Ana Suy se denomina psicanalista e escritora, mas é também doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professora universitária e psicóloga clínica. Ela também é autora do best-seller “A gente mira no amor e acerta na solidão”, publicado no Brasil e em Portugal pela editora Planeta, e tem mais de 398 mil seguidores no Instagram, onde fala muito sobre o amor no cotidiano.
A escolha pela faculdade de psicologia, que aos 17 anos soava aleatória, talvez tenha sido influenciada pelo pai, também psicólogo. Ela se dividia entre as aulas na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e um trabalho de carteira assinada num banco. No fim da graduação, começou a fazer análise, e também a estudar sobre o assunto. Em pouco tempo, percebeu que tinha entrado num caminho sem volta.
Abandonou a segurança da carteira assinada para ganhar um terço do salário num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). “Eu fiquei lá quatro anos e meio, uma experiência riquíssima. Eu queria ajudar as pessoas e precisava aprender mais, e assim fui para a pós-graduação”.
Por algum motivo, a aluna que gostava de passar despercebida, mas também de falar muito, passou a alimentar um blog e decidiu que queria dar aula. “Primeiro decidi que eu queria dar aula, mas não tinha feito nem iniciação científica. Precisava de algum jeito tentar me aproximar da academia”. Sem formação específica para o Ensino Superior, começou a dar aulas em uma faculdade local. Ela sabia que não era a primeira escolha, mas aceitou o convite. “A coordenadora não queria alguém da psicanálise, mas o primeiro lugar desistiu no meio do semestre e ela não tinha tempo de fazer um processo seletivo”.
Depois disso, foram quatro tentativas até o sim no mestrado. A vida acadêmica começou a fluir com mais facilidade, em paralelo às escritas no blog. Os primeiros lançamentos na escrita foram independentes, até seu trabalho chamar a atenção da Editora Planeta e publicar seu best seller sobre amor e relacionamentos, que são tema da oitava edição da newsletter Olha o que ela fez! Confira aqui nosso papo!
AzM: Como sua graduação em psicologia, a formação como psicanalista e o trabalho como pesquisadora se conectam?
AS: Elas são a mesma coisa. A gente não tem como tirar a prova real da vida, mas não consigo imaginar que eu pudesse ter coragem de publicar um livro se não tivesse um certo percurso acadêmico, uma certa titulação. A academia nos coloca na relação com o outro, em tese é superior a nós, que nos autoriza fazer alguma coisa. Então essa autorização dos acadêmicos, dos meus professores que tanto respeito, foi fundamental para mim.
AzM: Você é uma comunicadora popular de assuntos complexos: amores, dores, vazios. Como você se autoriza – utilizando a expressão que você usou – a falar com tanta de gente?
AS: Sou uma escritora tagarela, mas para mim não é o suficiente. Eu quero falar também, e vivemos nesse momento que é muito fértil. As mulheres têm espaço de fala. E talvez eu não desejasse isso porque não tenha tido o modelo. Nem sabia que isso era possível, então me sinto abrindo caminho. Porque a escritora [padrão] escreve e fica quieta, silenciosa. A obra tem que falar por si só, tudo está na obra […] Então, eu desidealizo. Isso aqui é só um negócio que eu escrevi, do jeito que eu pude, que deu. Se alguém quiser que eu fale mais, quiser conversar, eu quero conversar também.
AzM: Como você se encaminhou para falar sobre amor e relacionamento?
AS: Não vejo outra perspectiva. Não é que eu falo sobre isso; é que eu não escuto nada do mundo que não seja isso. É sempre sobre isso. Às vezes tem outro ponto de partida, mas sempre vai chegar aí.
AzM: Você conseguiu encontrar um conceito possível, mesmo que não seja absoluto, do amor?
AS: Tento dizer que não e ser muito cuidadosa com isso, mas me veio a palavra continuidade na cabeça. É uma coisa que estou pensando agora, pode ser que depois eu já discorde de mim. Por ora, acho que amor é isso: é continuidade, querer continuar com alguma coisa.
AzM: E você acha que esse amor está sempre atravessado pela sexualidade?
AS: Sim, no sentido freudiano do que é a sexualidade, não como genitalidade, mas como aquilo que diz respeito à vida. Tudo que é vivo é sexual de alguma maneira. Tudo aquilo que nos dá tesão de fazer é sexual: estudar, ler, escrever, estar em um lugar com as pessoas é um negócio super sexual, porque tem muita tesão envolvido nisso. Tudo é sexual, mas nem tudo é genital.
AzM: Na sua experiência de trabalho, seja clínica, seja escrevendo, seja pesquisando, você percebe que as questões do amor e dos relacionamentos atravessam pessoas do gênero feminino e gênero masculino de formas muito diferentes?
AS: Existem consequências diferentes para homens e para mulheres, mas a psicanálise vai me tocar num lugar que não é sobre o gênero, mas que tem a ver com pessoas. Então gênero, na verdade, é uma interpretação do que a gente faz a partir do que dizem para nós, da experiência de habitar nosso corpo. Sim, tem diferença, mas o buraco é mais baixo.
A noção de feminino e masculino na psicanálise não tem a ver com um homem e uma mulher, mas com isso que tá pronto de alguma maneira é masculino, e o que está por fazer que, por ser inventado, e de alguma maneira é feminino. O amor é feminino.
LEIA MAIS: Por um dia dos namorados feminista
AzM: Atravessa as mulheres, mas não é só sobre elas?
AS: Exatamente, falar “o amor é feminino” parece que está falando do amor das mulheres, mas não, o amor é feminino. O amor feminiza porque o amor nos coloca numa relação com aquilo que a gente desconhece.
AzM: Você acredita que a ideia de uma completude no relacionamento afetivo é mais presente entre as mulheres?
AS: A ideia de completude colocada na relação amorosa é mais frequente em relação às mulheres, mas isso não tira os homens daí. Eles colocam essa fantasia em outro lugar. Por exemplo na relação com dinheiro, com trabalho. O quanto eles já se sentem completos por serem homens, por terem ali esse elemento no corpo que diz muito cedo que eles têm alguma coisa, que são amados por causa disso, enquanto as mulheres costumam experienciar relações tendo que dar algo que não têm. Estão sempre tentando ler no outro aquilo que o outro não pediu, para então oferecer. As mulheres acabam muito atormentadas por essa noção, por essas relações amorosas, para além da dificuldade psíquica com a própria noção do que é uma mulher.
AzM: Que noção é essa?
AS: A noção de mulher que até recentemente [funcionava] e para tantas ainda funciona, que ser mulher é se tornar mãe. Estamos fazendo uma separação entre o que é ser mulher e o que é ser mãe, entendendo que uma coisa e outra tem relação, mas que não se completam, não dependem uma da outra. Todo mundo está se deparando com questões pela primeira vez, e isso não tem consequência só para as mulheres, mas para todo mundo, inclusive para os homens. Antigamente, eles podiam separar a mulher puta da mulher santa. A santa é a mãe, a puta é a mulher para namorar. E elas não precisam conversar. Na medida que vai caindo essa autorização da cultura para sustentar essa divisão, eles precisam lidar com isso, com as duas referências no mesmo corpo.
LEIA MAIS: Os problemas da esposa-troféu: glamourização da objetificação e falta de autonomia
AzM: Muito se fala sobre os homens amarem apenas uma vez. Isso seria retrato de afetos masculinos egoístas, efêmeros ou voláteis?
AS: O problema que recai muito cedo nessa afirmação é a própria noção de amor. Os homens amam, mas o que é isso? Amar apenas uma vez? Como a gente sabe que ama alguém? Como a gente sabe que o outro ama alguém? O que não é amor? Como você sabe que não é amor? Como é que você sabe que não é mais? Temos uma fantasia de que o amor é muito mais do que ele pode ser, no sentido de que amor tudo cura, tudo suporta, o amor não termina. Dizer que os homens amam só uma vez é uma forma de preservar fantasia amorosa de que existe um amor, e esse é o amor certo. Por outro lado, essa também é uma afirmação freudiana, no sentido de que todo encontro é, na verdade, um reencontro.
No sentido freudiano, todo mundo só ama uma vez o primeiro objeto amoroso, que seria a mãe: o primeiro amor, primeiro cuidador. Depois, todo mundo é substituído. Todo mundo é uma tentativa de substituir esse amor perdido, que ficou interditado lá para trás.
LEIA MAIS: Hiperexpectativa, arrependimento e desesperança: entenda a tríade do heteropessimismo
AzM: Na sua tese você fala de amor, solidão e do feminino. Por que o feminino tem esse peso na sua criação?
AS: Lacan constrói a ideia de que o amor é feminino porque não tá pronto. É isso que não está dado pelo outro, que não está garantido, e que a gente vai precisar inventar. Pensamos que num relacionamento, o amor viria como consequência: eu encontro o outro “pluft, aí as coisas acontecem, deu match”. É como reencontrar uma parte no outro, a metade da laranja.
Você se encontraria através do outro, mas o que acontece no relacionamento amoroso é o contrário. O que nos dá trabalho é aquilo que encontramos de diferença no outro. Cada um ama sozinho. O amor é uma posição solitária, porque só você sabe como é que é amar no seu corpo. Ainda que o outro se disponha a trabalhar contigo, ele também tá sozinho. É como se a gente fosse constantemente a nossa foto do perfil, com filtro, uma luz boa, um recorte bonito. A gente acha que tá arrasando. Mas no encontro amoroso o outro vai nos dando notícias de que temos muito mais a ver com as fotos em que fomos marcados, aquela foto que você tá se mexendo, sem fazer pose.
AzM: Você se considera uma mulher feminista? E o seu posicionamento em relação a isso interfere na sua prática tanto de pesquisa como na sua prática clínica?
AS: Não sei se eu me considero ou não, porque isso nunca foi uma questão para mim. Eu precisaria estudar teoricamente para dizer dos feminismos. Mas, com frequência muitas pessoas estudiosas do feminismo se interessam pelas coisas que eu escrevo, que eu produzo, que eu falo. Então acho que tem alguma ressonância.
LEIA MAIS: “O FEMINISMO ME LIBERTOU”
AzM: Há quem diga que a psicanálise é uma pseudociência. O que você pensa dessa afirmação?
AS: Acho uma afirmação mal feita. Para ser pseudociência, a psicanálise teria que tentar falsear alguma coisa. Podemos discutir se a psicanálise é ciência ou não, mas chamar de pseudociência é uma informação precipitada, para não dizer mal intencionada.
Porém, se a psicanálise é ciência ou não, vale conversar sobre o que é ciência. O que a gente considera como ciência hoje? Existem possibilidades de ciências diferentes? O que é ética psicanalítica? Acho uma discussão importante, pois os psicanalistas precisam se comprometer a dar provas da eficácia disso.