A decisão foi unânime. Enfrentar anos de violência, esforço físico desmedido e festas regadas a bebidas alcoólicas e drogas ilícitas já não pertencia ao universo desejado por cinco das sete irmãs da família Fernandes. O falecimento dos maridos foi o impulso final para que elas pegassem seus trapos e mudassem em busca de uma vida melhor, em uma cidade nova e cheias de esperança. Joinville parecia o destino certo. Seria a oportunidade perfeita para romperem com os vícios dos Povos Romani, chamados ciganos, na comunidade onde viviam, e criar seus filhos em um ambiente diferente. As viúvas, de etnia Calon, ou Calins, como são chamadas as mulheres do grupo, tinham apenas duas opções: ou mantinham-se unidas, somente entre mulheres, com a possibilidade de enfrentarem um padrão de vida precário; ou teriam que morar em São Paulo, às custas de um cunhado traficante de armas e entorpecentes, que negociava com ciganos e gadjons – os não-ciganos. Ao escolherem a primeira opção, tiveram que assumir a responsabilidade de encarar a represália dos familiares, assim como os obstáculos que viriam a surgir nos próximos cinco anos de suas vidas. As histórias aqui retratadas são relatos do modo de vida de uma família cigana específica, que pertence ao único acampamento registrado no Brasil e no mundo chefiado somente por mulheres, e a forma como enfrentam, diariamente, a luta pelos direitos humanos e uso da terra – diante de um processo de reintegração de posse em curso, e os diversos problemas socioambientais que enfrentam no território. Em 2011, um levantamento de dados, inédito, sobre os Povos Romani no Brasil, divulgado pela Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), identificou 291 municípios que abrigam acampamentos ciganos, localizados em 21 estados. Desses, apenas 40 prefeituras afirmaram desenvolver políticas públicas para os povos ciganos, o que corresponde a 13,7% do total.
Sol a pino. O centro de Joinville ferve entre passadas, buzinadas e fumaça. Mais de 569 mil pessoas e 383 mil veículos circulam na cidade industrial do Norte de Santa Catarina. A sete quilômetros dali, em um bairro periférico chamado Jarivatuba, o silêncio permeia o ambiente. O asfalto quente coberto de terra, tem a mesma cor marrom avermelhada que a lama do terreno baldio onde as irmãs ciganas do grupo Calon acamparam. As poças de água ali espalhadas refletem os fios elétricos caídos e entrelaçados, que faíscam a 220W. A pouco mais de um metro do chão, um pedaço de bambu e um pilar de cimento são usados como suportes para um balde branco, amarrado entre fitas adesivas e cordas, que faz uma ligação direta com um poste de energia elétrica.
A partir dali, as seis barracas montadas no terreno são iluminadas com luzinhas de natal.
Em meio a mercadinhos, escola e casas de alvenaria, o mato volumoso e alto, que cobre boa parte da área, chama a atenção. Nada passa despercebido aos olhos dos moradores do bairro, já que não há nenhum tipo de cerca ou muro para fechar o terreno. Não há calçada na entrada do acampamento, assim como não há número, campainha ou uma porta para bater. Ali dentro, as tendas feitas de lonas, estacas de madeira e cordas, são dispostas em semicírculo. As que estão na parte da frente do terreno ficam a um passo da rua. Qualquer pessoa pode tocá-las ou, até mesmo, furá-las. Todas ficam abertas durante o dia. Os poucos bens materiais que existem ali podem ser vistos, assim como as pessoas que transitam no local ou o que fazem diariamente. Durante a noite, as lonas que estão amarradas à parte de cima da barraca são esticadas para baixo e presas às estacas de madeira, a fim de cobrirem as laterais da casa. Como nem todas possuem cama, no chão, há alguns pedaços de lona, suficientes para que uma ou duas pessoas possam deitar e dormir.
– Não, Iram, fecha isso aí, por causa dos rato, fío!
Lindacir fala alto, ao levantar para cobrir com lençol as mais de 30 panelas, areadas e muito brilhantes, empilhadas em um balcão de madeira – Aqui é assim, tem que ficar lavando louça a cada passo, porque os rato sobem nos móveis. As comida que a gente come tem que botá na geladeira, pros rato num entrar. Num adianta ratoeira, e o veneno acho que engorda mais o rato. À noite eles ficam patinando em cima dessa lona. A gente tem medo deles fazê xixi lá em cima e daí pega água da chuva nas roupa, num dá, dá medo de ficar na pele. Mas isso aqui, quando nós chegou, era ainda pior.
Era novembro de 2011, quando as irmãs Lindacir Fernandes, de 32 anos, e Luci Fernandes, de 41 anos, chegaram ao terreno de Joinville. Ambas eram viúvas. Lindacir, de pele escura queimada do sol e cabelos compridos amarrados com fita, veio com seu filho de quase dois anos. Apesar de estar sempre sorridente, exibindo os dentes de prata, tenta conviver com uma depressão, desde que perdeu o marido e o filho mais velho, de 14 anos, em acidente de carro, um ano antes. Já Luci, de estatura baixa, marcas de expressão fortes no rosto e cabelos curtos, que perdera o marido em uma briga de ciganos, chegou com seus dois filhos, um de dez e outro de seis anos. Vindas de Irati, no Paraná, carregavam uma lona preta, suficiente para erguer apenas uma barraca, e algumas mantinhas, que chamam de “pica-pau”. Nos primeiros meses, não havia cobertor e colchão para todos, Lindacir e Luci deixavam as crianças dormirem, enquanto ficavam sentadas no chão, durante a noite, protegendo-as da chuva forte de verão.
–Tinha vez que tinha cigarro pra fumar, tinha vez que tinha café pra tomar, mas tinha vez que não tinha nada. Nem água, nem comida – desabafa Luci.
Depois de um ano, chegaram mais duas irmãs. Vilma Fernandes, tinha 44 anos, e Delir Fernandes, 38 anos. Cada uma com seus dois filhos. Ambas também eram viúvas. Vilma é magra, tem os braço finos, pele seca e cabelos curtos. A voz rouca denuncia os anos de dependência ao tabagismo. Enquanto Delir, ofegante, de cabelos curtos e grisalhos, não deixa que ninguém “atropele” sua fala. O marido faleceu após um AVC, já o companheiro de Vilma, também morreu em uma “briga de ciganada”.
-As brigas são bebedeira normal, num precisa de festa. É que eles bebem as cachaça deles, mas bebem armado. E as mulher não tem a ordem de tomar aquelas armas dos homem. Eu peguei um trauma de briga, que eu num quero mais ficá na cola de cigano nenhum. A não ser os meu filho aqui. A gente tem medo, porque se matou, matou, acabô. Eles são bão antes de beber, mas bebeu eles vira dez pessoa numa só – conta Lindacir.
Maria Paula Fernandes tinha 34 anos quando chegou ao terreno. Foi a última das cinco irmãs a unir-se ao acampamento. Levou consigo para Joinville apenas seu filho mais novo, de 10 anos. O primogênito, de 17 anos, já estava casado e decidiu continuar em São Paulo. Ambos são do primeiro casamento. À época, seu segundo marido, diagnosticado com insuficiência cardíaca, fazia tratamento na capital paulista e, por este motivo, a visitava poucas vezes. Maria Paula está sempre atenta a tudo e todos que a rodeiam. Muito esperta, ela mede suas palavras, sabe o que e quando falar. Prefere usar o dialeto próprio apenas nos momentos em que os gadjons estão por perto – para que não a entendam. Por trás do vestido transparente, pode-se ver o maço de cigarros que carrega entre os seios.
Em maio de 2012, Elisa Costa, presidenta da Associação Internacional Maylê Sara Kalí (AMSK) – organização sem fins lucrativos com o objetivo de propagar a história, tradições e costumes dos Povos Romani no Brasil – teve conhecimento da situação das ciganas, através de um primo das Calins.
–Elas estavam em situação de vulnerabilidade assim que chegaram em Joinville. A Lindacir me ligou, e ela mais chorava do que falava. Quando fui visitá-las, percebi que era muito pior do que imaginava. Elas não tinham quase nada.
Até então, nenhum órgão público de Joinville havia entrado em contato com as irmãs ciganas. Por este motivo, Elisa Costa tomou a iniciativa de acionar a Ouvidoria Nacional da Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (SEPPIR), para intermediar ações junto ao Estado, em defesa dos direitos humanos da família Fernandes.
Segundo Estefânia Rosa Basi de Souza, psicóloga que coordena o Serviço de Atendimento Proteção Básica, da Secretaria de Assistência Social (SAS) do município, o primeiro contato com as ciganas se deu naquele mesmo ano, através de uma assistente social da Secretaria. Uma das primeiras medidas a ser tomada foi a tentativa de encaminhá-las para alguns cursos profissionalizantes, da Casa Brasil, como o de panificação. No entanto, a profissional alega que o analfabetismo delas, assim como a falta de documentação e de tempo, já que necessitavam cuidar das crianças no acampamento, foram alguns impeditivos para que realizassem o curso.
-Foi feita bastante intervenção nesse sentido, mas a gente viu que não surtiu efeito. Então, hoje eu me pergunto, até que ponto foi respeitada a cultura delas? Para quem não é cigano já está difícil conseguir emprego no mercado de trabalho, imagina pra elas que já sofrem esse tipo de preconceito em qualquer lugar – confessa Estefânia.
Diante da falta de recursos para comprar alimentos, a AMSK providenciou 72 panos de prato para que elas vendessem e pudessem se sustentar, mesmo que a curto prazo.
-Nós tinha que sair de manhã pra vender pano. Já teve caso de nós ir de a pé daqui pro centro, por causa de que não tem dinheiro pra passagem. E os ônibus nem sempre param pra nós. Chegava lá, e ia com dois paninho. Com o dinheiro daqueles dois, comprava mais três, e com o dinheiro daqueles três comprava mais quatro. Era assim que nós vivia – relembra Lindacir, com o olhar baixo e as sobrancelhas franzidas.
Como a venda de panos de prato nunca foi suficiente para manter a família, as ciganas já tentaram trabalhar como lavadeiras de roupa, na limpeza de banheiros e utensílios de cozinha – mesmo que essas atividades não pertençam à cultura Calon. Mas lhes foi dito que, por serem ciganas, não eram de confiança.
-É muito difícil, porque nós chega em outro lugar e a gente não tem conhecimento com ninguém. E tem muito preconceito, porque eles não entendem também, sabe. Por causa de um fazê bagunça, daí pra eles tudo faz. Por causa de um fazê, tudo paga – lamenta Maria Paula.
Elisa informa que, atualmente, o número de grupos Romani sedentários – ou seja, que possuem residência fixa – é o que mais cresce. Isto indica transformações significativas em seus hábitos e costumes. Mas, sedentarizar-se acaba sendo uma opção feita pelos ciganos e ciganas em busca de melhores condições de vida.
O nomadismo se deu porque eles eram expulsos. É o “faça-os andar, tire-os daqui, eu não os quero aqui”. Nós não somos mais nômades neste país há muito anos. Hoje, existem pouquíssimos acampamentos em situação nômade, e muitos têm casa, pegam a barraca, viajam durante um tempo e voltam pras suas casas. Para os Povos Romani, a luta pelo território tem um sentido cultural e não de posse ou herança.
-O terreno é um espaço onde você possa ser cigano dentro da sua casa e fora dela. E que você tenha o direito de fazer isso em segurança. A tenda é a casa dos ciganos, mas ela não é tão inviolável quanto uma residência. O sistema de vulnerabilidade é 99%, é muito mais fácil de entrar. No caso das Calins, por falta de condição de deslocamento, elas necessitam de um lugar para exercer a sua própria cidadania, e elas não podem ser largadas pelo Estado, nessas condições – reforça Elisa.
Para ela, alguma atitude deve ser tomada pelo Estado, pois segundo o Programa Nacional de Direitos Humanos III, o Estado deve “garantir as condições para a realização de acampamentos ciganos em todo o território nacional, visando a preservação de suas tradições, práticas e patrimônio cultural”.
Martins Filho, graduado em Direito, tem acompanhado as ciganas voluntariamente e defende que algumas mudanças deveriam ser feitas na área ocupada pela família Fernandes, pois o descaso com o grupo e as condições em que vivem é desumana. Sua ideia é cercar o terreno, assim como colocar brita em toda a extensão, fazer o saneamento básico necessário para melhorar a fossa que já existe no local e incluir um sistema de eletricidade seguro para as Calins.
Maria de Fátima Marques, consultora técnica no Departamento de Apoio à Gestão Participativa e Controle Social (DAGEP), do Ministério da Saúde, ressalta outros aspectos de insalubridade na ocupação.
-Isso é questão de limpeza pública, porque não tem como você fazer intervenção de saúde se você não tem esgoto. Você tem fossa a céu aberto e você não tem recolhimento de lixo. Elas tem que catar o lixo e colocar do outro lado da rua, porque no acampamento a limpeza urbana não recolhe, não tem número. Elas fizeram até uma cestinha do outro lado.
Uma situação, que aconteceu no fim do ano passado, demonstra a ausência do Estado nesse processo, na opinião do graduado em Direito Martins Filho.
-Eu fui na reunião que traria a vigilância sanitária para colocar veneno pra rato, mas o vigilante disse que não vinha só porque estava com medo das ciganas, que só viria com a polícia.
Mas eu disse que não. Então ele veio com mais três carros da vigilância. O problema é que não há um compromisso, não há continuidade. Não adianta você vir e matar um ratinho. O rato é o menos culpado, ele é efeito, cuja causa é a falta de saneamento. Elas estão descoladas da sociedade e estereotipadas.
Ao anoitecer, o pôr do sol alaranjado encobre o acampamento. Os fortes feixes de luz, transpassam os furos das lonas e refletem nas panelas de alumínio. Aos fundos do terreno, pode-se ouvir as músicas religiosas e o coro dos fiéis dentro da igreja Cristo é Vida. Enquanto os rapazes jogam baralho, as mulheres se reúnem na barraca de Lindacir. Sentadas no chão, uma ao lado da outra, algumas de cócoras e outras de pernas cruzadas, as cinco irmãs ciganas relembram os momentos de infância.
-Nós somo em 11 irmão. Sete fia muié e quatro homi. Pai e mãe tão morto. Meu pai morreu faz seis ano e minha mãe faz 25 ano. Meu pai já tava velhinho, com 72 ano. Só que deu AVC nele e ele teve oito mês internado. Tinha que tratar ele, dar banho, usava fralda. A minha mãe morreu eu tinha 15 ano – relembra Lindacir.
Elas contam que viajaram muito, mesmo depois do falecimento da matriarca da família. Sob o total cuidado do pai, conheceram, principalmente, os interiores de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul.
-Ele não tinha muié pra cuidar dele, mas ele cuidava de nós tudo. Meu pai tinha uma mesa grande, era uma gentarada. Eu não sei como é que meu pai e minha mãe vencia! A gente só com dois num guenta – admite Delir, aos risos.
Vilma afirma que seus pais viviam do comércio. Eles transportavam cobertores para vender entre os estados e, por isso, viajavam tanto.
– Tudo nós aqui foi nascida no Turvo, no Paraná. A Delir nasceu no Turvo, né? – indagou Lindacir
– Tu nasceu onde? – perguntou Maria Paula para Luci.
Eu nasci no Turvo também – respondeu Luci, de forma bastante enfática.
– E tu, nasceu onde? – perguntou Delir para Maria Paula.
– Eu nasci em Três Pontas, Minas Gerais, uai! – e todas caíram na gargalhada.
Depois que as risadas cessaram, o recorrente assunto sobre a insegurança que sentem no acampamento retorna. As irmãs Fernandes registram que este é o principal motivo para não quererem mais viver acampadas. Não nas condições em que estão atualmente, pois não há proteção.
Durante a noite, um botijão de gás já foi roubado enquanto elas dormiam. E, durante o dia, as ameaças são constantes.
– Tem uns cara que entram aqui com celular, com televisão, e querem forçar a gente a comprar, porque eles acham que a gente tem dinheiro, mas não tem. E, já pensou, é coisa roubada, Deus o livre! E eles teimam com nós. Outro dia um cara passou a faca na barraca da Linda, a única que não era furada – rememora Delir.
Mesmo com o incentivo e ajuda da AMSK ou dos voluntários, como Martins e Milton Zanotto, diretor de Legislação e Assuntos Jurídicos do Sindicato dos Trabalhadores em Instituições de Ensino Particular e Fundações educacionais do Norte do Estado de Santa Catarina (Sinpronorte), as irmãs já não têm mais fôlego para enfrentar o barro nas canelas, o galão de água nas costas ou o peso de transportar as tendas para outras localidades do Brasil.
– No tempo que nós viajava, a gente sofria muito. Quando a gente é casado é pior ainda, porque tem mais coisa pra carregar. Quando a gente tem marido, não para mais de um mês num lugar. Mas agora a gente não tá seguindo essa tradição, ninguém mais gosta de viajar, ninguém mais quer sofrer. Quem pode, compra casa, e quem não pode, fica morando em barraca – desabafa Lindacir.
Maria Paula sonha em um dia poder se sustentar vendendo marmitas. Com os olhos brilhando, ela revela que já tem o cardápio elaborado em sua mente. Cada dia seria um prato diferente. Além dos acompanhamentos tradicionais de arroz, feijão e batata, os tipos de carnes e frango ensopado trariam água na boca dos clientes. Sentada em um toco de madeira, na entrada do acampamento, declara:
– A gente queria a segurança de uma casa. E não é porque eu saio de uma tenda, de uma barraca e vou pra dentro de uma casa, não é por isso que eu vou deixar de ser cigano. Não é porque eu coloco uma calça comprida e tiro essa saia que eu vou deixar de ser cigano. Eu sou cigana da mesma forma. Eu vou ser a mesma cigana que eu era antigamente, porque cigano vem no sangue.
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