ATENÇÃO: A reportagem abaixo mostra trechos explícitos de conteúdo misógino e racista. Optamos por não censurá-los porque achamos importante exemplificar como o debate é violento nas redes, como a violência política contra mulheres se espalha pelas redes e é sexista em suas formas, quais termos são frequentemente utilizados e como podemos identificá-la
Não é difícil imaginar o cansaço das candidatas na reta final das eleições 2020. Em um ano de recordes femininos na disputa pelos espaços de poder e decisão, em que as campanhas se reinventam nas ruas e nas redes, a violência política de gênero se intensifica na direção de mulheres candidatas a prefeituras e câmaras municipais de todo o país. Na Bahia, ela atinge, sobretudo, as candidaturas de mulheres negras e LGBTQI+. São ataques misóginos, racistas, transfóbicos, que fazem uso de campanhas de desinformação e até ataques hackers.
Das 25 candidatas baianas acompanhadas pelo projeto MonitorA, iniciativa da Revista AzMina junto ao InternetLab, que coleta e analisa comentários direcionados a candidatas de todos os espectros políticos durante as eleições, oito receberam tuítes ofensivos no primeiro mês de campanha, entre 27 de setembro e 27 de outubro. Destas, cinco são mulheres negras e seis são do campo da esquerda.
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Mas um dos casos mais expressivos de violência política contra candidatas aconteceu no Whatsapp. No final de setembro, quando foi dada a partida à campanha eleitoral 2020, a psicóloga baiana Ariane Senna (PSB) disponibilizou um número de Whatsapp para se comunicar com seu eleitorado e construir uma campanha participativa para o cargo de vereadora de Salvador. O que a candidata, mulher negra trans, não esperava enfrentar eram as inúmeras mensagens de assédio sexual. “Não teve um homem sequer que me mandou mensagem pra saber das minhas propostas”, conta Ariane Senna. Desde perguntas sobre o estado civil, elogios sobre seu corpo ou até nudes nos formatos foto e vídeo foram recebidos no canal de comunicação da campanha política.
Ariane conta que relutou até em dar visibilidade às agressões: “Eu tive medo de falar sobre isso, preocupada se iria perder voto, causar polêmica desnecessária. Mas vi que é sobre mim, sobre minha campanha, e eu não poderia abafar isso”, revela a candidata, que atua como analista técnica na Defensoria Pública do Estado da Bahia.
O caso veio à tona no último dia 4 de novembro, quando ela decidiu publicar um vídeo onde relata o assédio que vem sofrendo e também ratificando sua posição de que não irá recuar diante das investidas de descredibilizá-la enquanto candidata e sujeita política de direitos.
“Teve dias que fiquei mal mesmo, em processo de adoecimento ao perceber que não estou sendo vista como candidata. Quando resolvi denunciar publicamente foi justamente pra dizer que o assédio é estrutural do machismo e que atinge as mulheres trans e as mulheres cis. A gente precisa falar do assédio e sem medo”.
Segundo a pesquisadora Shirlei Silva, que investiga as trajetórias de mulheres negras nas eleições pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares em Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM) da Universidade Federal da Bahia, as relações de gênero, raça e sexualidade são estruturantes na sociedade e, portanto, as mesmas são reproduzidas na política de maneira muito agressiva e direta. “A violência política de gênero começa desde a entrada da mulher no partido e chega até o próprio financiamento político, num valor muito menor. Quando se trata de gênero não existe mais um disfarce pra gente observar a violência”, sinaliza.
Racismo e desinformação
No caso da deputada estadual Olivia Santana (PCdoB), que concorre à prefeitura de Salvador, os ataques nas redes sociais também tentam desqualificá-la como figura política e como mulher negra. Esta é a sexta campanha eleitoral da professora e ativista, que já foi vereadora da cidade por dez anos, além de ter sido eleita a primeira mulher negra deputada estadual na Bahia, nas eleições de 2018. “Cabe a nós mulheres desbravar de fato esses espaços, seguir em frente de cabeça erguida, enfrentando o machismo, a misoginia. Eu sempre enfrentei isso em diversas campanhas, mas nunca recuei. E peço às minhas irmãs, companheiras que não desistam e denunciem os abusos e ataques”, aconselha a candidata.
A prefeiturável Major Denice (PT) também vem enfrentando esse tipo de violência na campanha pela ocupação do Palácio Thomé de Sousa (sede da prefeitura soteropolitana). No seu caso, além de lidar com xingamentos e atos racistas nas redes, ela ainda tem que combater a campanha de desinformação que circula virtualmente atribuindo a ela posicionamentos falsos. Circulou nas redes que a candidata havia declarado que “os bandidos só apontam uma arma porque têm medo da comunidade”, com uma foto que sequer é da Major Denice, e sim de outra policial baiana, a capitã Sheyla Barbosa, que é candidata a vereadora em Salvador pelo Avante e quem de fato deu a declaração durante uma entrevista. “Tenho recorrido à Justiça em casos de racismo e fake news. O combate a esse tipo de caso é diário, pois o crime de racismo e a prática do machismo são culturais”, destaca a Major Denice.
Ataques de outras candidaturas
No momento em que as mulheres decidem romper com os silêncios e confrontar as estruturas misóginas-sexistas, os ataques chegam de diversas formas, inclusive de figuras masculinas que habitam o mesmo ciclo social das candidatas. Com a candidata a vereadora, gestora cultural e baiana de acarajé, Letícia Gambelegé (PCdoB) a violência veio através de um também candidato a vereador no município de Santo Antônio de Jesus, localizado a 187 km de Salvador, que frequenta o mesmo terreiro de candomblé que ela, ou seja, é seu irmão de santo.
A candidata teve ciência dos ataques através de amizades próximas que compartilharam com ela as postagens que o mesmo fez em seu próprio perfil no Facebook e em grupos de Whatsapp, nos quais Letícia Gambelegé não participa. Ela conta que, nas mensagens, o candidato tenta descredibilizar a imagem dela profissional e pessoal. “Tem postagens em que ele me chama de mulherzinha, oportunista. Só que tem uma expressão que diz: ‘quando o feitiço é demais, vira bicho e come o dono’. Nessa tentativa de me descredenciar, ele acabou se tornando meu cabo eleitoral, pois tem gente dizendo que só vai votar em mim porque descobriu que sou candidata através da rede social dele”, conclui. Letícia acionou o diretório do partido do candidato para denunciá-lo por crime eleitoral, uma vez que ambos são candidatos.
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Outro caso denunciado foi o da educadora e fundadora da Rede de Mulheres Negras da Bahia, Lindinalva de Paula (PT). Ela sofreu um ataque de hackers no lançamento online da pré-candidatura, um mês antes do início da propaganda eleitoral. A atividade realizada na plataforma Google Meet foi invadida por dois perfis que interromperam a transmissão com imagens pornográficas, termos ofensivos e saudações ao atual presidente, Jair Bolsonaro. “Temos o print de tudo e os endereços de e-mail dos agressores, que já foram encaminhados à Secretaria de Segurança Pública da Bahia. Estamos aguardando o resultado das investigações”, revela a candidata.
Para Denize Ribeiro, uma das coordenadoras do Fórum Marielles, esse cenário de violência não é uma surpresa em si: “Sabemos que a política é um espaço de disputa violento, já esperávamos essas retaliações e agressões virtuais nessas eleições. A novidade é o que fazer, como fazer e de que forma os partidos podem proteger suas candidatas”, destaca. Ainda de acordo com ela, cartas de repúdios aos fatos foram enviadas aos diretórios partidários. Ela ressalta que a denúncia tem que caminhar ao lado do acolhimento dessas mulheres durante e após as eleições. “Mesmo depois de eleitas, elas sofrem abuso e assédio. Sozinhas nesses espaços, elas não podem e nem vão ficar”, resume.
O feminicídio político de mulheres negras
O Brasil viu seu cenário político mudar desde a Marcha das Mulheres Negras, realizada em novembro de 2015. Exemplo disso foram as lideranças mais destacadas dos pleitos municipais de 2016, com a eleição de Marielle Franco (PSOL), com a quinta maior votação no Rio de Janeiro) e a de Áurea Carolina (PSOL), a candidata mais votada de Belo Horizonte nas últimas três eleições.
Para a socióloga baiana Vilma Reis, as mulheres negras têm um projeto de emancipação e uma agenda inegociável que, desde a Marcha, vem dando o tom nas eleições. “No jogo da misoginia, os homens brancos não iam recuar, então não adianta manter alianças com eles, porque eles são um fracasso ainda na esquerda. Nós temos uma revolução que vem da rua e é com isso que a gente vai e desafia o poder”, ressalta a ativista líder do movimento “Agora é ela”, que atua pela ocupação da comunidade negra nos partidos políticos e na sociedade. “Essa eleição de 2020 terá desdobramento agora e terá desdobramento nos próximos 30 anos no Brasil”, assegura Vilma Reis.
Quatro anos depois do Fórum, em 14 de março de 2019, quando completou um ano do assassinato ainda não resolvido de Marielle Franco, mulheres negras baianas oriundas de diversas instituições feministas negras criaram um espaço para formação e fortalecimento político de mulheres negras. Nascia aí o Fórum Marielles. “A própria existência do Fórum já nasce de uma situação de violência política. O feminicídio político de Marielle Franco é o reflexo da violência existente nesse país contra as mulheres negras em todas as áreas, e na política também não é diferente”, destaca Denize Ribeiro, uma das coordenadoras do Fórum. “Não é à toa que tínhamos resistência em pleitear esses espaços, porque pensávamos que não era um espaço confortável, justo, seguro”, avalia ela, que também integra a Coletiva Mahin – Organização de Mulheres Negras.
Do outro lado também há violência
Vale destacar que também há casos de violência política em outros espectros políticos, com mulheres não-negras. . É o caso da deputada federal Professora Dayane Pimentel (PSL), que está candidata ao cargo de prefeita de Feira de Santana – segunda maior cidade da Bahia. O MonitorA encontrou tuítes ofensivos direcionados à candidata, que tinham como origem o fato de Pimentel ter rompido relações políticas com o atual presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
“Para eles (agressores), o fato de eu ser mulher pesa mais até do que o fato de eu ser política, por exemplo. Eles começam a incentivar ideias de que eu não sou uma mulher que se preza, que sou uma mulher que traiu. Não há uma traição, há um rompimento político.”, destaca.
O MonitorA é um observatório de violência política contra candidatas nas redes, um projeto da Revista AzMina e do InternetLab, com parceria do Instituto Update. A ferramenta de análise de dados foi desenvolvida pelo Volt Data Lab e os glossários de termos pesquisados foi desenvolvido pela pesquisadora em discurso de ódio Yasmin Curzi. O MonitorA conta ainda com a parceria de veículos locais que produzem reportagens sobre violência política com o recorte de seus territórios. Esta matéria, sobre o cenário da Bahia, foi produzida pelo Marco Zero Conteúdo. Participam do MonitorA ainda o BHAZ (MG), a Agência Mural de Jornalismo das Periferias (SP), a Amazônia Real (PA) e o Portal Catarinas (SC).