ATENÇÃO: A reportagem abaixo mostra trechos explícitos de conteúdo misógino e racista. Optamos por não censurá-los porque achamos importante exemplificar como o debate é violento nas redes, como a violência política contra mulheres se espalha pelas redes e é sexista em suas formas, quais termos são frequentemente utilizados e como podemos identificá-la.
Ao chegar no segundo turno na disputa pela Prefeitura de Porto Alegre, Manuela D’Ávila (PCdoB) assumiu a liderança de um ranking lamentável: é, de longe, a candidata no País que mais recebeu ofensas no Twitter e no Instagram durante os últimos dias da campanha eleitoral. E no segundo turno, além de ser alvo de xingamentos que fazem alusões a sua intelectualidade, ideologia política, saúde mental ou aos aspectos morais de sua vida, a violência política de gênero se estendeu também às suas apoiadoras.
Ao declarar publicamente seu apoio à Manuela no dia 17 de novembro, a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (REDE) recebeu, em dois dias, ao menos 150 comentários ofensivos, uma média de 3 tuítes com xingamento por hora. Foi chamada de “velha” com termos pejorativos como “múmia” e “tartaruga”, e também de “feia” e “hipócrita”.
Os tuítes ofensivos foram identificados na segunda etapa do MonitorA, projeto da Revista AzMina junto ao InternetLab, que coleta e analisa comentários direcionados a candidatas de todos os espectros políticos para compreender as dinâmicas da violência política de gênero durante as eleições. Entre os dias 15 e 18 de novembro, foram coletados 347,4 mil tuítes que citam 58 candidatas e candidatos que disputam o segundo turno em municípios de 13 estados do País. Foram monitoradas 20 candidatas a prefeita e seus opositores, além de 15 vice-prefeitas e três candidatos à prefeitura. Desses, 109,4 mil tuítes eram direcionados às candidatas, e 8 mil tinham algum termo ofensivo. Entre 2.390 tuítes com termos ofensivos que tinham uma ou mais curtidas ou retweets, 17,3% (415) eram ofensas diretas às candidatas. Manuela D’Ávila é alvo em 90% dos ataques realizados no período analisado.
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Para Fernanda Mallak, doutoranda em sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e consultora na Tewá 225, trata-se de uma resposta machista ao ingresso de mulheres de forma ativa na política: Manuela D’Avila, por exemplo, não só chegou ao segundo turno como derrotou nas urnas o atual prefeito de Porto Alegre Nelson Marchezan Júnior (PSDB).
Sua presença política também foi construída ao longo do tempo. Foi a vereadora mais jovem da história de Porto Alegre, eleita em 2004 e eleita deputada federal em 2006 e reeleita em 2010, alcançando recordes de votação. Mas nas ofensas identificadas pelo MonitorA não há qualquer menção ou crítica sobre sua atuação nestes cargos.
“A sociedade moderna, de uma forma geral, tem prerrogativas do controle dos corpos, por vários instrumentos e técnicas, que definem onde nós podemos acessar, e onde somos bloqueados, enquanto indivíduos. E quando se trata de corpos de mulheres, o espaço público, historicamente foi bloqueado”, diz a socióloga. “Estamos vivendo um momento interessante em que as mulheres passam a ocupar esses espaços que historicamente foram ocupados pelos homens. E aí, fazendo uma análise a partir deste prisma, a violência e o assédio têm sido utilizados como uma forma de tentar bloquear esse acesso”.
No segundo turno, além dos tuítes que usam o termo “comunista” de forma pejorativa, para tentar descredibilizar intelectualmente a candidata, os xingamentos passaram a ser ainda mais ofensivos: “lixo”, “bandida” e “vagabunda” estão entre as palavras mais usadas nos xingamentos. Há muitas citações também ao termo “abortista”, como se defender a legalização do aborto desqualificasse Manuela.
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Outras candidatas do espectro político de esquerda também foram atacadas no Twitter durante o segundo turno: Marília Arraes (PT), que disputa a prefeitura de Recife (PE), Suely Vilela (PSB) por Ribeirão Preto (SP) e a candidata a vice-prefeita de São Paulo Luiza Erundina (PSOL-SP). No caso de Erundina boa parte dos comentários fazia alusão a sua idade, como se isso a desqualificasse. A ex-prefeita da cidade de São Paulo e atual deputada federal tem 85 anos.
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Apoiadoras
Dos 1.859 tuítes que citavam mulheres políticas que declararam apoio público à Manuela nas redes, o MonitorA analisou 686 que tinham pelo menos três curtidas ou retuítes. Destes, 150 eram ofensas diretas à Marina Silva, ex-senadora pelo Acre e ex-ministra do Meio Ambiente, fundadora do partido Rede Sustentabilidade. Em apenas dois dias, foram coletados três tuítes ofensivos por hora. A idade e a religião foram os principais aspectos destacados nos xingamentos.
“Essas manifestações online contra representantes da política mulheres é uma resposta machista para dizer que aquele não é o espaço dela porque é gorda, feia, incapaz. Mas a prática tem nos mostrado justamente o contrário. São as mulheres que estão assumindo o protagonismo das lutas em diversas esferas”, concluiu Mallak.
“Gente do bem você nunca apoiaria! Você faz parte da corja política, das facções criminosas que sempre nos roubaram!Cria vergonha na cara e some do planeta, seria a única coisa boa que você é capaz de fazer pelo país!”, escreveu um usuário à Marina Silva.
O mesmo aconteceu com a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), que foi citada em alguns xingamentos como “exemplo de fracasso das mulheres na política”. Ao declarar publicamente apoio a Marília Arraes e Manuela D’Ávila pelo Twitter, Dilma passou a ser assediada com xingamentos ainda mais violentos, com conteúdos ofensivos e sexistas.
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No Instagram foram capturados 70,7 mil comentários nas contas das candidaturas monitoradas, sendo 28,5 mil nos perfis de candidatas mulheres. Foram analisados 514 publicações com termos ofensivos. Desses, 61 continham xingamentos diretos às candidatas e 50% eram direcionados a Manuela D’Ávila. Em seguida aparecem as candidatas Paula Mascarenhas (PSDB), candidata à prefeita de Pelotas (RS), com 13,1%, e Loreny (Cidadania), candidata à prefeita de Taubaté (SP) com 9,8%.
“Deus nos livre disso!!! Nova Venezuela… dois despreparados e sem currículo para gerir cidades”(sic), escreveu um usuário em uma postagem.
Na análise dos dados, o MonitorA identificou uma tendência de diferença no comportamento dos usuários em relação às candidatas em cada rede social. Ainda que os xingamentos e ofensas estivessem presentes em ambas as plataformas, o Twitter apresentou uma tendência maior a possuir comentários que incitavam ódio diretamente contra as candidatas.
“É importante salientar algumas características desta plataforma que podem explicar o fenômeno, dentre elas é necessário dizer que no Twitter você dialoga diretamente com os perfis que são abertos, podendo entrar em conversas públicas e marcar as pessoas facilmente”, explica Fernanda K. Martins, antropóloga e coordenadora da área de desigualdades e identidades do InternetLab. “Além disso, você tem acesso a tuítes que foram curtidos, retuitados ou comentados por outras pessoas que você segue, o que coloca a plataforma também como mais informativa e dinâmica, servindo, em diversos momentos, como um termômetro do que está acontecendo no cenário político”.
Já no Instagram, segundo Fernanda a arquitetura parece trazer uma concentração maior de pessoas que seguem personalidades com as quais têm maior afinidade política, além de permitir que os responsáveis pelas páginas das candidatas possam excluir comentários ou não mostrar marcações de cunho violento. “Por conta disso, no Instagram notamos uma dinâmica em que muitos comentários foram postados para apoiar as candidatas. Neste caso, as ofensas e xingamentos se direcionaram, de forma mais comum, aos oponentes e não às pleiteantes aos cargos”, considerou.
O MonitorA é um observatório de violência política contra candidata nas redes, um projeto da Revista AzMina e do InternetLab, com parceria do Instituto Update. A ferramenta de análise de dados foi desenvolvida pelo Volt Data Lab e os glossários de termos pesquisados foi desenvolvido pela pesquisadora em discurso de ódio Yasmin Curzi.
Pelo InternetLab, o MonitorA é uma das frentes do projeto Reconhecer, Resistir e Remediar, uma parceria com a organização indiana IT for Change, financiada pelo IDRC (International Development Research Center), para pesquisar manifestações e problemas no enfrentamento ao discurso de ódio online contra mulheres no Brasil e na Índia.