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Chá revelação e o surto coletivo de misoginia, transfobia e crime ambiental

Ritual é febre entre famosos e anônimos, já provocou tragédias familiares, além de evidenciar violência de associar sexo biológico e estereótipos de gênero

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A ideia de revelar o sexo do bebê partindo um bolo recheado de azul ou rosa foi lançada em 2018 pela blogueira americana Jenna Karvunidis. Ela  decidiu colocar o resultado do ultrassom de seu primeiro filho em um envelope e entregar para uma confeiteira. 

Ao cortar o bolo e descobrir o recheio rosa, Jenna postou a foto da sobremesa no seu blog e em um fórum online. O texto que acompanhava a imagem revelava a intenção dela com ação: “descobrir [de forma inusitada] se era menino ou menina” a criança que esperava. 

A postagem chamou a atenção de uma jornalista local e logo se transformou em um assunto midiático internacional, puxando uma tendência entre anônimos e famosos. A partir daí a turma passou a fazer de tudo para embalar o resultado do  ultrassom em uma produção nunca feita antes. 

O desejo de ineditismo tem levado a uma escalada de tragédias, como mortes, queda de avião, explosão de carro, intoxicação com fumaças coloridas, atentado a animais, poluição de rio e incêndio florestal

As reações agressivas dos cuidadores quando as expectativas criadas não se realizam também criam uma atmosfera de violência em boa parte desses rituais. Homens jogando a mesa do bolo para o alto, dando socos na decoração ou mostrando uma nítida insatisfação com o desfecho da surpresa colorida. Tudo isso, enquanto mulheres grávidas assistem às cenas assustadas ou acuadas. 

Arrependimento da criadora

A sucessão de catástrofes causadas pelo evento é parte dos motivos que fez Jenna Karvunidis se arrepender de ter colocado essa ideia no mundo. As outras razões passam pela compreensão de que essas festas de revelação impõem gênero e estereótipos a uma pessoa que nem nasceu, considerando apenas seu sexo biológico

Jenna começou a refletir sobre essas coisas quando Bianca, filha que inaugurou o chá revelação, começou a crescer e tensionar os padrões impostos, preferindo roupas e brinquedos lidos como “masculinos”. “Desde o primeiro dia ela segue seu próprio caminho”, explicou a mãe ao podcast People Every Day. 

Observar a primogênita fez com que Jenna começasse a pensar, pela primeira vez, no quanto esses padrões de gênero são violentos. Assunto, até então, não discutido entre ela e seus pares. “Eu simplesmente nunca tive que questionar meu próprio gênero, ou minha própria sexualidade, ou qualquer coisa assim. Então eu apenas [pensava:], ‘Ei, é um menino ou é uma menina”, disse Janne ao podcast americano. 

Hoje, ela usa as mesmas redes sociais que ajudaram a viralizar a prática para defender o fim do chá revelação. Num post de 2020 em seu Facebook, ela implora para que as pessoas parem de fazer o evento. A postagem foi feita depois de uma revelação causar um incêndio florestal em Oak Glen, cidade da Califórnia, nos Estados Unidos (EUA). “Pelo amor de Deus, pare de queimar coisas para contar a todos sobre o pênis do seu filho. Ninguém se importa além de você.“.

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Cor e gênero

Associar cores e gênero é algo recente na história. No passado, todas as crianças vestiam branco. Isso porque colocar cor em tecido exigia uma tecnologia cara. Mas mudança iniciou quando uma rede de lojas dos EUA tentou impulsionar as vendas, construindo uma narrativa de que a cor rosa, por ser forte, deveria ser usada por meninos e azul, sendo delicada para meninas. 

A jogada de marketing, focada no lucro, endossava a ideia que algumas cores combinavam mais com um gênero ou outro. “Depois da Segunda Guerra Mundial que o rosa passou a ter uma significação de gênero “feminina”, porque era a identidade da primeira dama estadunidense Mamie, casada com Dwight Eisenhower. Ela só usava vestidos rosas.”, escreveu Dri Azevedo, escritore trans não-binárie em sua rede social.

O impacto de atrelar cores às expectativas de gênero já foi tema de um estudo realizado em 1975, o ‘Baby X. No experimento, eles vestiam um recém-nascido ora de azul, ora de rosa, e davam para um adulto cuidar. O estudo descobriu que, quando vestido de azul, o bebê recebia um tratamento mais rude, porque seu choro era entendido como “raivoso”, já que socialmente se entende que meninos são duros. 

Quando estava de rosa, foi cuidado com mais delicadeza, e o mesmo choro foi compreendido como tristeza, já que meninas são vistas como frágeis. Ninguém sabia, de fato, qual era o gênero daquela criança, mas as roupas e o nome determinavam o tratamento que recebiam. 

Para além dos memes e das críticas sobre o bom ou mau gosto que cercam as festas de chá revelação, o que está em jogo nesse tipo de tradição? Críticos apontam a tentativa histórica de manter pessoas presas aos papéis de gênero, ignorando as múltiplas possibilidades de existir. 

Para saber mais sobre as problemáticas do chá revelação, assista ao vídeo com a narração da criadora de conteúdo Beta Boechat.

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