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Eu moro na luta

Quem são as mulheres que lutam por moradia no Brasil

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Não existem dados unificados e atualizados sobre a população que vive em situação de rua no Brasil. Cada cidade recorre a diferentes métodos para estipular esse número. Estima-se que, em 2015, 101.854 pessoas estavam em situação de vulnerabilidade em 1.924 municípios do país, segundo o estudo nacional mais recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Para chegar a este número, o IPEA reuniu dados demográficos de pesquisas independentes feitas por prefeituras, comparando a população de rua com a quantidade total de habitantes de cada cidade, sem levar em consideração discriminações de gênero. Então quantas mulheres são moradoras de rua?

Elas são minoria. Mesmo sem uma amostra quantitativa real de mulheres que vivem em estado de vulnerabilidade, pesquisas municipais indicam que elas têm em média 39 anos, pelo menos um filho, e compõem um grupo de cerca de 20% da população de rua – predominantemente formada por homens entre 18 e 45 anos.

Em São Paulo, onde a maioria delas está, 89% sabe ler e escrever e deseja criar os filhos em uma moradia digna. Embora representem a menor porção dentro dessa parte da sociedade, elas são o grupo que corre mais riscos, expostas a crimes de feminicídio, abandono, abuso sexual, lesbofobia, estupro e outras violências específicas contra as mulheres, além da invisibilidade.

As histórias destas mulheres percorrem narrativas individuais distintas na rua, mas juntos os relatos expõem as fragilidades das políticas de habitação, saúde, educação, emprego, assistência social e segurança no cotidiano nas cidades de São Paulo, no Rio de Janeiro e em Salvador, três das quatro maiores capitais do país.

A complexa trajetória da mulher na rua carrega a materialidade da luta por direitos, além da subjetividade da condição feminina no espaço público. Em 2009, o Governo Brasileiro criou pela primeira vez a Política Nacional para População em Situação de Rua, e ligar o pontos entre os estados na reportagem traz a dimensão – ainda incipiente – destes dez anos de planejamentos e mudanças. Se é preciso criar visibilidade, a mulher que vive na rua é “invisível dentro do invisível”, e na luta feminista o reconhecimento das condições de vida dessa mulher ainda está no começo.

Minoria invisível

Próximo às escadarias da Catedral Metropolitana de São Paulo, na Praça da Sé, Tatiana, de 32 anos, observava os dois filhos pequenos brincando de correr de um lado para o outro, no fim de uma tarde de sábado, em março, na região central da cidade. Do total de 15.905 pessoas que vivem nas ruas do estado mais populoso do país, registradas no último Censo da População de Rua feito pela prefeitura e pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), em 2015, Tatiane é uma das 2.326 mulheres.

De olho no carrinho de bebê que carregava junto com uma sacola, Tatiana lembrava o caminho que percorreu nas ruas do Recife, de Minas e do Rio, antes de chegar definitivamente em São Paulo, em 2008, vivendo entre a casa, a rua e o abrigo durante esses dez anos. Do Recife não tem muitas lembranças, “não sei bem o que aconteceu com os meus pais, mas foi um pessoal que me criou”, contou.

Tatiane saiu do Nordeste aos 15 anos com o namorado para tentar a vida em Belo Horizonte. Lá, ela não tinha emprego, mas o companheiro trabalhava lavando carros para garantir “pelo menos um salário”. Depois de quatro anos em Minas, o casal que já tinha um filho decidiu apostar no Rio de Janeiro, e costumavam passar os dias pelas ruas do Catete, bairro da Zona Sul da cidade, de 1999 a 2008, quando decidiram se separar.

“A gente não discutia, mas eu fiquei com raiva dele, quando ele começou a amar outra. Aí, eu queria ficar livre e desimpedida. Vim pra São Paulo. A vida na rua é precária, é ruim, é difícil. E aqui estamos nós”.

Em São Paulo com um filho pequeno, Tatiana conheceu Fábio*, seu segundo marido. Quando engravidou novamente, em 2014, os dois trabalhavam como funcionários terceirizados do Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), na limpeza do Parque Ecológico do Tietê. Na época, disse ter ouvido do companheiro que a gravidez era “melhor que doença”, e trabalhou até os nove meses até conseguir ter o bebê no Hospital da Santa Cruz, na Vila Mariana, Zona Sul de São Paulo.

A vida de Tatiana é como a de muitas mães brasileiras solteiras. No fim do encontro na Sé, Tatiana apenas disse estar sem trabalho “há muito tempo” e, separada do marido há dois anos, conseguiu criar os filhos com moradia no Centro de Acolhida Fixa da Vila Califórnia, no distrito de Vila Prudente, mas ela conta que era longe do centro.

“Lá na ‘fixa’ da Califórnia é um bairro gostoso, bonito. Mas ficar lá é fora da realidade. Vou deixar as crianças com quem?”, disse ela, que agora aguarda uma vaga em um abrigo enquanto dorme temporariamente na sede do Movimento da População em Situação de Rua, no instalado no Viaduto Pedroso.

Para manter a família, Tatiana lida com a ajuda oferecida pelo estado e pelos movimentos sociais. O conceito de “família” usado na pesquisa de São Paulo é definido pelo conjunto “mãe e filhos”, levando em consideração a dificuldade de identificar a diversidade de vínculos e afinidades que podem se formar na rua. A maioria das pessoas, 88%, vive com a família conjugal (cônjuge e/ou filhos) e 10% com a família de origem (pai, mãe e irmãos). Mulheres com filhos ou parceiro são maioria na cidade: 51% entre as que estão em abrigos, e 38% entre as que vivem na rua.

A semente em Salvador

Do centro da praça Terreiro Bom Jesus, em direção a Igreja e Convento de São Francisco, em uma das ladeiras do Pelourinho fica a sede do Movimento Nacional da População em Situação de Rua de Salvador. “É um ponto estratégico”, sinalizou Maria Lúcia Santos Pereira, líder da região e coordenadora nacional do movimento (MNPR). Lúcia faleceu em 25 abril de 2018 e nos concedeu a última entrevista em vídeo, quando contou sobre sua passagem na rua e a construção contínua de um movimento social.

Desde 21 de março de 2010, a casa da sede na Bahia deixou de ser um local de distribuição de sopa da ordem franciscana para virar o centro de referência de luta por políticas públicas e acolhimento das demandas daqueles que não têm moradia e nem algum tipo de auxílio. Uma organização civil e apartidária. Nos cargos de coordenação, todos são ex-moradores de rua capacitados politicamente – com no mínimo dois anos de sobriedade, quando com histórico de dependência.

Maria Lúcia deixou a situação de rua em 2001. Conheça mais sobre sua história e a construção do Movimento em Salvador.

Desde o fim de 2017, Maria Lúcia passou a visitar os estados de Alagoas e Rio de Janeiro para a estruturar o grupo do Movimento nestas capitais. A decisão pelas duas cidades não foi por acaso, Lúcia observou o aumento das denúncias de violência contra a população de rua nas regiões.

“No Rio de Janeiro, é um outro momento. Quando fomos lá, percebemos que a galera não conversava e isso deixa todo mundo perdido. Não adianta pensar: ‘ah, o meu trabalho é melhor do que o do outro’, não, o trabalho do outro também é significativo. Tirar o ego. As pessoas precisam entender que a população de rua não é gerida por ninguém, não tem dono, é livre. Entendendo isso, então começa o trabalho em rede; as organizações se unem para pensar juntas como podem ajudar melhor aquela vida.”

No Rio de Janeiro, a liderança local Maralice Santos explica que existe um grande desafio para sensibilizar os governos sobre as demandas da população de rua.

“Ter mulheres para dialogar é importante. A maior parte da população de rua é composta por homens e as políticas foram feitas somente para eles. Já quebramos essa barreira, temos muitas mulheres em posição de liderança dentro do Movimento.”, conta Maralice Santos.  

O projeto de expansão trabalha para que, além da consolidação de novas sedes, seja possível deixar um legado para a próxima geração política do MNPR. Um livro também será escrito entreSão Paulo, Curitiba, Salvador e Belo Horizonte.

Ocupações: a ponte entre a rua e a moradia

“Ter uma moradia permanente” foi a opção que 51,4% das mulheres escolheram como condição para sair da rua, em resposta ao questionário do censo de São Paulo de 2015. O desejo da moradia digna e fixa aparece como meta, seguida da menção a “ter emprego fixo”, 36,6% dos casos.

Raquel Pinheiro saiu do Piauí para o Rio de Janeiro aos 14 anos – o sonho era conseguir um emprego e voltar formada na faculdade para Beneditinos, sua cidade natal, a 100km da capital Teresina. No Rio, chegou com uma amiga para ficar em uma casa no bairro da Glória depois de 10 dias de carona em caminhões.

“A ideia era conhecer o Rio de Janeiro porque achava lindo e maravilhoso – um tio meu havia uma vez levado fotos do Cristo Redentor, do Pão-de-Açúcar… dos lugares mais bonitos, feio não tinha nenhum. Eu, criança, então, vivia encantada, né?  Fugi de casa. Minha amiga tinha feito amizade com umas meninas da Glória [bairro da Zona Sul, na região central do Rio] que recebiam outras meninas para trabalhar em casa de família. Só que a dona da casa cismou que o namorado dela estava interessado em mim”

Raquel nunca mais teve casa, mas também nunca dormiu na rua. Naquele dia foi acolhida por um tio que morava no Caju, bairro da zona portuária. “Hoje, ela tem 35 anos e trabalha no comércio, está casada e é mãe de três: Vivian (16 anos), Rickelson (13 anos) e Laura (três meses). Os cinco moram na ocupação Manoel Congo, no Centro do Rio, vinculada ao Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), que se estende por 16 estados brasileiros na luta

O prédio onde a Manoel Congo existe hoje, na Cinelândia, atrás da Câmara dos Vereadores, pertencia ao INSS e estava há 10 anos sem uso. A ocupação abriga 42 famílias e foi adquirida por lei pelo Fundo de Habitação Nacional de Interesse Social, sistema destinado a implementar políticas habitacionais para a população de baixa renda.

São 42 famílias na Manoel Congo, que respondem às regras da Carta de Princípio, elaboradas por elas mesmas, e o não cumprimento pode levar a desocupação da unidade. (Foto: Yzadora Monteiro/AzMina)

O objetivo principal do MNLM é a luta por moradia digna para os trabalhadores de até três salários mínimos nas áreas centrais e em imóveis públicos abandonados.

“Nas remoções [de construções irregulares] a Prefeitura coloca não sei quantas mil famílias lá no final do mundo, não tem escola, não tem transporte, não tem nada. Por que eu tenho que morar lá com um bando de espaço vazio no Centro que poderia ser ocupado e transformado em moradia? , questiona Elizete Napoleão, coordenadora da ocupação, ao lado de Lurdinha Lopes, também na coordenação do movimento.

As mulheres das ocupações dividem suas atenções entre a luta por moradia digna, trabalho e cuidado com os filhos e a casa. Em seu turno na portaria, moradora também cuida do filho (Foto: Yzadora Monteiro/AzMina)
Os moradores se organizam em escalas para tomar conta da portaria e realizar a limpeza diária do prédio. (Foto: Yzadora Monteiro/AzMina)

Dentro da Manoel Congo, 80% das unidades do prédio estão no nome de mulheres.

“Quem ocupa é mulher, quem luta por moradia é mulher, quem pensa em casa é a mulher. Então, se é ela que luta, ela tem que ser a protagonista na hora das decisões.Depois que ocupa, vem chegando os machos que se acham donos. Por isso, a titularidade é das mulheres… Porque quem fica com filho na hora da separação é mãe, entendeu? Precisa dessa segurança.”, diz Elizete Napoleão.

Os próprios moradores definiram as normas de convivência que devem ser seguidas na ocupação. Dentre as regras, a violência contra mulher é motivo de expulsão do prédio. A proteção contra abusos, explica Paula Santoro, pesquisadora do LabCidade da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em direito à moradia, pesa pouco no conjunto de fatores que impedem a formação de uma estrutura que garanta a estabilidade da mulher que busca por uma casa. Elaborar uma política habitacional justa, analisa Santoro, depende da avaliação de como a desigualdade de gênero afeta as mulheres no acesso e na garantia a uma moradia.

“A família brasileira vem mudando. Hoje é monoparental e formada em torno da mulher. Não adianta dar uma solução habitacional para ela ter uma casa, porque ela precisa ter alguém para cuidar dos filhos, ganhar cesta básica ou ter um emprego formal ou então ela não vai conseguir sair dessa situação”, diz a pesquisadora, que há 11 anos acompanha a dinâmica da população em moradias de baixa renda, ocupações e remoções na cidade de São Paulo.

Raquel Pinheiros e as filhas Laura, de três meses, e Vivian, de dezesseis. Ela está de licença maternidade e voltará a trabalhar em breve. “Fico tranquila com meus filhos aqui dentro, tem regra para menores não saírem sozinhos do prédio.” (Foto: Yzadora Monteiro/AzMina)
O prédio possui onze andares, uma das prioridades na obra foi a instalação de um elevador para facilitar a vida dos mais velhos que moram em andares altos.(Foto: Yzadora Monteiro/AzMina)

Na Manoel Congo, no Rio, os dois primeiros andares são espaços de convivência para os que habitam os apartamentos distribuídos em dez pisos, 42 famílias com acesso a projetos de geração de renda, educação e cultura. Lurdinha Lopes, coordenadora da Ocupação, consegue equilibrar as contas do prédio a partir de duas ações: diminuir a quantidade de serviços contratados por serviços voluntários prestados pelos próprios moradores, o que é feito desde o início, em 2007; a segunda ainda é um projeto: construir um espaço de geração de renda coletiva para abater as despesas do condomínio, como água e luz.

“Aqui é nós por nós, só estamos aqui porque foi coletivamente e a gente só continua aqui se vencer o desafio de permanecer junto. Se sairmos, não vai ser por ordem de despejo do judiciário, e sim porque não conseguimos manter o prédio, aí vai ser horrível”, comenta.

Cobrar aluguel dos moradores é um dos pontos preocupantes quando a maioria dos que estão ali saíram de suas antigas casas por não conseguirem mantê-las. A média da renda dos moradores varia de 0 a 3 salários mínimos por família. Com as melhorias no prédio, como instalação de elevador para melhorar o acesso dos mais idosos aos andares altos, a luz aumenta e os valores vão precisar ser calculados para cobrir os gastos comuns que passam, assim, a afetar a renda familiar.

Sala de administração do prédio, coordenado por Elizete Napoleão e Lurdinha Lopes. (Foto: Yzadora Monteiro/AzMina)
Quadro de chaves dos apartamentos e áreas comuns. (Foto: Yzadora Monteiro/AzMina)

O Rio de Janeiro possui cerca de 35 ocupações que variam de realidade. O caso da Manoel Congo é uma exceção e foi reconhecido em março de 2018, com a homenagem da Medalha Chico Mendes de Resistência, direcionada àqueles que lutam pelos Direitos Humanos e por uma sociedade mais justa.

A maior ocupação do Brasil

Na região central de São Paulo, Janete dos Santos, de 56 anos, mora com a filha de 12 anos e o marido, no sexto andar da ocupação Mauá, no número 340 da rua de mesmo nome. Foi parar lá porque já conhecia a coordenadora geral, Ivanete Araújo, amiga a quem pediu ajuda depois que saiu da prisão, em 2014. Além da adolescente, que ficou sob a guarda dos avós, no bairro do Tremembé, enquanto cumpria a pena, Janete tem mais dois filhos homens casados.

“Se eu tivesse saído sem ter um lugar pra ficar, eu ia voltar a fazer coisas erradas. Não cheguei a ficar na rua, mas fiquei na casa dos meus filhos por uma semana até conseguir falar com Ivanete”, conta a paulista nascida em Pirituba, que esperou até um ano para se estabelecer na Mauá e trazer a filha para morar com ela.

O prédio hoje abriga mais de cem mulheres e 237 famílias distribuídas em seis andares. Nos fundos do térreo, na área externa, moradias foram construídas por 15 famílias que chegaram na ocupação após serem removidas de suas antigas casas.

O Hotel Santos-Dumont, onde funciona atualmente a Mauá, foi abandonado pelos proprietários ainda na década de 1980. Sem uso por mais de vinte anos, o espaço começou a ser ocupado em 2007, e pertence atualmente à prefeitura de São Paulo, que comprou o prédio em 2015, embora a negociação só tenha se oficializado em 2017, no valor de R$18 milhões.

Hoje a ocupação é um dos mais emblemáticos cenários da luta entre duas garantias previstas na Constituição: o direito à moradia e o direito à propriedade. Somente em São Paulo, há 130 mil famílias sem casa – e 290 mil imóveis não habitados.

Mas a ausência de uma política habitacional que inclua a revitalização e ressignificação de prédios abandonados, e não apenas siga empurrando a população de baixa renda para as periferias das cidades, dificulta inclusive a doação de imóveis que pertencem ao poder público para programas sociais.

Os moradores resistiram no prédio após travarem luta em conjunto com o Movimento pela Moradia na Luta por Justiça (MMLJ) e outros grupos, contra uma ordem de despejo, suspensa em outubro pela 16ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. A ocupação é considerada ilegal. Os moradores aguardam cadastro do governo para regularizar a moradia, além da definição do valor que terão que pagar por cada unidade habitacional.

Assim como as 237 famílias que vivem na Mauá, Janete e o Marido pagam a mensalidade de R$ 180 para o condomínio, que inclui água, luz e rede de esgoto.

Do pátio externo da Mauá dá para avistar parte das janelas dos quartos ocupados do imóvel, no Centro de São Paulo (Foto: Mariana Moreira/AzMina)

Próximo dali, a 600 metros e ainda na região da Luz, no número 900 da avenida Prestes Maia, fica a maior ocupação do país com cerca de 500 famílias, mais de 800 pessoas divididas em duas torres, uma com 21 andares e a outra com 9. Cada uma com 13 quartos. O caminho entre um prédio e outro faz parte da rotina de Janete, que ajuda na mediação de conflitos no conselho da Prestes Maia em parceria com voluntários e assistentes sociais do projeto Mães da Sé.

Para Janete, a ocupação é um suporte para as pessoas em situação de vulnerabilidade na rua e a ponte para o acesso a uma moradia digna. Conseguir ocupar um dos quartos, tanto na Prestes Maia quanto na Mauá significa conseguir se adequar ao cotidiano da ocupação – o espaço permite visitas, por exemplo, mas só podem dormir mediante autorização; também é proibido o uso de drogas.

“A pessoa na rua está acostumada com um sistema, e na ocupação a gente não deixa andar sem camisa no corredor, não pode andar com roupas íntimas. Nem bebidas e drogas a gente permite. Às vezes, a pessoa é retraída porque ela não tem nada dentro da casa dela, e não quer conversar com ninguém.”

A gente identifica muito isso em casos de depressão. Uma vez, uma filha xingava muito a mãe, xingava muito, aí eu fui lá para entender. A briga era porque ela só tinha um pacote de macarrão e a criança foi fazer, não tinha o que colocar, e botou vinagre. Ou seja, estragou a única refeição que eles tinham. A briga toda era falta de alimentação dentro de casa.”

Para estes casos Janete, hoje uma das seis coordenadoras da Mauá, consegue arrecadar com instituições e em eventos uma cesta básica. No dia da entrevista, Janete recebeu pela primeira vez doações de voluntários para distribuir entre as 130 mulheres que vivem no prédio. As mulheres ganharam 280 aparelhos de barbear, 825 absorventes, 150 calcinhas, 355 esmaltes, 35 itens para unha, 212 itens de higiene, e mais centenas de produtos para mulheres que foram divididos também com mulheres que vivem na Cracolândia, na região da Luz.

Para a pesquisadora Paula Santoro, as mulheres que vivem em situação de rua e em moradias temporárias e ocupações correm o risco de sofrerem abuso e exploração para garantir um espaço para ficar, e a atuação de redes e coletivos só põe às claras os pontos de ausência do estado.

“Ideal seria via poder público, que deveria oferecer soluções concretas, porque a outra opção de ajuda na periferia, por exemplo, é a igreja. Há uma soma de vulnerabilidades, e a da pessoa em situação morador de rua é uma, e a da pessoa em moradia precária é outra, mas ambos são dependentes de apoios sociais e criam redes onde podem correr riscos e abusos, principalmente as mulheres, em regiões onde o estado é completamente ausente”.

Mulheres que vivem na ocupação Mauá recebem doações de voluntários em São Paulo (Foto: Mariana Moreira/AzMina)

Violência na rua

Eu já fui estuprada também”. É com essa declaração que Sara, de 34 anos, começa a contar a experiência que viveu nas ruas do Rio de Janeiro, e se inclui na estatística mais recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que registrou uma média de 135 estupros por diano Brasil em 2016 – um total de 49.275 casos por ano. Essa média, no entanto, leva em conta os crimes registrados. Assim como o medo de denunciar abusos cala a voz das mulheres no espaço privado, o silêncio das mulheres em situação de rua é comum nas relações de exploração, abuso sexual e de dependência química.

No dia em que Sara foi violentada entre os bairros do Jacaré e Manguinhos, na Zona Norte do Rio, ela estava fumando crack, contou que “não tava na noia, tava legal”, mas ainda pouco acostumada com o “ritmo de ficar na rua”. Com dor nos pés de tanto andar e sem força, Sara foi estuprada por três homens que disseram, inicialmente, oferecer ajuda a ela perto da estação de trem que liga os bairros.

“Se você andar muito, seu pé caleja, e me deu uma bolha embaixo. Eu estava usando droga direto para ficar acordada, e teve uma hora que o cansaço bateu. Sentei com uma bolha grandona, aí dois caras falaram que iam me levar para um lugar para eu dormir, me arrastaram para a linha do trem, aí tinha um coroa lá. Eu estava tão cansada de vários dias. Até fiquei com a voz dele gravada na minha cabeça”, relatou Sara, numa tarde de abril, em frente à Câmara de Vereadores da cidade, no Centro.

Sara, de 34 anos, vive nas ruas do Rio de Janeiro. (Foto:Yzadora Monteiro/AzMina)

Enquanto caminha na praça, Sara chama “entra aqui” antes de se sentar e contar a história como se fosse apenas mais uma das situações que vive na rua, lugar onde transita desde os 21 anos. Território que descreve como “perigosa para quem não sabe viver; para quem sabe, é tranquilo”.

Na praça, ela cria uma realidade de intimidade com um companheiro no espaço em que cria e reconhece como casa, com bancos que demarcam o que seriam cômodos, entrada e saída, e guarda colchões e objetos pessoais. Os três filhos pequenos moram com uma ex-sogra de Sara, na Baixada Fluminense. Ela diz que estar na rua é uma escolha individual. Uma decisão que tomou enquanto trabalhava como atendente de uma loja do aeroporto do Galeão e morava em uma casa própria construída em um terreno que dividia com as irmãs, na cidade de Queimados, Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

“Sabe como eu resumi tudo no final? Que o meu negócio não é a droga, o meu negócio é a rua. A rua é um vício. Na casa toda bonitinha que a minha tia construiu para mim sabe o que eu fazia? Pegava um pedaço de papelão e ia dormir no quintal. Não aguentava ficar dentro de casa, meu coração pedia para ir para a rua. Era a questão de estar na rua”, revela Sara, em uma explicação única sobre experiência na rua, expondo a complexidade da condição de vulnerabilidade.

Na época do estupro, Sara não foi à delegacia denunciar o caso, e o único serviço público que costuma ir regularmente é o Centro de Atenção Psicossocial Álcool-Drogas (Caps-ad), no bairro do Maracanã, na Zona Norte do Rio, para tratar a dependência química. No Rio, a prefeitura oferece 30 unidades como essa para a população de rua adulta e infantil.

Além das clínicas para tratamentos de dependentes químicos, o Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza atendimentos por meio do Consultório na Rua, equipes de saúde que trabalham diariamente com a população de rua, encaminhando homens e mulheres para postos e hospitais. As regiões de consumo de drogas, tipo as cracolândias, são chamadas de “cenas de uso”, de acordo com Daniel Oliveira de Souza, um dos articuladores do Consultório na Rua no Rio de Janeiro e membro da Associação Brasileira de Redução de Danos (Aborda). Há nove anos trabalhando com técnicas de redução de danos no Centro e na Zona Norte da cidade, Daniel explica que casos como o de Sara são comuns na “cena”, e chegam a atingir cerca de 90% de mulheres, exploradas de alguma forma por homens em troca de proteção, dinheiro e acesso à droga.

“É uma sociedade machista e na rua as relações não são diferentes, seguem o mesmo processo. A mulher na rua, em grande parte dos casos, já vem de uma violência na família, de abandono. Já é uma perda de direitos estar nessa condição, e para a mulher é muito mais difícil. O homem que, em tese, ajudaria a protegê-la na rua, acaba praticando alguma violência, agride e estabelece uma relação de posse e faz dessa mulher um objeto. Às vezes, as pessoas ficam sem dormir por três, quatro dias depois de um uso muito intenso, e quando o corpo não aguenta mais, relaxam. Costumam dormir sob o sol, na linha do trem, e é nesse momento que acontece a maioria dos abusos, 90% deles com mulheres. É muito comum elas falarem “fizeram sexo comigo e eu não sei quem foi”. Muitas vezes o próprio companheiro é cafetão dela, e usa a mulher para gerar renda”, relata Daniel.

Maternidade e adoção compulsória

De uma forma geral, a população de rua é estigmatizada e sofre mais de uma violência ao mesmo tempo. Todas as mulheres que participaram da reportagem relataram algum tipo de violência física ou psicológica vivida na rua. Além do abuso sexual e da discriminação de gênero, um outro tipo comum de opressão que atinge as mulheres na rua é a possibilidade de perda de vínculo por adoção compulsória, prática comum quando a mãe está em situação vulnerável, é usuária de droga, e em geral atinge mães pobres, negras e pardas.

Em um vídeo publicado no perfil da Defensoria Pública do Estado do Rio, Elicarla Alvarez, de 36 anos, conta como foi a situação em que quase perdeu a filha, hoje com pouco mais de um ano de idade. Ela explica que é comum as equipes de assistentes sociais acompanharem o pré-natal de mulheres vulneráveis e mapearem os recém-nascidos apropriados para adoção.

A situação da maternidade de Elicarla, relata a defensora Carla Beatriz Nunes, foi a primeira que o órgão acompanhou para a população em situação de rua. Elicarla é deficiente visual e já fazia parte da população de rua atendida pela instituição, estava regularizando na época o cadastro para receber o benefício assistencial ao idoso e à pessoa com deficiência (BPC) que garante um salário mínimo, um valor que a ajudaria a ter condições de cuidar do bebê. Elicarla teve complicações após o parto e passou duas semanas internada no hospital, sendo orientada pela assistência social de que não poderia sair da internação com a criança a não ser que estivesse acompanhada de um outro responsável.

“Comprometimento psicótico ela não apresentava e também não era agressiva. O estado não tem que ajudar a criar uma vida só para a criança, mas proporcionar apoio para que as mães tenham condições de cuidar delas. A mulheres são as mais afetadas pela condição de rua e eu vi até que ponto vai o descompromisso com os direitos humanos”,afirmou Carla, uma das defensoras integrante do Núcleo de Defesa de Direitos Humanos da defensoria, “Eu visitei com a equipe o lugar que ela estava ficando. Era humilde, mas digno, completamente possível”.

O “População de rua 2013: um direito à cidade” não discrimina mães e pais que vivem com filhos sem moradia; em São Paulo, essa parcela corresponde a 1% da população de rua.

“É muito complexo e muito grave, porque as políticas são incipientes. Hoje, eu identifico como uma das coisas mais delicadas a situação daquela mulher que tem filhos e prefere ficar nas ruas porque não há abrigos apropriados para famílias, e provavelmente vai ter esse rompimento de vínculo em algum momento. A principal demanda é que as mulheres, usuárias ou não, têm que  permanecer com os filhos. Não há também um estudo abrangente sobre as consequências emocionais desse rompimento, mas podemos reduzir a chance dessas consequências.”

Ouvir as mulheres da rua

Entre a casa e a rua circulam 20.370,8 mulheres em situação de vulnerabilidade no Brasil, de acordo com o IPEA. A maior parte desse grupo, de acordo com as pesquisas, tem baixa escolaridade, cerca de 39 anos e pelo menos um filho. Na rua, de acordo com a último censo de São Paulo, um pequeno grupo de mulheres participa de movimentos sociais, apenas 0,2%.

A visibilidade é uma das ações mais eficazes para a desconstrução dos preconceitos contra a população de rua. As narrativas ajudam a desvendar parte destas frações numéricas e tornar possível o real entendimento da vida na rua. Na internet, o projeto SP invisível alcança mais de 300 mil pessoas e já mobilizou 500 voluntários entre ações pela cidade, contra o frio e a fome. Rachel Daniel tem 22 anos e é voluntária há três anos no projeto, que atua desde 2014 na publicação de histórias de vida das pessoas que vivem na rua. A comunicóloga diz saber que sozinha não vai tirar ninguém da rua, mas afirma a importância de conhecer as histórias:

“Existe um senso comum sobre a mulher na rua, dizem que elas são mais difíceis de conversar, são mais fechadas porque é uma vida muito sofrida; e é mesmo. Quando cheguei na rua para entrevistar só mulheres, comprovei que de fato acontecia, mas elas não reconheciam, não chegava na cabeça delas que ser mulher na rua é pior. Eu ouvia: ‘durmo com um facão porque tenho medo de que me estuprem”, e ainda assim ela não percebia.  Às vezes a gente anda nas ruas e não vê nenhuma mulher, mas elas existem – só que são marginalizadas muitas vezes, por serem mulheres, por estarem nas ruas, por serem negras e por vezes marginalizadas dentro do próprio grupo da rua.”

A relação de poder entre o homem e a mulher tem nuances na rua, explica Janaina Dantas, Assistente Social e pesquisadora da Escola de Serviço Social da UFRJ.

“Há uma dupla penalização por serem mulheres e por estarem na rua. As que rompem com o ciclo de violência doméstica e decidem ir para a rua, vão enfrentar vários obstáculos, terão a dignidade questionada, e ter um companheiro, na rua, por exemplo, é uma estratégia de sobrevivência. E ela prefere ficar com um companheiro violento a ficar sozinha”, relata a pesquisadora, que acompanhou a experiência de três mulheres cariocas na rua em 2017, em encontros do Fórum da População em Situação de Rua.

Sozinhas ou acompanhadas de seus parceiros, parceiras e filhos, percebemos durante as conversas que a rua também é percebida como local de mudança de vida dessas mulheres, por mais hostil que seja esse ambiente, ressignificado por elas e transformado em espaço de luta pelos direitos humanos e por melhores condições de trabalho.

A baiana Jussara, há 23 anos na rua, é lésbica, tem dois filhos que moram com a avó materna, vive pelas ruas do Pelourinho e luta há três anos para regularizar o pagamento da pensão com o pai das crianças, enquanto namora uma mulher. Laís, de 24 anos, mora no Rio, e conta com a ajuda do pai para criar a filha que visita de tempos em tempos, quando consegue “manguear” grana suficiente para vê-la. A violência e o preconceito que fizeram a Felipa sair de casa fazem parte do cotidiano da mulher trans, agredida por estar em situação de rua e por sua orientação sexual, mesmo conseguindo assistências eventuais em abrigos desde os 15 anos. Aos 27 e com uma carteira que garante a sua cidadania com o nome social, como ela conta no áudio, ainda luta para conseguir ser uma cidadã.

Ouça três histórias de mulheres, por onde nossa equipe de reportagem passou:

Leia também: Maternidade Lésbica 

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