N a última semana, Brasília tem acompanhado estarrecida os desdobramentos do terrível Réveillon da jovem Veluma Lara. Ao celebrar a virada na festa The Box-Reveião, Veluma alega ter sido estuprada por um segurança da festa que, segundo ela, ainda a ofereceu a um colega. A estudante publicou um relato detalhado do ocorrido nas redes sociais e o caso ganhou repercussão nacional.
De acordo com a jovem, ela foi chamada para fora da festa pelo segurança e o seguiu por se tratar de uma figura de autoridade. Em um matagal atrás do estacionamento da festa, ele a teria violentado enquanto Veluma ficava paralisada de medo. Logo após, o agressor a teria “oferecido” Veluma a um colega. A mulher diz ter olhado ele nos olhos e dito: “Você também vai fazer isso comigo?”, fazendo com que o homem desistisse do estupro.
Veluma conta que demorou a assimilar os fatos e ficou desnorteada sem saber o que fazer. Apenas na manhã seguinte teve coragem de contar para o seu pai o que aconteceu. Com o apoio dos seus pais, Veluma foi à Delegacia da Mulher e após o registro da ocorrência policial foi encaminhada ao IML e ao hospital. O que mais chamou a atenção no relato de Veluma, foi a culpabilização que ela interiorizou. A jovem admite ter se perguntado muitas vezes se havia “pedido por aquilo”, já que estava consumindo álcool em uma festa.
Mas o drama da jovem não para por aí: o suposto agressor, dono da empresa de segurança da festa, alega que não houve estupro, mas sim sexo consensual. Em seu depoimento, o empresário afirma que após troca de olhares e insinuações provocantes, eles transaram no estacionamento da festa. Segundo Wellington, ela não estava bêbada. Ele ainda confirmou ter chamado outro segurança para transar com a jovem, mas ele “recusou a oferta” por não ter um preservativo. O empresário argumenta que após o ocorrido Veluma teria agido normalmente e voltado para a festa. Ao final, ele disse que é “homem” e pela “carne ser fraca” chamou a moça para transar.
Quando resolveu publicar uma nota de repúdio nas redes sociais, Veluma queria denunciar o mal atendimento da Delegacia da Mulher para vítimas de estupro (ela esperou 4 horas para ser atendida) e incentivar as mulheres a não se calarem diante da violência sexual. O que assistiu, porém, foi uma chuva de julgamentos e culpabilização.
Sem adentrar no mérito sobre a ocorrência do crime – que será apurada pela autoridade policial nesta semana – os depoimentos prestados pelas partes e a repercussão social do evento transparecem mais uma vez o machismo arraigado na nossa cultura. Nas redes sociais surgiram comentários maldosos sobre Veluma de quem suspeita da moça – “Afinal, ela não bebeu? Estava pedindo!”, “Por que só fez a denúncia na manhã seguinte, heim?”.
Em primeiro lugar, o fato de uma mulher beber ou não, fazer uso de entorpecentes ou não, estar sóbria, semiconsciente ou inconsciente não autoriza ninguém a tocá-la de qualquer forma sem o seu consentimento. A mulher, como dona do seu próprio corpo, tem o direito de delimitar o que quer fazer com ele. Caso ela não tenha condições de oferecer resistência, por qualquer causa, o sexo será considerado estupro de vulnerável, conforme prevê o artigo 217 do Código Penal. Por outro lado, questionar a reação da vítima de estupro é desumano. O estupro é um ato, por si só, tão violento que muitas mulheres guardam esse segredo por toda a vida. Cada mulher vivencia o trauma de uma forma e não há como presumir que não houve estupro porque a mulher não denunciou o agressor imediatamente.
Importante destacar que no nosso ordenamento jurídico prevalece a presunção de inocência, ou seja, ninguém será considerado culpado até que o caso seja investigado e julgado e ninguém pode ser taxado antecipadamente como criminoso. Da mesma forma, a vítima de qualquer crime não pode ser pré-julgada por qualquer ação ou omissão relacionada ao ocorrido, muito menos quando tal julgamento tem fundamento discriminatório – e, sim, machismo é discriminação! Um exemplo típico é culpar a mulher pelo seu próprio estupro. Lembremos da pesquisa de março de 2014 do IPEA, “Tolerância social à violência contra as mulheres”, em que 58,5% dos brasileiros afirmaram que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”. Essa é a prova cabal de que a maioria dos brasileiros culpa a mulher pelo seu próprio estupro. A cultura do machismo coloca a mulher como objeto de desejo e de propriedade do homem, o que termina legitimando e incentivando diversos tipos de violência e fomentando a cultura do estupro.
O velho discurso de que o homem tem a carne fraca, que as mulheres provocam os homens com o seu comportamento extravagante e suas roupas decotadas é considerado normal. Mulher “que se valoriza” não bebe e fica dançando de forma provocativa. Mulher que sai com roupa curta “tá querendo”. Aquela que fica com vários “pediu para ser violentada”. Se uma mulher está bêbada, transou com um homem, “não tem nenhum problema o outro amigo transar também, sem o seu consentimento”. A mulher é um objeto que “passa na mão” daqueles que quiserem pegá-la. Ela que “deu motivo”. Mulher “que se dá o respeito” deve ter a reputação impecável aos olhos dos homens e mulheres machistas, os inquisidores da moral e dos bons costumes. Percebam a inversão dos valores! Uma mulher pode fazer o que quiser com o seu próprio corpo e ninguém tem o direito de julgá-la pelos seus atos. Uma mulher, consciente ou não, poderia estar nua e isso não daria à ninguém o direito de tocar seu corpo.
O homem não é um animal irracional que, por instinto, ataca sexualmente uma mulher. Irracionais são aqueles que pensam que o homem tem o direito de assediar e estuprar uma mulher e, pior, afirmam que ela é responsável por isso.
Sejamos francos: alguma mulher já pediu para ser estuprada? É uma brutalidade tão imensurável que nenhuma pessoa, consciente ou não, desejaria esse sofrimento para si. Na teoria, é inquestionável que tanto a mulher quanto o homem têm o mesmo direito de não serem violentados. Mas, na prática, o machismo ainda impera. A cultura do estupro insiste em sobreviver. Cabe a nós, paulatinamente, desconstruir esse monstro, que só poderá ser combatido se for visível. Por isso, as vítimas, por mais doloroso que seja, devem denunciar seus agressores à polícia. O silêncio apenas engrandecerá o monstro e tornará as vítimas invisíveis. Por mais que se sinta sozinha e envergonhada, você que é vítima, procure ajuda. Você não tem culpa. Nós sabemos que você não pediu para ser estuprada. E somos muitas – e estamos com você!
O que fazer se você for estuprada – recomendações de uma advogada
Um estupro é algo horrível e traumatizante e ninguém espera que você se lembre de tudo isso, mas essas atitudes podem te ajudar a colocar o responsável atrás das grades depois.
Na hora, o medo tende a nos paralisar, mas tente verbalizar o “não” para que fique super claro que você não queria aquilo – isso pode fortalecer seu depoimento à polícia. Vale lembrar que o “não” pode ser dito a qualquer momento, mesmo depois que já esteja rolando a penetração. Lembre: se o pavor te impediu de verbalizar o “não” mas você não consentiu ao sexo e mostrou isso de qualquer forma, seja no gestuário corporal, como Veluma, seja ao chorar ou mesmo ao estar desacordada ou impossibilitada de consentir, isso também é um estupro e deve ser denunciado.
Preserve as provas: não tome banho após o estupro, assim o IML pode coletar o esperma do estuprador, registrar ferimentos e marcas de resistência – se elas existirem. Não faz mal se você ficou paralisada pelo medo e não resistiu, ainda assim, o corpo deixa marcas que podem indicar que o sexo não foi consensual, como lacerações na vagina.
Busque ajuda de alguém que te apoia emocionalmente. Isso vai te ajudar durante o processo doloroso de questionamento e coleta de provas na delegacia e no IML. Pode ser qualquer pessoa: um parente, uma amiga, um namorado, até uma psicóloga ou membro de um grupo de apoio.
Vá à Delegacia da Mulher o quanto antes. Sabemos que essa parte é bem difícil, já que tudo que se quer depois de um estupro é estar em um ambiente familiar e seguro. Mas quanto antes você for, mais chances há de que as provas estejam bem preservadas.
Se não há Delegacia da Mulher onde você mora, vá a qualquer delegacia. Você deve preferir Delegacias da Mulher já que os atendentes estão mais preparados para lidar com casos do tipo mas, na ausência dela, pode registrar o ocorrido em qualquer uma.
Contrate um@ advogad@ para acompanhar as investigações e produção de provas, alguns farão isso até de graça pra você, por ideologia. Ele ou ela será o guardião ou guardiã de seus direitos junto aos investigadores e, mais adiante, el@ poderá atuar como assistente da acusação no processo judicial. El@ a informará sobre a investigação e os desdobramentos jurídicos. Esse acompanhamento é importante quando a vítima quer que o agressor seja condenado.