
– No meu tempo de escola, tinha uma coisa meio besta dos meninos ficarem
passando a mão na bunda das meninas, assim, do nada. Vocês fazem isso?
– Ah, às vezes…
– E vocês não acham que isso é errado?
– A princípio está errado, mas elas dão liberdade… elas até dão risada.
– Mas e o que é dar liberdade?
– Ah, é que elas não se invocam… elas gostam.
(trecho de conversa com dois adolescentes)

O ano é 2016, e o cenário é uma escola da rede pública de Porto Alegre – mas poderia muito bem ser em qualquer lugar do Brasil. Nos intervalos das aulas, vê-se adolescentes “sarrando” – gíria importada do funk, o mesmo que “se esfregando” – nem sempre com o consentimento de ambas as partes. Pelos corredores, professores fazem de conta que não veem; se alguém protesta contra os assédios, a primeira preocupação é saber se a reclamação os fará perder tempo. O conteúdo é muito, os períodos de aula são curtos, e o salário, menor ainda.
Na escola brasileira, meninas, meninos e professores – e gestores e coordenadores pedagógicos – são parte de um microcosmo que reproduz desigualdades e violências de gênero encontradas na sociedade. E, embora o direito à educação para a igualdade de gênero esteja previsto na Constituição, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e nas diretrizes curriculares nacionais, as escolas vêm falhando sistematicamente, porque deixam de discutir esses assuntos. Dentre 25 unidades federativas que sancionaram planos estaduais de educação até o fim do ano passado, 12 (11 estados e o Distrito Federal) excluíram menções à palavra “gênero” dos documentos, de acordo com um levantamento feito pela plataforma De Olho nos Planos.
Os planos de educação têm força de lei e estabelecem metas para que a educação do município, do estado ou do país avance em um período de dez anos. Por serem planos de longo prazo, eles são instrumentos fundamentais para enfrentar o problema da descontinuidade das políticas públicas educacionais no Brasil.
“Fazer referência à gênero e diversidade nesses documentos é, primeiramente, reconhecer e diagnosticar o problema da desigualdade em nossa sociedade”, diz Claudia Bandeira, assessora da Unidade Diversidade, Raça e Participação da ONG Ação Educativa, que coordena a plataforma De Olho nos Planos.

Conservadores apostam na desinformação
Como se não bastasse, atualmente, sete projetos de lei que estão no Congresso Nacional ameaçam interromper as poucas iniciativas de discussão desse assunto. As propostas são recheadas de termos como “doutrinação” e “ideologia de gênero”. Seis desses projetos foram apensados entre si e um ainda tramita sozinho.
Outra estratégia dos setores mais conservadores tem sido a de constranger os docentes que abordam gênero e diversidade na sala de aula. No ano passado, um professor de biologia do Distrito Federal recebeu uma notificação extrajudicial de uma parlamentar da bancada distrital evangélica depois de passar um trabalho para discutir a melhor inserção de alunos trans na comunidade escolar.
A ação da deputada Sandra Faraj (do Solidariedade) pegou o professor Deneir Meirelles de surpresa, mas, segundo ele, as consequências acabaram sendo positivas. “Houve uma resposta de apoio a mim muito forte na comunidade, o colégio realizou uma audiência pública. Os objetivos pedagógicos acabaram extrapolando a sala de aula”, comemora.
Ações como a da deputada, contudo, acabam desencorajando professores e gestores. Embora a Secretaria de Educação tenha respaldado Deneir – e feito questão de destacar que a abordagem sobre gênero na escola não é ilegal – muitas unidades passaram a evitar certos assuntos.
Recentemente, por exemplo, algumas escolas ficaram reticentes em aderir à programação da Semana Nacional de Luta contra a Aids, por temerem problemas com pais de alunos adolescentes, segundo informou a Secretaria de Educação do DF.
“É muito ruim para a educação que os professores sejam de tal forma intimidados a ponto de optarem por não realizar qualquer abordagem crítica, como mecanismo de preservação de suas atividades docentes”, lamenta a presidente da ONG Themis – Gênero, Justiça e Cidadania, Fabiane Simioni.

Projetos têm tramitação acelerada
O avanço da onda conservadora no Congresso e a disseminação de termos como “ideologia de gênero” são alimentados pelo oportunismo político.“As pessoas acham que temos escolas verdadeiramente empenhadas em desconstruir estereótipos, mas isso não poderia estar mais distante da realidade”, diz Luis Felipe Miguel, professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB). “O que havia, entretanto, antes do afastamento de Dilma Rousseff, era uma política geral de que determinadas hierarquias podiam ser questionadas – e a escola era o espaço para a reflexão sobre isso”, pondera.
A mais ambiciosa das propostas contra o direito à educação de gênero é a do programa Escola Sem Partido, o PL 867/2015, de autoria do deputado Izalci Lucas (PSDB/DF). O texto prevê, entre outras coisas, que “a educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’.”
Em outubro, a Câmara instalou uma comissão especial para análise do PL da Escola Sem Partido (e dos outros seis que foram apensados à proposta), o que deve acelerar a tramitação. Isso alarmou ainda mais os setores preocupados com os direitos humanos e a redução das desigualdades de gênero. Uma comissão especial abrevia o caminho tradicional que as propostas precisam fazer no legislativo, eliminando a necessidade de serem discutidas nas comissões ordinárias da Casa.
Além disso, a tal comissão é formada, em grande parte, por deputados da bancada religiosa.
A reportagem tentou contatar três dos parlamentares com projetos de lei sobre essa temática. Por três semanas, fizemos ligações ao assessor de Izalci, mas ele informou que o deputado estava inacessível. O assessor de Erivelton Santana (PEN/BA), por sua vez, parou de atender as ligações quando explicamos a pauta.
O único a responder foi Rogério Marinho (PSDB-RN), autor do PL 1411/2015. A proposta, que tramita isoladamente, tipifica o crime de “assédio ideológico” contra os alunos, que seriam obrigados a tomar posições políticas dentro da escola. “Na realidade, o assédio ideológico é quando o doutrinador fere normas nacionais e internacionais. A lei é para garantir e proteger a pluralidade de pensamento em sala de aula, em todos os sentidos, teórica, metodológica e científica”, disse Marinho.
Além da ofensiva nacional, há uma série de outras iniciativas contra a educação de gênero em âmbito estadual e local. Em Alagoas, por exemplo, a iniciativa batizada como “Escola Livre” foi sancionada em maio do ano passado. Já há duas ações no Supremo Tribunal Federal (STF) para impugnar a lei.
“Penso que essas normas devem ter vida curta, pois estou absolutamente convencida de que o STF vai declarar a sua inconstitucionalidade. No entanto, durante a sua vigência, produzem danos enormes”, afirma Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão. “A escola é um espaço estratégico, seja para criar uma educação de formato colonizador, como aconteceu até a Constituição de 1988, seja para promover uma educação de caráter emancipatório, que é o projeto constitucional”, completa.
Não bastasse irem de encontro à lei máxima brasileira, esses projetos – e mesmo os planos de educação que não contemplam a igualdade de gênero – estão na contramão de uma série de tratados dos quais o Brasil é signatário e das recomendações da Organização das Nações Unidas (ONU) para o desenvolvimento das populações.
Religião na escola
Também é preocupante a volta do ensino religioso em alguns cantos do país sem a vigência da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A BNCC está prevista no Plano Nacional de Educação e deve estabelecer exatamente os conteúdos essenciais aos quais todos os estudantes brasileiros terão o direito de ter acesso durante a educação básica. Atualmente, enquanto a BNCC é discutida pela sociedade em âmbito nacional, o tema é provisoriamente regulado de forma regional.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, uma reestruturação curricular estabeleceu a obrigatoriedade do ensino religioso não proselitista nas séries iniciais, embora essa previsão já existisse desde 1989, conforme informou a Secretaria de Educação do estado. Qualquer professor habilitado para dar aula às crianças, ou seja, com o nível médio, pode ministrar a disciplina.
“O problema é que, quando não há formação e orientação adequadas, o professor fecha a porta da sala de aula e, se quiser, reza o pai-nosso com os alunos”, comenta Paulo Henrique Carmona, que dá aula de educação física na rede pública do Distrito Federal. Em 2015, grupos religiosos distribuíam “biblinhas” em uma das escolas que Carmona trabalhava – e em que provavelmente nem todas as famílias dos alunos eram cristãs. A prática só foi interrompida quando ele e outros colegas questionaram a direção.
“Este é um território não desbravado, e nós o vemos com preocupação porque, dependendo do interesse de quem está na ponta, vira catequese“, reconhece Gilberto Garcia, presidente da comissão que discute o assunto no Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão responsável pela elaboração da BNCC.
A expectativa de Garcia é que, até março, a comissão apresente um parecer sobre o tema.
Para Fernando Seffner, coordenador do Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a “gritaria” dos grupos conservadores é um indicativo da força da escola. “A influência do ambiente escolar sobre as novas gerações cresceu enormemente nos últimos anos, roubando um papel que antes era da família e da igreja”, contextualiza. “Eu sou um otimista e acho que a resistência está nascendo justamente dentro das escolas, como pudemos ver durante as ocupações estudantis.”
“O professor disse que eu precisava de um homem pra me ‘colocar na linha’”

Brenda Neves, 16 anos, aluna da rede pública do Distrito Federal, lembra-se bem de como foi tratada por um professor de educação física ao assistir a um jogo de basquete entre os meninos da mesma idade que ela.
“Ele saiu da quadra e veio me dizer que eu não poderia ficar lá como eu estava vestida, de shorts, pois eu estaria desconcentrando meus colegas”, conta.
Mesmo quando tentam reagir, a maioria das meninas acaba sufocada. Marina*, 11 anos, levou uma chamada quando entrou na sala de aula para tirar satisfação com um menino que havia passado, sem consentimento, a mão na bunda de uma amiga dela. “A professora não quis saber por que eu estava revoltada, simplesmente me mandou para fora e disse que eu não podia interromper a aula dela”, relata. “Pelo menos, ele ficou envergonhado”, conforma-se.
O silêncio dos professores é um dos motores da opressão à qual as meninas – e os estudantes LGBT, em geral – são submetidos. E as iniciativas de parlamentares conservadores para impedir que estes temas sejam debatidos em sala de aula só faz piorar o quadro, alimentando um clima de medo de intervir.
“A maior parte (dos professores) fecha os olhos para tudo. Ninguém quer perder tempo de aula para discutir essas coisas”, afirma a professora Miriam Pretto, 54 anos, que dá aula de história em uma escola pública de Porto Alegre. A falta de formação e de habilidade para tratar de assuntos considerados espinhosos, diz Miriam, contribuem para o problema, fazendo com que apenas casos graves tenham consequência.
E, muitas vezes, nem esses. No DF, a aluna Ana Paula*, 18 anos, fez uma queixa formal à regional de ensino sobre os assédios praticados por um professor. Segundo o relato da jovem, o docente fazia constantes piadas machistas e homofóbicas e teria dito à Ana Paula que ela “precisava de um homem” para colocá-la “na linha”. A adolescente, que prefere ficar anônima para não sofrer retaliação, reclamou da condução do caso.
“Na regional, eu e minha mãe fomos tratadas com descaso, como se a nossa queixa fosse irrelevante. A ouvidora nos disse que não poderia fazer nada e, até hoje, não tivemos uma resposta oficial da escola”, lamenta.
Gestores são coniventes

A diretora de Educação do Campo e Eixos Transversais da Secretaria de Educação do DF, Renata Parreira, admite que o problema é estrutural. “Infelizmente, esse tipo de coisa acontece, e, em muitos casos, há a conivência da direção da escola”, comenta. No DF, 49% das unidades trabalham questões relativas à gênero e sexualidade, segundo revela um levantamento feito pela secretaria, cujos dados consolidados devem ser divulgados neste semestre. Imagine se o número fosse menor!
Renata explica que o órgão fornece periodicamente cursos de formação sobre gênero e diversidade, entretanto, as aulas acabam sendo frequentadas por profissionais que, naturalmente, já têm mais consciência sobre a importância desses assuntos.
“Às vezes, falta ao professor conhecer, até mesmo, as normativas mais básicas”, acrescenta Simone Soares, também da equipe de Renata.
“É nossa preocupação saber como fazer para que o recado chegue aos ouvidos de quem realmente precisa.”
Nessa batalha, uma das tarefas mais difíceis é questionar os discursos dominantes, que costumam trazer padrões de gênero profundamente arraigados. Um exemplo disso é o famoso dito “meninas amadurecem mais cedo” – ideia que, na verdade, acaba “justificando” violências como o casamento infantil e a gravidez precoce.
“No fim das contas, essas coisas retiram das meninas o direito à infância ou o direito de estarem na adolescência sem serem vistas de forma inadequada (sexualizada)”, comenta Anna Cunha, oficial de Programas do Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa, na sigla em inglês).
Nem tudo são tristezas: os esforços para formar professores em direitos humanos

No livro “Diferentes, não desiguais” (Editora Reviravolta), os autores Beatriz Accioly Lins, Bernardo Fonseca Machado e Michele Escoura descrevem o caso fictício de João, um adolescente que agrediu uma professora com uma carteira. Inspirada em uma situação real de 2013, ocorrida na rede pública de ensino de São Paulo, a história ilustra como as interpretações acerca do comportamento do estudante trazem preconceitos de gênero.
“João mora com a avó, que o sustenta. Quando a diretora anuncia que aquela família é desestruturada, ela está pressupondo que há um modelo de família que, se seguido, garantiria uma educação mais adequada”, detalham os autores. “A sociedade é carregada de preconceitos, logo, a escola e os professores também o são”, comenta Simone Soares, que trabalha na Diretoria de Educação do Campo e Eixos Transversais da Secretaria de Educação do Distrito Federal.
No DF, há a oferta periódica de formação em gênero e diversidade para os professores, entretanto, boa parte dos que procuram os cursos já têm um interesse natural pela temática. Segundo a professora Gina Vieira Ponte, que liderou um premiado projeto sobre valorização da mulher, há também a falsa ideia de que educação para direitos humanos implica em um “afrouxamento acadêmico”. “Quando, na verdade, é justamente o contrário: se o aluno se vê representado, ele aprende muito mais”, comenta.
Foco nas exatas
Pensando em atrair outros profissionais, a seleção do ano passado dos docentes que fizeram o curso Gênero e Diversidade na Escola – um projeto da Universidade Federal do Rio de Janeiro em parceria com o Programa Rio Sem Homofobia – privilegiou professores oriundos das ciências exatas. “Eles costumam ser raros nesse tipo de formação”, disse Jaqueline Jesus, colunista da Revista AzMina, que coordena o curso.
Quem passa pela formação faz quatro módulos: sobre gênero, sexualidade, diversidade e relações étnico-raciais e educação. No último módulo, os professores precisam desenvolver atividades pedagógicas em suas escolas.
“A ideia não é formar acadêmicos que vão desenvolver projetos de educação para a diversidade, mas sim capacitar professores para que tenham a habilidade de tratar dessa temática com os alunos de formas diversas”, explica Jaqueline.
Nessa mesma linha de estímulo à formação docente, o governo federal lançou, em novembro passado, o Pacto Universitário pela Promoção do Respeito à Diversidade e da Cultura da Paz e Direitos Humanos. Iniciativa da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça e Cidadania, em parceria com o Ministério da Educação, o pacto prevê que as instituições de ensino superior implementem medidas para o fortalecimento dos direitos humanos, não apenas no que diz respeito ao ensino, mas também nas áreas de pesquisa, extensão, gestão e convivência acadêmica.
O cientista político Luis Felipe Miguel, professor da Universidade de Brasília (UnB), acredita que a melhor forma de atrair “aliados” para a causa é mostrar como a desigualdade de gênero resulta em violência. “Os estereótipos não são inofensivos”, ressalta.
Além disso, desconstruí-los traz mais liberdade para todos. “Quando a gente fala em discutir gênero na sociedade, estamos também buscando formas de garantir que as pessoas sejam mais felizes sendo quem elas realmente são”, finaliza Jaqueline.
Uma professora porreta e suas alunas inspiradoras

Se mudar a cultura escolar no que diz respeito à educação de gênero demanda esforço e comprometimento, a experiência mostra que, quando isso ocorre, os resultados são surpreendentes. Em Ceilândia, uma das regiões mais carentes do Distrito Federal, o trabalho de uma professora de português transformou a vida de jovens entre 14 e 16 anos.
O projeto Mulheres Inspiradoras, liderado por Gina Vieira Ponte, virou livro, ganhou cinco prêmios de educação e direitos humanos – entre eles, um internacional – e está prestes a ser estendido para 15 escolas do DF, em uma parceria com um banco colombiano.
Mulheres Inspiradoras nasceu em 2014, depois de Gina, que usa o Facebook como ferramenta pedagógica, se deparar com um vídeo de uma aluna de 13 anos dançando de forma hipersexualizada. “Ela dançava muito bem, e tinha o direito de explorar isso. O que me incomodou foi o fato de parecer que ela não tinha consciência da conotação sexual do vídeo”, lembra Gina.

A professora, então, criou um projeto para levar a experiência de vida de diferentes mulheres para os adolescentes do Centro de Ensino Fundamental 12 de Ceilândia. O trabalho foi desenvolvido ao longo de um ano, em três fases. Primeiro, os alunos conheceram as biografias de uma dezena de mulheres e meninas – entre elas, jovens como eles, como a ativista paquistanesa Malala Yousafzai e a alemã Anne Frank. Depois, leram seis livros escritos por autoras e ouviram os relatos de mulheres inspiradoras que nasceram ou foram criadas em Ceilândia. Por fim, foram convidados a entrevistar mulheres inspiradoras da vida deles.
Ao longo do processo, Gina mesclou conteúdo de língua portuguesa e também análises sobre a representação feminina na mídia. “No começo, foi um choque. Tipo: ‘por que estamos discutindo isso na aula?’”, lembra Brenda Neves, 16 anos, uma das adolescentes que participou da iniciativa.
De surpresos, os estudantes passaram a ficar ávidos por participar.
“Eles se digladiavam para falar, para contribuir. Era uma demanda reprimida”, conta a professora.
Resultados extrapolam a escola
Além do mundo novo que se abriu para os alunos, muitos passaram a conhecer e a valorizar a trajetória de suas mães e avós, as principais escolhidas para a fase de entrevistas. “Aprendi muitas coisas sobre minha mãe, soube que ela começou a trabalhar com 11 anos, que deixou de estudar para cuidar dos irmãos mais novos”, conta Thalita Jennie, 17 anos.
Outra consequência foi que os estudantes se tornaram porta-vozes da igualdade de gênero fora da sala de aula. Maria Eduarda Fernandes, 17 anos, se esforçou para que a mensagem chegasse para outros amigos do colégio, mesmo os que não participaram do projeto. Para Thalita, o maior impacto foi dentro de casa. “Claro que não dá para discutir com todo mundo da família que é machista mas, para meu irmão, eu sempre digo que é preciso ser decente e respeitar as mulheres”, relata a jovem.
Como uma das representantes desse movimento de “resistência” escolar, Gina se emociona ao falar do que considera o verdadeiro prêmio: ouvir de suas alunas que elas também querem se tornar mulheres inspiradoras. “Eu hoje tenho consciência do quanto é difícil ser mulher na nossa sociedade. Eu aprendi a me amar mais”, resume Maria Eduarda.

Como este professor está ensinando os alunos a respeitar as meninas
Em uma tarde do fim de novembro, a reportagem chega à Escola Classe 108 de Samambaia, no Distrito Federal, para acompanhar uma aula de educação física. Esta não é, contudo, uma aula como as outras.
Em vez de aprender sobre esportes ou práticas corporais, crianças de uma turma do 2o ano discutem sobre o que meninas e meninos fazem no dia-a-dia.
“Jogar basquete é uma coisa de menino? Ou de menina? Ou de menino e de menina?”, pergunta o professor Paulo Henrique Carmona. Animados, os alunos falam todos ao mesmo tempo; “é de menino!”, diz um, “claro que não, minha prima joga”, retruca outro. E seguem as perguntas: ballet, limpar a casa, jogar futebol, cozinhar; afinal, quem pode fazer essas coisas?
Na atividade seguinte, as crianças precisavam adivinhar um rol de profissões, com base em pistas que eram lidas pelo professor. Depois, tinham que desenhar e dar um nome para o profissional. A ideia era visualizar como existe predominância masculina ou feminina no imaginário de determinadas ocupações (policial, astronauta, cientista, professor, advogado). “Eles trazem todo um repertório pronto de casa, trabalhamos em cima dessas questões”, comenta a professora Vanessa Terumi, que acompanha a turma nas aulas do dia-a-dia.
Por fim, todos eram convidados a explicar por que classificaram as atividades como de menino ou de menina ou de ambos. Nessa fase, vinha a grande questão: “mas você não acha que os meninos podem ser melhores no basquete simplesmente porque treinam mais que as meninas?”. E dá-lhe discussão, crianças afoitas para contar suas experiências.
Desconstrução pura para alunos entre 6 e 8 anos de idade.
“Eu aprendi que menino não é melhor que menina e nem menina melhor que menino”, resume Maria Louysa de Sousa Gomes, 8 anos.
Aulas como a do professor Carmona ainda são uma exceção nas escolas brasileiras, especialmente se levarmos em conta a faixa etária dos estudantes. Em geral, se há algum debate sobre gênero, ele ocorre com adolescentes. “O problema é que, quanto mais velhos, mais os estereótipos estão interiorizados. O máximo que podemos fazer é gerar um contraponto”, comenta o professor de biologia Deneir Meirelles, que, no DF, foi constrangido por uma deputada depois de passar um trabalho com a temática LGBT.
Aprendizagem fica limitada

A escola acaba, por si só, sendo um dos agentes da manutenção dos padrões de gênero. Não é raro, por exemplo, encontrar professores, coordenadores pedagógicos e gestores que repetem o senso comum de que meninas são alunas mais “cuidadosas” e “quietinhas”, enquanto os meninos assumem o papel de bagunceiros.
São esses profissionais que acabam desencorajando as alunas, desde cedo, a praticar esportes. “Toda vez que uma menina tem menos incentivo para fazer algo considerado ‘de menino’, os estereótipos de gênero funcionam como um freio para todas as possibilidades de aprendizagem que poderiam delinear outro futuro para ela”, escrevem Beatriz Accioly Lins, Bernardo Fonseca Machado e Michele Escoura no livro “Diferentes, não desiguais” (Editora Reviravolta), lançado no ano passado.
Segundo as autoras, para os meninos, por outro lado, o fracasso escolar aparece como uma característica de virilidade. Não à toa, com o passar do tempo, mulheres têm superado homens em todos os níveis de escolarização. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) de 2014 revelou que elas são maioria nas escolas, nas universidades e nos cursos de qualificação; embora, contudo, esse desempenho não seja refletido em melhores salários.
Brasileiras têm, em média, 8 anos de estudo; homens, 7,5.
Para o historiador Fernando Seffner, líder do Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, são as próprias meninas que, aos poucos, mudarão esse cenário, reivindicando mais participação e representatividade em todas as áreas. “Há um movimento de empoderamento feminino estudantil muito forte, isso ficou muito claro durante as ocupações”, afirma o pesquisador.