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Maternidade, idade e sexualidade tornam candidatas alvos de ataques nas redes sociais em MG

O silenciamento das candidatas se refletiu nas urnas de Minas Gerais: as mulheres são apenas 13% entre os eleitos nas 853 cidades do estado

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ATENÇÃO: A reportagem abaixo mostra trechos explícitos de conteúdo misógino e racista. Optamos por não censurá-los porque achamos importante exemplificar como o debate é violento nas redes, como a violência política contra mulheres se espalha pelas redes e é sexista em suas formas, quais termos são frequentemente utilizados e como podemos identificá-la

Áurea Carolina, que foi candidata à prefeitura de Belo Horizonte, em Minas Gerais, é mãe. Cida Falabella, vereadora da cidade, tem 60 anos. Bella Gonçalves, também vereadora, é lésbica. Marcela Valente, eleita suplente do PSL, é “feminista” demais” para ser de direita. Dandara Castro, petista, é preta. Nenhuma dessas características versa sobre a capacidade dessas mulheres de assumirem cargos públicos de poder. Mas foram esses os alvos dos ataques que elas e outras candidatas receberam nas redes sociais durante o primeiro turno da campanha.

“Se está com essa agenda tão cheia com filho pequeno, como quer ser prefeita de BH?”; “Lançar uma lésbica para ganhar voto é o maior marketing já criado”; “Mas é uma velha desclassificada”; e “Mulher bonita não sabe bosta nenhuma”, são alguns dos exemplos. Um silenciamento que se refletiu nas urnas: as mulheres são apenas 13% entre os eleitos nas 853 cidades mineiras neste ano.

O que está por trás desses números é uma cultura política de monopólio e domínio da representação dos homens, resume Marlise Matos, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem). E esse controle começa antes do pleito: candidatas de todos os espectros políticos foram vítimas da misoginia, descredibilizadas por serem mulheres, mães e questionadas sobre sua sexualidade e competência. 

De acordo com dados do MonitorA, projeto realizado pela Revista AzMina, junto ao InternetLab, com parceria do Instituto Update, a deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG) foi a candidata ao executivo municipal que recebeu o maior número de postagens com termos ofensivos no Twitter durante o período eleitoral em Minas Gerais. Entre 16 postulantes mineiras – tanto ao Executivo quanto Legislativo municipais – monitoradas entre 27 de setembro e 27 de outubro, Áurea concentrou 38% dessas publicações, seguida por Margarida Salomão (PT), que disputa o segundo turno em Juiz de Fora e acumulou 35%. Nem todos os tuítes continham xingamentos direcionados diretamente a elas, mas também a seus apoiadores.

“Só maconheiro ladrão e vagabundo é que vota em extremista do PSOL”, escreveu um usuário do Twitter para Áurea. Entre “louca” e outros tipos de xingamentos, uma questão que virou alvo de ataque chamou a atenção durante a campanha de Áurea para prefeitura de BH: a maternidade.

Ao ser questionada por um seguidor como estava cumprindo uma agenda cheia “com filho”, ela decidiu debater o tema. “Sinceramente: vocês acham que candidatos homens recebem questões como essa? Eu entendo, sabe. Ainda é comum que as pessoas estranhem que as mulheres possam conciliar mandatos políticos com a maternidade. E os espaços da política, de fato, costumam ser bastante hostis com quem escapa ao padrão que ocupa o poder há tanto tempo”, publicou em uma rede social.

“Porém, para que os homens estejam em dia com sua vida pública, liberados dos cuidados com as crianças e com todo o universo doméstico, há todo um trabalho invisível que é feito por mulheres. Não quero seguir ocultando essa realidade – pelo contrário, minha luta é para trazer a lógica do cuidado para o centro do nosso fazer político”, afirmou.

Bella Gonçalves, vereadora do PSOL reeleita em BH, foi a terceira candidata que mais recebeu tuítes ofensivos e ataques dentre as analisadas em Minas, conforme dados da MonitorA. Houve até ameaças de agressão física, como “tem de descer o cassete”, motivados por uma prisão durante um protesto – classificado por ela como “completo abuso de autoridade”.

Ataques lesbofóbicos também são frequentes. A legisladora conta que a LGBTfobia que sofre nas redes foi vivenciada durante o atual mandato na Câmara da capital mineira.

“Minha vivência de maior LGBTfobia da vida, sem dúvidas, foi na Câmara Municipal. Sobrevivi a cassação de mandato exclusivamente pelo sentimento misógino e lesbofóbico de um vereador bolsonarista e de base conservadora. Até a sutileza de ouvir: ‘não vou deixar você falar antes de mim porque você não gosta de homem’”, relata Bella, que afirma ter sofrido “ataques coordenados” de quem se propõe a “caminhar pelas sutilezas do patriarcado”.

“Sofremos violência em virtude de sermos mulheres. Quando a mulher entra pra política, ela entra num espaço que foi criado por homens, para homens. Então existe um tipo de violência que elas sofrem que é bem específico, que é a violência política contra mulheres”, afirma Larissa Peixoto, doutora em ciência política pela UFMG e integrante do Institute for Globally Distributed Open Research and Education. 

Larissa lembra que a violência política de gênero, assim como outras violências contra a mulher, pode ser gradativa, acumulativa e múltipla. “Pode ser uma piadinha, pode ser uma ofensa, pode ser algo que é falado sutilmente e pode ser algo gritado no microfone no plenário, em frente às câmeras. O machismo, lesbofobia, racismo, velhofobia, todas as mulheres são alvos em potencial, porque tudo isso entra dentro dos critérios [do machismo]”, afirma.

Fora das redes: a escalada do ‘Quero te beijar!’ ao ‘Vou comer seu…’

Em Divinópolis, na região centro-oeste de Minas, a candidata à prefeitura local pelo Solidariedade, Laiz Soares, foi surpreendida durante uma reunião na pré-campanha por uma posição machista de um companheiro de partido, que na época era pré-candidato a vereador. “Assim que ele chegou, já me falou: ‘Já ouvi falar muito de você. Inclusive, pesquisei muito sobre você, para te dar uns beijos, porque você é muito bonita’. Eu estava esperando uma conversa séria, e ele chegou me assediando. Fiquei completamente em choque, mas não podia fazer nada naquele ambiente, então tive que engolir o sapo e comecei a gravar, sabendo que ele ia falar mais bobagem”, afirma.

O resultado foi publicado na conta de Laiz no Instagram: na gravação, o homem comenta: “Não sou, mas vou colocar uma coisa bem machista. Veja bem de cara, ela é mulher. Entende? Isso é bom ou ruim? A própria mulher tem preconceito com a mulher. É igualzinho um ‘viado’ não gosta do outro. Você acha que a mulher se arruma para ficar bonita pra homem? Ela se arruma para fazer inveja em outra mulher. Para falar que é mais bonita. Bom, vou falar uma coisa bem machista aqui. Vou colocar bem a situação como acontece. Começando que ela é mulher. Segundo, ela é bonita! Muita gente acha que mulher bonita não sabe bosta nenhuma!”.

Outras candidatas também sofreram com ataques de cunho sexual. “Vou comer seu…” foi uma das frases disparada durante a invasão de uma live realizada pela candidatura coletiva do PSOL à Câmara de BH, formada por Tainá Rosa e Lauana Nara, duas mulheres negras. “Este ataque veio numa plenária onde estávamos fechando nosso programa [de propostas] e há um dia de começar o período oficial da campanha. Ele teve duas características severas: racismo e apologia ao estupro. E não foi um indivíduo, mas um grupo de cinco pessoas”, conta a professora de história Tainá. 

O ataque realizado em setembro ainda afetou os filhos das candidatas. “A nossa saúde mental ficou muito fragilizada. Estávamos com nossos filhos e eles estavam na sala vendo as mensagens. Eles choraram, ficaram assustados e tivemos que fazer um processo de cuidado com eles devido ao nível da violência sofrida”, conta. “A questão racial é perversa. Um grupo de pessoas disponibilizou o tempo do domingo deles para atacar a minha existência, para ferir o que é a minha identidade, que é a minha raça”. O caso está com o Ministério Público de Minas Gerais.

“É importante lembrar que existem formas interceccionalizadas da própria violência. Então não é só somar a violência contra mulher, mais violência racial ou de sexualidade, não é uma soma. Porque não é simples assim. A experiência de um corpo negro, um corpo negro lésbico, carrega dimensões de pertencimento e de opressão que são muito específicos. Não há dúvida que as mulheres negras, e mulheres negra pobres periféricas, por exemplo, vão ter muito menos recursos para lidar com a própria violência”, afirma Marlise Matos, coordenadora do Nepem.

Esquerda ou direita: tanto faz

Dandara Tonantzin Silva Castro é preta, periférica e petista. Ela foi a vereadora mais votada em Uberlândia, no Triângulo Mineiro. Se dependesse dos ataques, mesmo que velados, recebidos dentro do próprio espectro político, a professora e mestranda em educação pela UFMG nem disputaria a vaga. “O machismo e o racismo estruturais são cruéis com a vida da mulher preta, jovem, pobre, de periferia, candidata. Dentro da própria esquerda, as pessoas falavam, ‘ah, você é boa, mas para isso aqui: para coordenar um ato, para ajudar na eleição do sindicato… Para ser candidata, você não tem o perfil’. O que é ter o perfil para ser candidata?”, questiona. “Outro homem me falou ‘se você for candidata, vai ganhar uns votinhos para a chapa’. Como se a mulher servisse para ser quociente eleitoral”.

No outro extremo ideológico, Marcela Valente, do PSL, também sofre resistência entre os pares por ser mulher. “Tento quebrar o tabu de que mulher de direita não pode levantar pautas da mulher. Quero que a mulher tenha mais espaço, que seja mais escutada, essa pauta não é de esquerda. Então eu sofri muito, e sofro até hoje dos dois lados, tanto da mulherada me xingando quanto do povo de direita falarem ‘você virou feminista?’. A gente rotula muito as coisas e às vezes não é. Então por eu ser de direita e mulher eu não posso levantar pautas para mim?”, relata.

Marcela, que se candidatou a uma cadeira na Câmara Municipal de BH e ficou como suplente, afirma ter sido preterida dentro do próprio partido. “O [diretório] municipal me abandonou totalmente, me questionaram, me criticaram. Denunciei, fui prejudicada… É bem complicado”, conta.

Foco na aparência

Outra faceta do rol de obstáculos, como define a pesquisadora Marlise Matos, é o foco na aparência das mulheres. Cida Falabella, vereadora do PSOL em BH, é perseguida sistematicamente. “No meu caso, associavam [os ataques] muito à questão da idade, não só uma incapacidade, as expressões como ‘múmia’, como ‘bruxa’… Enfim, essa ideia de que você não dá conta, já está velha, ‘o que é que você está querendo, sua velha?’”. 

Um dos tuítes direcionado à candidata dizia “Este povo do PSOL é uma piada. Como artista de teatro seu principal papel deve ser de bruxa ou múmia ou zumbi. Esta sua cara chupada aliada a seu caráter deplorável é que são um completo vexame…”. O texto foi apagado da rede social. 

As ofensas são tão constantes que Cida decidiu ressignificar uma delas: quando a chamam de bruxa. “Reflete um medo do poder da gente, o poder da sabedoria, o poder das mulheres sábias, o poder das matriarcas, das mulheres com mais experiência, dos cabelos brancos”, afirma.

Pólvora virtual

Segundo a pesquisadora Marlise Matos, a internet potencializa os ataques às mulheres. “Tem esse fenômeno da instantaneidade e da multiplicação com a internet, e essa é mais uma dimensão desse problema (da violência), disseminar e multiplicar informação instantaneamente, afirma. 

Paola Alcântara relativiza a falsa segurança proporcionada pelo meio virtual. “Podemos vislumbrar que muitas pessoas acreditam que, por não estarem presencialmente em determinada situação e diante de potencial dificuldade em identificar eventuais autores, elas podem se sentir mais encorajadas. Mas isso é um erro, hoje existem várias técnicas de investigação que podem auxiliar identificar perfis falsos, localidade das postagens, identificadores de rede. O que auxilia demais na investigação criminal e identificação dos autores”.

Já Marlise acredita que é preciso ter mais controle sobre as redes. “Quando a gente fala de controle das redes sociais vem uma ideia de ditadura, de repressão, mas discurso de ódio não é uma forma de se expressar que seja compatível com jogo democrático. Isso tem que ser debatido pela sociedade brasileira, e a gente não enfrenta esse debate também. E isso também incentiva a impunidade dessas pessoas que usam a linguagem da violência para continuar expulsando as mulheres do campo político”.

O MonitorA é um observatório de violência política contra candidatas nas redes, um projeto da Revista AzMina e do InternetLab, com parceria do Instituto Update. A ferramenta de análise de dados foi desenvolvida pelo Volt Data Lab e os glossários de termos pesquisados foi desenvolvido pela pesquisadora em discurso de ódio Yasmin Curzi. O MonitorA conta ainda com a parceria de veículos locais que produzem reportagens sobre violência política com o recorte de seus territórios. Esta matéria, sobre o cenário de Minas Gerais, foi produzida pelo BHAZ. Participam do MonitorA ainda o Marco Zero (BA), a Agência Mural de Jornalismo das Periferias (SP), a Amazônia Real (PA) e o Portal Catarinas (SC).

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