
Elza Soares estreou no programa de rádio de Ary Barroso na Rádio Tupi. Elza tinha 13 anos e era mãe. A criança estava doente e Elza se inscreveu no show de talentos porque os primeiros lugares ganhavam prêmios em dinheiro. Era uma chance de pagar o tratamento do filho.
Elza subiu no palco, mulher negra, jovem e magra. Vestida conforme o lugar que ocupava na nossa perversa espiral de privilégios. Notavam-se os remendos. Os alfinetes. Ary Barroso começou mais um “Calouros em Desfile” como pedia o figurino – dele. E deparou-se chocado com o figurino dela.
O que é que você veio fazer aqui?
Ary a recebeu com uma dose cheia do caldo de branquitude, classismo e machismo que a elite brasileira traz consigo. Alguns exemplares transbordam este caldo. Lhes escorre pelas narinas e orelhas. Outros trabalham duro para desaprender. Lutam. Mas se espremeres estes exemplares, deles também pinga o caldo do opressor.
Voltemos à Elza. Ela respondeu: eu vim cantar. E quem disse que você sabe cantar? Eu. E de onde você veio, menina? Elza respondeu com a altivez disruptiva que está em cada nota do seu jazz de lata d’água na cabeça:
Eu vim do planeta fome
Em 1983, a teórica indiana Gayatri Spivak escreveu “Pode o Subalterno Falar?”. O ensaio, referência absoluta para compreender a contribuição dos estudos pós-coloniais para as ciências humanas, fala do silenciamento sistemático do subalterno.
Categoria nomeada por Gramsci, o subalterno é aquele ou aquela que não pertence socialmente, politicamente e geograficamente às estruturas hegemônicas de poder. Os excluídos. Os que são triturados diariamente pela mecânica da descriminação. Se não parece natural ou correto o subalterno falar, pode o subalterno cantar? Ary e sua plateia que rompeu em risadas achava que não. Acha ainda, pois mudamos pouco. Somos a mesma plateia agora diante de novas mídias.
Elza cantou Lama neste dia. Escutem Lama. Elza, subalterna, cantou rainha, majestosa, uma canção de despeito transcendido não em queixa. Mas em protesto. Queixa e protesto são coisas muitíssimo distintas. Ary Barroso boquiaberto aplaudiu aquela mulher negra do planeta fome.
Como diz meu pai, música é a arte que dói mais porque os ouvidos não têm pálpebras.
A plateia que ria daquela menina teve de acompanhar seu condutor reverenciando aquela criatura que ousou adentrar espaços que lhe eram negados e fazer neles seu ninho.
Tudo isso aconteceu. Antes da Beyonce ir ao SuperBowl vestida de Pantera Negra. Antes do último episódio de Amor e Sexo. Isso aconteceu. Nosso feminismo tem história, temos heroínas nossas, subalternas que não aceitaram o silêncio.
Feministas brasileiras, um longo inverno vem aí. Precisaremos resistir juntas. Vai ser necessário entender como lutar por direitos e igualdades no mainstream, como evitar o esvaziamento de agendas contra-majoritárias ao convidar a maioria à reflexão. Vai ser preciso fazer tudo isso sem reproduzir as dinâmicas violentas das disputas políticas machistas, racistas, classistas. Nos acolhendo nos nossos erros e acertos. E exercitando a crítica sem que ela implique em agressividade, em desautorizar o outro. Porque a luta nunca foi para que o subalterno falasse sozinho. E ela não começou hoje.
No mais, que fique aqui minha opinião: todo palco em que Elza pisa é feminista enquanto ela estiver nele. Da primeira vez, eu não estava lá para aplaudir de pé. Agora estou.
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