Eu cresci ouvindo histórias da guerra entre o Japão e a China.
O Japão invadiu a China na década de 1930 e, ao longo de quase 15 anos, travou a maior guerra que a Ásia testemunhou no Século XX. O que mais se perpetua dela são as histórias das atrocidades cometidas pelos japoneses neste período.
Nos encontros de finais de semana, quando se reunia a família expandida que contava com os conterrâneos que emigraram juntos da China, as trocas de histórias do passado na terra mãe eram os clássicos da mesa. As crianças ficavam todas sentadas em um canto, ouvindo os relatos que os mais velhos compartilhavam, entre goles de baijiu e sobras de jiaozi.
A primeira história que ouvi, ainda criança, foi sobre a escavação de buracos no chão por milhares de chineses. Depois de trabalharem durante dias sem comer, cavando sem saber para quê, os militares japoneses ordenavam que eles entrassem no buraco para serem enterrados vivos. Os chineses cavavam sua própria cova para poupar os japoneses desse trabalho, que nem bala gastavam para matá-los.
Os que contavam essas histórias, relatavam com detalhes e emoções de quem viveu aquilo. Os que ouviam, imprimiam na memória a herança de uma dor que fora feita para não ser esquecida nem perdoada. Não sei se aqueles que fazem guerra imaginam por quantas gerações seus atos irão repercutir. Três gerações depois da guerra, a China ainda vive essa ferida aberta.
O ‘sentimento anti-japonês’, terminologia usada para expressar a amargura contra o Japão, perdura até hoje entre os chineses e vem aumentando. De acordo com a pesquisa da BBC World realizada em 2017, 75% dos chineses têm sentimentos negativos em relação aos japoneses. Desde que essa pesquisa começou a ser realizada em 2006 na China, esse sentimento de oposição aos japoneses tem aumentado ano após ano, culminando em 2014 quando teve um salto de 16% sobre o ano anterior.
Se as histórias são marcantes na memória, a fusão delas com cenas retratadas nos filmes criam feridas na alma.
Essa guerra é temática entre os maiores clássicos do cinema chinês. O primeiro filme que estréia Zhang Yimou como diretor independente e Gongli como atriz internacional, O Sorgo Vermelho (Red Sorghum, 1987), fala sobre a invasão sangrenta e cruel do Japão através da história de uma família pobre de produtores de bebida na China. Mais de 20 anos depois, Zhang Yimou volta com Flores do Oriente (Flowers of War, 2011), dessa vez relatando os estupros que ocorreram durante a guerra. Também chamadas de “mulheres de conforto”, as chinesas eram sequestradas para servirem ao exército como escravas sexuais, com doses de crueldade e mutilação. Esse filme deixa a imaginação preencher os vácuos e mesmo assim dá para sentir que, por pior ela seja, não chega perto do que foi a realidade.
Aos 15 anos, assisti ao primeiro filme com meu irmão sobre a Guerra de Nanking. Ao longo de 6 semanas, cerca de 300.000 chineses foram massacrados pelos japoneses na cidade de Nanjing, por meio de torturas, testes químicos e estupros, antes de serem mortos. Entre lágrimas e soluços ao fim do filme, pegamos o catchup para fazer um “pacto de sangue”: não importava o que acontecesse, jamais nos relacionaríamos com um japonês.
Minha ojeriza pelos japoneses durou muitos anos na minha adolescência. Não tinha amigos japoneses, não comia comida japonesa, e evitava consumir qualquer produto japonês. Não era uma decisão que tomava racionalmente, mas uma emoção que assumia a frente das minhas ações. Em nome do passado, eu era dominada por um sentimento misto de medo-de-trair e raiva-de-perdoar que permeavam intrinsecamente meus encontros, por tudo que minha família e o meu povo sofreram.
Muitas vezes, na solidão dos meus pensamentos, me perguntava qual sentido havia nisso tudo. A cada japonês que encontrava, jogava toda a raiva de algo que eu não tinha vivenciado, mas ouvia falar, por conta de algo que eles não me fizeram, mas representavam na minha história. A guerra acabou, mas o passado era presente. Quando termina o fim? Não tinha coragem de fazer essa pergunta em voz alta, e tinha medo que alguém a escutasse.
Um princípio da natureza é que nada é absoluto. Não existe o todo-correto, nem o todo-errado. Nem o todo bom, ou o todo ruim. Dentro de cada parte, está contido também o seu oposto. O correto pode ser ruim, e o bom pode ser errado. A distinção entre duas partes opostas que não se conciliam, como o bem e o mal, é uma visão que nasce com o poder, na busca de criar classificações para ordenar como forma de controle. Mas, na fluidez natural, o dual é complementar. Um não existe sem o outro, e nenhum é mais que o outro. O equilíbrio está no movimento constante e circular. A vida é o encontro do que vive o indivíduo, e do que vive o coletivo. Os (re)começos pedem por finalizações, e os términos requerem atos novos.
À convite desse movimento de transformação inerente à natureza, o absoluto “jamais” deu caminho para uma relação com os japoneses por onde menos esperávamos, e da forma mais íntima que havia.
Aconteceu que crescemos no país com o maior número de descendentes japoneses fora do Japão. E para o Brasil, chineses, coreanos e qualquer outra descendência asiática é parecido com o japonês, sua referência de ‘olho-puxado‘ por serem os primeiros imigrantes da Ásia aqui. “Japonês é tudo igual.” Durante muitos anos na minha vida, até hoje eu diria, fui chamada de japonesa; vulgo “japa”. Ser confundida com o “inimigo” me agredia de formas que iam além da minha maturidade compreender.
É quase uma tortura psicológica ter espelhado pela sociedade o fato de que éramos fisicamente parecidos. Então o que me separa deles? Como é que faço a distinção do outro para saber de quem devo me distanciar? Se não é na aparência, onde fica o limite que define “eles” de “nós”?
Isso criou em mim uma necessidade passiva-agressiva de sempre reagir ao chamado de “japa”. Quando estava paciente, conseguia ignorar engolindo a raiva. Quando estava de saco cheio, revidava no mesmo nível. Minha amiga judia gostava de tirar onda me chamando de “japa”, e um dia comecei a chamá-la de “araba”. Nunca mais ela me chamou assim.
As cores dos sentimentos evoluíram com a expansão das referências. Conheci pessoas incríveis, em encontros com trocas finas e ricas que foram fundamentais na formação do meu ser. De sócios à amigos, elas expandiram meu mundo. Fiquei fascinada pela arquitetura japonesa, a cultura dos samurais, a arte repleta de espírito e a culinária, que se tornou minha favorita. Nossas raízes de valores e visões são muito parecidas. Então, quando o tema da descendência entrava em questão, me via perdida na minha própria confusão interna de como me sentir diante do fato de que tudo isso era japonês. Como deveria lidar com as dores que herdei de quem amava diante do amor que sentia por aquilo que representava esse peso do passado? Como, sendo tão parecidos, nos tornamos tão diferentes?
Recentemente, me encontrei com uma descendente de japoneses. Praticamente da mesma idade, seu rosto e jeito são tão parecidos com os da minha prima, que se me apresentassem como tal, eu nunca duvidaria.
De uma conversa informal, fomos nos aprofundando para intimidades da vida pessoal. Ela me contou sobre a vinda da sua avó para o Brasil, fugindo da Segunda Guerra no Japão onde tinha perdido o seu marido. Veio só com suas duas filhas, de 4 e 6 anos – a caçula era a sua mãe. Extremamente pobres, as três trabalharam fazendo bico com o que aparecia, de faxineira à merendeira. Emocionada, ela contou da relação próxima, porém distante, que tinha com a sua avó que mal falava português. A falta de falar uma mesma língua nunca impediu sua avó de expressar seu carinho pelas netas. E mesmo sem entender sempre o que sua avó dizia, ela sentia o peso que carregava.
Chorando, me contou sobre os traumas e as dores que sua avó viveu na guerra. No fim da Segunda Guerra, com a invasão americana no Japão, sua avó viu a sua filha mais velha ser estuprada pelo exército. Desde então, não queria nenhuma filha sua se relacionando com gaijin. Sua raiva era tanto contra os ocidentais, que ficou anos sem falar com sua própria filha quando soube que se casou com um descendente de italianos. A sua tia nunca se casou nem teve filhos. Morreu subitamente antes dos 50 por causas desconhecidas.
Foram raras as vezes em que tive uma conversa tão sincera e aberta sobre os pesos da ancestralidade asiática. Até em família. Entre os que desconhecem os detalhes vividos no passado pelos seus familiares e aqueles que são mais reservados sobre sua história, encontros como esse entre descendentes orientais são desconfortáveis o suficiente para serem evitados. Fomos educados a não expor detalhes pessoais, com a intenção de auto preservação e o custo de muita solidão. Quando deixamos de trocar emoções reais, perdemos a oportunidade de nos sentir vulneráveis e compreendidos – a combinação mais sensível que existe nas relações humanas.
Envoltas no ar da sensibilidade humana, nos despimos do ego e julgamento. Olhando para ela, dentro dos seus olhos puxados, me sentia diante de um espelho; essa história poderia ser a minha, só trocaram a descendência dos personagens da história. Ser ouvinte da sua própria narrativa traz luz a outras perspectivas. Era docemente desconfortável ouvi-la descrever o excesso da bagagem que eu trago dos meus antepassados com tanta riqueza de detalhes pois, no meu caso, ela representava o excesso. Como poderia me identificar com a mesma pessoa que lutei por tanto tempo para me diferenciar?
Ela era “japa” e eu não. Mas estava diante de mim uma mulher descendente de imigrantes, fugidos da guerra, neta da pobreza e da superação. Carregava na sua história o trauma dos abusos cometidos por homens sobre povos, sobre mulheres, e sobre gerações que viriam a seguir. Procurava se sentir pertencendo a uma sociedade estrangeira da sua origem, que sempre a reconheceu pelos seus olhos puxados. Eu também.
Somos todos iguais mesmo. Japoneses e chineses. Dividimos não apenas a aparência, mas também a dor. Não existe relação mais íntima do que com aquele que compreende a nossa dor.