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10 de fevereiro de 2016

O Carnaval não está em risco, as mulheres estão

Se a Aurora fosse sincera, ela diria que ela sente medo de andar por aí. Ela não quer dizer sim, mas teme dizer não. Ela foi ensinada que a culpa é dela

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Foto: Gaëtan Zarforoushan
Neste ano, mulheres se manifestaram contra a palhaçada do assédio e foram vítimas de violência – Foto: Gaëtan Zarforoushan

A festa acabou, a luz apagou. Agora é pra valer: é 2016. Bola Rolando, o ano começou. E agora, José? Agora a gente precisa conversar.

59% dos homens abordados pelo Instituto Data Popular, em pesquisa encomendada para a campanha #CarnavalSemAssedio, acham que as mulheres ficam felizes quando ouvem uma cantada na rua. 49% dos homens acham que bloco de Carnaval não é lugar para mulher “direita”. 61% acham que mulher solteira que vai pular Carnaval não pode reclamar de cantada.

Essa matemática não fecha, José. Os números da campanha Chega de Fiu Fiu mostram que 83% das mulheres brasileiras não acham legal ouvir cantada. 81% das mulheres já deixaram de fazer alguma coisa ou frequenter algum lugar por medo do assedio. 68% dizem já ter sido xingadas após dizer não a uma cantada. Esse ano, José, teve moça que, ao invés de rasgar a fantasia, teve a fantasia rasgada. A apoteose de muitas foi o pronto-socorro, foram pra casa com pontos no rosto, hematomas no corpo. Foram agredidas por dizer não ou por defender o não das companheiras.

Os homens acham que a gente gosta de fiu fiu, José. Mas a gente sente é medo de fiu fiu. O ano todo. No carnaval, é ainda pior. Carnaval não é exceção. É a regra com purpurina. E violência não é folclore. O que muitos chamam de festa é, na verdade, a cultura do assédio fantasiada de cultura popular.

Você, José, pensou agora: mas eu não sou assim. Você se emocionou ao ler as amigas e seus hashtags no ano passado. Quando os números do balanço da ONG Think Olga foram divulgados e você ouviu dizer que a idade média dos relatos sobre o primeiro assédio era 9,7 anos, você ficou chocado. Você respeita as mina. Mas você ainda não está convencido. Você está preocupado com a criminalização do flerte, José. Você quer zelar pela brincadeira, pela paquera. Não podemos acabar com a folia. José, você não quer que a gente perca a brasilidade.

Se a Aurora fosse sincera, ela diria que ela sente medo de andar por aí. Ela não quer dizer sim, mas tem medo de dizer não. Ela foi ensinada que a culpa é dela: ela que te provocou, José. Porque ela existe e passou assim, sendo mulher, na sua frente. Se ela passou na sua frente sambando, então. Que direito ela tem de dizer não? Ela tem direito, José. Temos que desnaturalizar a violação dos direitos da mulher. Nesses dias e nos demais. A jardineira está tão triste porque ela é menos livre que o jardineiro. Foi isso que aconteceu. As pastorinhas querem desnaturalizar a opressão e a desigualdade. A mulata bossa-nova é uma mulher negra que quer empoderamento verdadeiro e não quer mais o pseudo-protagonismo mudo e a objetificação da Globeleza. Abre alas, a gente quer passar.

O ano começou e a primeira coisa que você precise saber, José, é isso. O Carnaval não está em risco. As mulheres estão.

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* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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