logo AzMina
15 de janeiro de 2019

Autocuidado: a ferramenta política mais necessária em 2019

Muito além da indulgência, a prática será uma estratégia de preservação em um ano tão difícil para as mulheres

Nós fazemos parte do Trust Project

O ano recém começou e já tensionou e esgarçou as cordas da nossa existência. 2019 mal cruzou a esquina e estamos exaustas, aflitas, preocupadas, tristes. Desde a posse de Jair Bolsonaro, observamos atônitas — mas não surpresas — o desenrolar de políticas públicas e tomadas de decisão estratégicas que só fazem apertar o cerco dos direitos de grupos invisibilizados. Muitas de nós ainda estão de pé resistindo, mas até quando daremos conta?

A verdade é que o ativismo e a militância são espaços propícios para que joguemos para escanteio o autocuidado — principalmente no que tange à saúde mental.

Frente a questões que parecem mais emergenciais, vamos nos colocando, individualmente, de lado. Ainda não há dados específicos sobre a questão para quem está na linha de frente das lutas coletivas, mas estudos abrangentes já assustam: o Brasil lidera o ranking de transtorno de ansiedade e depressão. E a maioria diagnosticada é mulher.

Entre elas, muitas que se dedicam, de alguma forma, a fazer tremer as estruturas patriarcais sofrem ataques e ameaças constantes. Como consequência da pressão e do medo, os níveis de estresse, fadiga e até dores físicas e doenças mais graves disparam.

Nos países em que a luta pelos direitos femininos e pela liberdade da mulher caminha a passos lentos, as ameaças à saúde e ao bem-estar de ativistas são ainda mais afetados. Um levantamento feito pela Iniciativa Mesoamericana de Defensoras de Direitos Humanos mostrou que, no México, 91% das defensoras convivem com o estresse diariamente.

Há, aí, um outro problema. A indústria do bem-estar cooptou o tema de autocuidado e o transformou em mais um item à venda nas prateleiras. Hoje, quando falamos da importância de olharmos com atenção para nós mesmas, imediatamente vem à cabeça máscaras faciais, banhos de espuma, uma taça de vinho rosé no fim daquele dia exaustivo de trabalho. E não é que todas as opções anteriores não possam ser, de fato, um cuidado que despendemos para nós mesmas.

Autocuidado

O problema, na raiz, é que superficializar assim a discussão faz com que continuemos adoecendo mental e fisicamente por conta das pressões, violências e sobrecargas. Comercializar o autocuidado e esvaziar seu sentido é mais uma das ferramentas estruturalmente patriarcais que fazem com que esqueçamos de nós e que continuemos endereçando nossa atenção e cuidados para outras fontes.

“Cuidar de mim mesmo não é auto indulgência, é uma autopreservação e é um ato de guerra política.”

Audre Lorde, do epílogo do “A Burst of Light”

Nossos sistemas de poder, como apontava Lorde, foram projetados para nos fazer infelizes. Foram estrategicamente pensados para limar a felicidade e o bem-estar de determinados grupos de pessoas — algumas, vale ressaltar, muitíssimo mais do que outras, como é o caso de mulheres negras e indígenas.

Neste cenário, cuidar-se é um ato político dos mais poderosos.

Não só para mulheres na linha de frente, claro, mas para todas nós que enfrentamos, diariamente, as amarras de um sistema machista que nos limita e oprime. Cuidar-se é sobre lançar uma mirada atenciosa sobre as mais diversas esferas da nossa vida e entender o que nos machuca, o que nos afeta, o que coloca em risco nossa saúde.

Por mais que tenhamos nascido no país que não discute política, religião e futebol na mesa do almoço de domingo, é impossível negarmos o fato de que o existir é, por si só, para a mulher, um ato de resistência. O que comemos, aquilo que compramos, os lugares que frequentamos, nossas crenças, lutas e labutas: em tudo há um viés político. Eis a importância — e potência — da frase de Audre Lorde.

Durante as eleições, muitas das mulheres ao meu redor adoeceram. Foram ao limite tentando transformar a realidade que nos sentenciava e extrapolaram contornos para que nossas vozes fossem ouvidas. Sobraram militância e ativismo, mas faltaram espaços e tempos de escuta, presença e entrega para nós mesmas.

Quantas de nós não rompeu, por exemplo, com figuras maternas por que estas não se entendiam como seres políticos? A verdade é que não fomos educadas nem para nos cuidarmos e muito menos para ocuparmos espaços em que estejamos cientes dos nossos direitos e liberdades.

Formação política

Desse incômodo criei junto com a documentarista Camila Coutelo As Berthas, um curso de formação política para mulheres. Durante um mês e meio, serão oferecidas gratuitamente nove vídeo-aulas com temas que vão de ativismo nas redes sociais à sexualidade feminina e direitos da mulher sobre seu corpo; da ocupação da cidade pelas mulheres à maternidade.

Não é sobre formar mulheres para ocuparem cargos de poder, mas para que entendamos nossos contextos e para que nos reconheçamos como líderes de nossas redes — por menores que sejam. Junto com a gente, mulheres incríveis como a socióloga Sabrina Fernandes, a recém-eleita a co-deputada pela Bancada Ativista em São Paulo Anne Rammi e a educadora sexual Clariana Leal.

Para dar início ao projeto — que está em financiamento coletivo —, a primeira turma se reunirá presencialmente, no dia 22 de janeiro, em São Paulo, para a aula magna com a palestrante Gabrielle Picholari, que apresentará visões e caminhos sobre autocompaixão, ética do cuidado e liderança feminina.

Temos experiência em ser despedaçadas, é verdade, mas são essas comunidades potentes em torno das pressões e opressões sofridas — redes feministas, antirracistas etc — que trazem o poder de reconstrução, suporte e apoio de que tanto necessitamos, principalmente em tempos áridos como os que estamos vivendo.

Direcionando o cuidado para nós mesmas, individual e coletivamente, e endereçando nossa preocupação para nosso bem-estar, subverteremos a lógica de que as mulheres supostamente são cuidadoras por natureza, jamais as cuidadas.

Trabalhar, aliás, essa perspectiva do autocuidado é que permitirá a sustentabilidade dos movimentos sociais.

Porque a revolução já é feminina. Repara e vê: estamos organizadas, atentas e fortes. Mais compassivas com nossas fragilidades e contratempos, estaremos, também, mais firmes nas nossas próprias bases e mais lúcidas para seguir em frente — ou recuarmos, se assim o momento pedir. Ninguém solta a mão de ninguém. E ninguém se abandona à própria sorte.

Se você ficou interessada em participar da aula magna e da primeira turma de formação do curso, abriremos cinco vagas para leitoras d’AzMinas, por ordem de inscrição. É só enviar um e-mail para asberthas@gmail.com com o assunto AULA MAGNA | AzMina + As Berthas.

O encontro acontecerá dia 22/01 (terça-feira), das 20 às 22h, na Casa Jardim Secreto no Bixiga.

 

* Jornalista especialista em gente, Gabrielle escreve e fala sobre gênero, cultura e desenvolvimento humano. Também coordena projetos com propósito e impacto social. “Amada pensadora a tensionar as cordas da reflexão”, é como seu pai a descreve. Vai ver que ele tem razão.

 

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Faça parte dessa luta agora

Tudo que AzMina faz é gratuito e acessível para mulheres e meninas que precisam do jornalismo que luta pelos nossos direitos. Se você leu ou assistiu essa reportagem hoje, é porque nossa equipe trabalhou por semanas para produzir um conteúdo que você não vai encontrar em nenhum outro veículo, como a gente faz. Para continuar, AzMina precisa da sua doação.   

APOIE HOJE