Promulgada em 2 de abril de 2013, a PEC das Domésticas tentou regular o que foi desregulado por patrões, pela crise econômica e, agora, pelo novo coronavírus. Em meio à pandemia, relatos em profusão mostram direitos não cumpridos e empregadores sem empatia. Mas o coronavírus apenas evidenciou um quadro que mudou aquém do esperado nos últimos sete anos.
“Atendemos uma doméstica que há tempos vem passando dificuldades com a patroa. Este ano ela foi para o litoral tomar conta do filho da empregadora, mas não recebeu pelas horas extras que trabalhou na viagem. Foram 32 dias direto. A patroa a fez assinar o caderno de horas com os horários que ela mesma determinou”, conta Silvia Maria Silva dos Santos, presidenta do Sindicato das Domésticas do Município de São Paulo. “Durante a pandemia, quer que a trabalhadora fique na casa, alegando que ela não tem filho. Depois da viagem, ela esteve apenas dois dias em casa e já está há 15 na casa da empregadora.” O relato mostra a escalada de abusos, que começa muito antes da pandemia e, de fato, remonta ao Brasil colonial.
Apesar dos apelos para que as trabalhadoras domésticas fossem liberadas recebendo seus vencimentos, o que está acontecendo é o contrário. E mais. Na capital paulista, uma empregadora que contraiu o vírus não quis pagar o teste para a funcionária, que se contaminou na residência e não conseguiu ser testada em uma unidade de saúde do SUS.
A empregadora havia feito o exame no Hospital Sírio Libanês, referência nacional na rede particular. A assessora jurídica do sindicato, Zenilda Ruiz, teve que ligar para a empregadora, que acabou cedendo e pagando pelo exame. Diabética e com pressão alta, a trabalhadora doméstica faz parte do grupo de risco para o Covid-19.
Ruiz conta que, juntamente com as cuidadoras de idosos, as diaristas são as trabalhadoras domésticas mais vulneráveis na atual crise. Elas compõem 44% da categoria, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a partir de dados do IBGE. A pesquisa, divulgada em dezembro do ano passado, mostra ainda que 65% da classe é composta por pessoas negras.
“Não dá para falar sobre as trabalhadoras domésticas e a naturalização da violação de direitos dessas mulheres sem entender que a maioria é formada por mulheres negras e de baixa escolaridade. Nesse processo, tem um resquício inegável da escravidão e da ausência de direitos de quem trabalhava nas casas dos seus senhores”, afirma Márcia Soares, diretora-executiva da Themis, organização de Direito voltada para atendimento a mulheres.
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O fator Bolsonaro
Tudo ficou ainda mais difícil após o penúltimo pronunciamento do presidente da República criticando o isolamento social, no dia 24 de março. Esta semana, em rede nacional, depois de minimizar o Covid-19 várias vezes, Jair Bolsonaro mudou o tom. Mas o estrago já estava feito. O árduo trabalho de convencer empregadores a liberar as funcionárias retrocedeu.
“Até então estávamos conseguindo conscientizar as empregadoras. Mas após o pronunciamento, as patroas passaram a ameaçá-las”, diz Cleide Pinto, presidenta do Sindicato dos Trabalhadores e Empregados Domésticos de Nova Iguaçu, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Ela afirma que há empregadores até oferecendo veículos para buscar as funcionárias em casa.
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“Sabemos que a situação é difícil. Mas o dinheiro que ia ser pago à doméstica já está no orçamento da família. Não é um gasto extra”, lembra a presidenta da Federação das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Luiza Batista.
Segundo o Ipea, em 2018 trabalhadores sem carteira representavam 71,4% do total da categoria, composta por nada menos do que 5,7 milhões de mulheres (93,5% do total). Luiza Batista, presidenta do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas em Pernambuco, fala que no estado, entre a maioria composta por quem não tem carteira, apenas uma minoria foi liberada do trabalho e manteve o salário.
Uma empregadora de São Paulo que ordenou a trabalhadora a voltar ao expediente logo após o pronunciamento de Jair Bolsonaro ameaçou a funcionária de demissão. “Você tem que lavar e cozinhar para minha mãe, porque, se não, é abandono de incapaz. Eu pago é para você trabalhar”, disse a empregadora, segundo o relato da funcionária. Apesar dos apelos do sindicato para que ao menos haja uma mudança de horário, a fim de que a funcionária evite horários de pico no transporte público, a empregadora ainda não concordou.
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Muitas que conseguiram garantir o salário de março ouviram empregadoras dizerem que não sabem se terão condições de efetuar o pagamento em abril, segundo Silvia dos Santos, do Sindicato de São Paulo. “As trabalhadoras com carteira assinada, bem ou mal, têm algum suporte. Nossa preocupação maior é com as autônomas”, diz Santos.
A carioca Maria**, diarista de 38 anos, trabalha quatro vezes por semana em casas diferentes. Devido ao isolamento social, todas as suas diárias estão suspensas há 15 dias. Apenas uma de suas empregadoras continua depositando o valor para ajudá-la a pagar as contas. Mas isso não é suficiente, segundo ela.
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“Eu não parei de trabalhar porque não quero ou não preciso, mas minhas patroas não querem que eu vá. Estou em casa, e a situação está bem complicada, porque, como diarista, se eu não trabalho, eu não ganho”, afirma.
O Ministério Público do Trabalho emitiu nota técnica em que recomenda às empresas, órgãos públicos e pessoas físicas que dispensem os trabalhadores domésticos com remuneração, excetuando-se apenas casos em que a “prestação de seus serviços seja absolutamente indispensável, como no caso de pessoas cuidadoras de idosas e idosos que residam sozinhos”.
Os procuradores pedem ainda flexibilidade da jornada de trabalho e fornecimento de equipamentos de proteção individual (luvas, máscara, óculos de proteção e álcool 70%) quando houver suspeita de pessoa contaminada no local de trabalho. A primeira morte causada pelo coronavírus no estado do Rio de Janeiro foi de uma trabalhadora infectada pelos empregadores, que não a avisaram que tinham o vírus.
De acordo com o jornal O Globo, o governo deve incluir trabalhadores domésticos na Medida Provisória que possibilita empresas a suspenderem contratos de trabalho por dois meses, com redução de até 50% dos salários. No período, de acordo com o texto, eles receberão seguro-desemprego.
Essa reportagem foi originalmente publicada na Gênero e Número e faz parte da parceria d’AzMina com a GN, data_labe e Énois na cobertura do novo Coronavírus (Covid-19) com foco em gênero, raça e periferia. Acompanhe a cobertura completa aqui e nas redes e pelas tags #EspecialCovid #Covid19 #CovidEMulheres