No mundo todo, apenas duas mulheres chefes de estado deram à luz enquanto estavam no exercício do mandato. O que dá uma ideia de como a maternidade está distante da vida política. Exemplo disso foi o alvoroço que a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Adern, causou ao levar sua bebê de três meses a uma Assembleia Geral da ONU. Ela voltou ao trabalho após seis semanas de licença maternidade e, como está amamentando, viajou para Nova York com a filha. Aos 38 anos, Jacinda é a terceira mulher a ocupar o cargo em seu país e a segunda governante na história recente a parir no exercício do cargo, depois da paquistanesa Benazir Bhutto, há quase 30 anos.
A primeira-ministra neozelandesa, porém, teve que enfrentar uma estrutura que não está preparada para as necessidades de uma mãe. Como sua bebê ainda não tinha idade para receber todas as vacinas necessárias para viajar, Jacinda optou por abreviar a viagem. Assim, fez um voo extra, separada do resto da equipe, com um avião da Força Aérea. Agora tem de explicar o gasto adicional – mesmo após o ministro de finanças do país ter tomado partido e dizer que a aeronave e sua tripulação estariam a postos de qualquer modo, para esse ou outro voo.
Em um período político conturbado como o atual no Brasil, a experiência de Jacinda é um sobreaviso: se quisermos políticas de mulheres, precisamos de mais mulheres na política. Mas só isso não é suficiente. É necessário que essas mulheres defendam bandeiras de feminismos plurais, como é o caso das mães, que ainda têm suas causas invisibilizadas no cenário político.
“A maternidade compulsória, pintada como obrigação e apresentada num cenário extremamente romantizado, tira de nós o papel da mãe também como um estado político da mulher: que compreende a urgência da igualdade, de uma sociedade sem violência, sem miséria”, afirma Anne Rammi, candidata à deputada estadual pela Bancada Ativista, em São Paulo, que propõe um mandato coletivo – modalidade em que um grupo de pessoas se reúne em torno de um único nome registrado na candidatura que, se eleito, exercerá o mandato em grupo. “Agora, estamos reivindicando esse espaço da mulher mãe para dentro do contexto político como uma ferramenta radical de transformação”, completa Anne, que é artista, feminista, ativista pela maternidade e infância e mãe de Joaquim (8 anos), Tomás (6) e Iolanda (3).
Nada sobre nós, sem nós
Homens, brancos, empresários, de classe alta, com ensino superior completo e de meia idade. Esse é o perfil da maioria dos candidatos nas Eleições 2018. A baixa presença de mulheres no Congresso brasileiro é inegável. Na Câmara dos Deputados elas são apenas 10%. No Senado, quase 15%. Isso coloca o Brasil na 154ª posição no ranking de 190 países em relação a participação de mulheres na política, feito pela organização internacional Inter-Parliamentary Union (IPU).
“Nossos representantes constantemente reinventam formas de excluir a base da pirâmide dos processos de decisão. Hoje, o setor de poder está concentrado na minoria representativa dessa população. Por isso, colocar negras, transexuais e mães na política – e até crianças, sendo bem audaciosa – é urgente. Estamos falando de uma ferramenta de instrumento de transformação social rumo à pauta que deveria unir a todos, que é a erradicação das desigualdades e respeito absoluto à vida humana”, diz Anne.
Leia mais: Como o feminismo e as mulheres podem influenciar as eleições em 2018
Em um mundo em que ser mãe aumenta a complexidade da nossa existência e aumenta as vulnerabilidades às quais estamos sujeitas, apenas o recorte de gênero não basta. “Temos de falar, também, sobre especificidades. E a maternidade é uma delas. Vivemos numa sociedade patriarcal, machista, misógina e que também é pedofóbica [fobia caracterizada pela aversão ou ódio a crianças] e isso acaba aumentando nossa invisibilidade”, diz Ligia Moreiras, bióloga, autora do blog Cientista que Virou Mãe e candidata à deputada estadual pelo Psol, em Santa Catarina. Ligia é mãe de Clara, de 8 anos.
Um dos setores em que a discriminação é notória é no mercado de trabalho. De acordo com um estudo da consultoria Robert Half, 27% das trabalhadoras têm dificuldade em reassumir antigas atividades quando regressam da licença-maternidade. Das que retornam, 48% das mães perderam o emprego até dois anos após a licença. A maioria dos desempregados no Brasil, aliás, é mulher com média de 35 anos (59%) e com filhos (58%). E a lista de obstáculos na corrida por equidade de gênero para quem materna é grande.
E na política não é diferente. Manuela D’Ávila, candidata à vice-presidência pela chapa PT e PCdoB, acumula experiências de desrespeito, preconceito e enfrentamentos quando o assunto é maternidade e profissão. Em 2016, durante uma sessão da Comissão de Direitos Humanos na Assembleia do Rio Grande do Sul, Estado pelo qual é deputada estadual, Manuela foi fotografada amamentando sua filha, então com 11 meses, enquanto falava na plenária. A imagem correu o mundo.
Leia mais: Mulheres no Congresso aumentam confiança na democracia, diz especialista de gênero da OEA
Alvo de críticas, ela respondeu via redes sociais. “A política é masculina e machista, a política não tem espaço para as mulheres, a política não tem espaço para o que nos diferencia dos homens, a política não tem espaço para a ingenuidade e para a alegria das crianças, não tem espaço para a naturalidade com que conciliamos nosso trabalho e nossas lutas com nossos bebês. Levar Laura comigo tornou-se, sem que eu percebesse, uma forma de resistir à política que desumaniza”, afirmou.
Mais recentemente, tem sido indagada sobre a presença de Laura, com agora três anos, durante a campanha política da mãe. Manuela é uma das autoras da lei 14.760, de 2015, que garante o direito à amamentação em locais públicos ou privados do Estado e busca combater o constrangimento imposto às mães e aos filhos.
Além da representação política feminina, as candidaturas de mães trazem um olhar crítico que busca subverter a lógica das tomadas de decisão e trazer, para as minorias, o poder de participar ativamente na proposição de políticas públicas, tornando-as mais inclusivas. Nesse contexto, a maternidade é uma pauta identitária que não pode mais ser silenciada, avalia Ligia. “Da mesma forma que temos de incluir as questões específicas das mulheres trans, das mulheres negras, das mulheres com deficiência, também temos de falar das mulheres mães. Cada característica que traz para a vida das mulheres uma dificuldade no acesso aos direitos tem de ser incluída para ontem nas agendas.”
As pautas em jogo
O que se nota no jogo político é que há pouca vontade de quem já está legislando em tocar pautas que, de algum modo, possam reduzir os privilégios existentes. Para Anne, essa invisibilização vem do fato de que a pauta da maternidade é uma ameaça ao capitalismo patriarcal. “Se tivermos uma sociedade estruturada a partir da valorização da maternidade e do respeito integral e prioritário à infância, isso significaria que a exploração, a dominação e a competição não irão se sustentar”, diz.
A maternidade ainda não é encarada como uma livre escolha da mulher, vide a criminalização do aborto e o preconceito que sofrem mulheres que decidem não ser mães. O olhar ainda é muito “biologizante”, voltado para um útero que gera e um seio que alimenta, sem considerar a inclusão social de mães e crianças. Sem a garantia de direitos para as mães por meio de políticas públicas, as barreiras para quem deseja maternar ativamente são muitas.
Leia mais: Laranjas profissionais? Com zero votos em eleições anteriores, elas são candidatas em 2018
As pautas das candidatas, no entanto, vão muito além de fortalecer políticas que garantam uma gestação tranquila e bem assistida, um parto respeitoso e sem violência obstétrica e o direito de amamentar seu bebê em livre demanda em qualquer espaço público que seja. Elas esticam o olhar para outras questões fundamentais do maternar. O direito à cidade, por exemplo, está exposto de diversas formas nas pautas das candidatas mães nessas eleições.
Um dos pontos críticos das propostas são as creches. Hoje com poucas vagas, com horários de entrada e saída que não batem com os horários de trabalho das mães. Além de um sistema educacional engessado e com métodos ultrapassados. O passe gratuito para mães com crianças nos transportes públicos e o direito de estar com os filhos em qualquer espaço também são pautados.
O recado aqui é claro: lugar que exclui criança, exclui também a mulher – mas não o homem.
Como candidata à deputada estadual, Anne lembra que o legislativo do estado tem prerrogativas bem definidas e que, por mais que determinadas pautas não sejam de sua seara, é possível fiscalizar e garantir que alguns direitos estejam sendo atendidos. É o caso do aborto. “Não posso atuar interferindo nas questões da legalização do aborto, mas podemos fiscalizar os sistemas públicos que já contam com o serviço de interrupção voluntária da gravidez dentro da lei”, explica a candidata. “Como, a partir da vivência das mulheres mães que precisam do serviço, podemos garantir que elas recebam ali um atendimento sem objeção de consciência do profissional médico, por exemplo?”.
Outro tema levantado pela candidata é a situação das mulheres mães em presídio. Atualmente, há um contingente grande de mulheres presas, muitas vezes gestantes ou separadas dos seus filhos. “Sabemos que há prerrogativas na lei para que mulheres com filhos de até cinco, sete anos, possam cumprir a pena em liberdade – exceto, claro, para crimes hediondos. O prejuízo para a sociedade é maior quando há uma criança na orfandade do que o benefício de ter uma mulher presa no sistema carcerário”, defende Anne.
Olhando para as pautas levantadas, há, na identidade materna, uma dimensão fundamental para pensar política no Brasil: por meio do posicionamento sobre espaços de direito das mães em sociedade, é possível refletir os processos de socialização de gênero que configuram espaços sociais desiguais entre homens e mulheres. “Hoje não temos representantes que chamem os envolvidos para dentro das casas do povo para buscar soluções conjuntas e coletivas a partir da necessidade de quem mais precisa das políticas públicas – que, evidentemente, não são os políticos que já estão lá”, diz Anne.
Domingo, nas urnas
Maioria numérica na população, as mulheres estão buscando ocupar seus devidos espaços também na esfera política. Prova disso foram as manifestações #EleNão do último sábado. O movimento de bandeiras feministas, antirracista e contra a homofobia começou nas redes sociais e ganhou as ruas de todo o Brasil e também de capitais de outros países, no que já deve ser uma das maiores manifestações convocadas por mulheres na história do Brasil.
No próximo domingo, dia 7 de outubro, o chamado das candidatas é fazer do exercício democrático um ato de resistência à agenda conservadora. “O desafio está muito além de eleger mulheres, mas sim eleger mulheres que entendam a lógica de destruição de um sistema que nos oprime e que pense e atue na construção da valorização dos grupos que são maioria minorizadas. Porque assim como há muito político negro que não debate negritude também há candidata mulher que não contempla a agenda feminista”, diz Anne.
Como o movimento do #EleNão deixou claro, o projeto de poder defendido pelas mulheres não é só partidário ou com o recorte específico de gênero. Ele levanta pautas estruturantes para a sociedade. “Estamos em um momento histórico em que não temos mais alternativa. Esse é um momento de construção de presente, mas também de futuro porque quando as meninas e jovens de hoje olharem para trás elas saberão que também podem e devem ocupar esses lugares”, diz Ligia. “É aquela frase: nada sobre nós, sem nós.”