Homicídios da Polícia Civil e promotores do Ministério Público do Rio de Janeiro prenderam o policial reformado Ronnie Lessa e o ex-militar Élcio Vieira de Queiroz, acusados respectivamente de atirar e dirigir o carro que perseguiu Marielle.

A investigação ainda não esclareceu quem foram os mandantes do crime e a motivação. “Ainda não sabemos a resposta fundamental, que é quem mandou matar”, diz a ativista Camila. Umas das linhas de investigação trabalha com a hipótese de ser um crime político com envolvimento das milícias.

“É um ano marcado pela dor da ausência, sobretudo pela dor da impunidade”, diz Dayane Gusmão. Para ela, mesmo que se pegue quem atirou e quem mandou matar, quem executou Marielle foi o sistema. “O mesmo sistema que não permite que uma mulher preta, favelada, sapatão, que ousa mover as estruturas, fique viva.”

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