Fotos: Nana Queiroz
C heguei ao leste chinês com a câmera na mão e uma ambição na cabeça: eu queria uma foto que representasse a mulher chinesa contemporânea. Meu objetivo se mostrou tão tolo quanto meu parco conhecimento daquele gigante do Oriente: não só as chinesas são multifacetadas como enfrentam, hoje, mesmo dentro de cada uma, uma crise de identidade.
A abertura econômica trouxe consigo, nos últimos 30 anos, uma invasão cultural agressiva do Ocidente. McDonalds pipocam aqui e ali, mesmo em cidades pequenas. O padrão de consumo se transforma radicalmente e chinesas se veem bombardeadas de propagandas cheias de rostos ocidentais e marcas de importados. Seu rosto começou a ser estranho, o padrão de beleza se alterou. O fenômeno mais surpreendente de que tomei conhecimento neste um mês de jornada fotográfica foi o crescimento do mercado de clínicas de cirurgia plásticas que, entre outras alterações, aumentam os olhos das chinesas.
Certo dia, por exemplo, uma jovem de rosto delicado e corpo delgado me parou na fila de um comércio e confessou: “Você é tão bonita! Queria ser como você!”. Eu fiquei em choque: por que uma moça tão linda não estaria feliz em ser quem era? Ao que ela retrucou: “É que você tem lindos olhos grandes!”. A atitude da jovem faz ainda mais sentido quando olhamos as bancas de jornais apinhadas de revistas Vogue, Marie Claire e Cosmopolitan, que exportam os duros padrões de beleza ocidental junto com a publicidade das ruas.
Elas querem consumir e carregam sacolas cheias de compras numa bagunça que me fez questionar se eu estava mesmo em Xangai ou em Nova York. O mercado de luxo da China está entre os que mais crescem no mundo, e as chinesas cedem às propagandas que cobrem os metrôs, enfeiam as cidades e invadem a televisão mesmo tendo que usar máscaras para sobreviver à intensa poluição de cidades como Pequim e Xangai, em que, às vezes, não se vê a próxima esquina devido à névoa.
Pouco resta de comunista na China e as diferenças de classe afetam as mulheres de maneira perceptível. Enquanto 2.9 milhões de chineses têm rendas altas, muitas mulheres idosas e mães com filhos pequenos moram nas ruas. A desigualdade é brutal e palpável.
A China do século 21 também está se urbanizando a um ritmo superlativo – 100 vezes maior do que o da Inglaterra em plena Revolução Industrial. Em 2012, a população das cidades superou a das áreas rurais pela primeira vez. Hoje, ela já chega a 54% da população. Enquanto nas cidades as mulheres heterossexuais têm acesso a relacionamentos e uma vasta escolha de parceiros (em alguns locais, por conta da política do filho único e do infanticídio de meninas, a taxa de homens para cada mulher chega a 6 para 1), mulheres no interior ainda vivem casamentos forçados.
Muito não pode ser dito publicamente e as chinesas têm pouco espaço para manifestarem suas inquietações culturais e políticas. A ditadura chinesa é onipresente, bloqueia redes sociais, serviços do Google e do Facebook, revista cada pessoa que entra num metrô ou numa Praça Pública. Em cada estação, centenas de chineses se alinham para passar suas bolsas pelo escrutínio de um raio-X.
Como destaca a autora chinesa exilada Xinran em muitos de seus livros, as mulheres mais velhas ainda carregam em si os traumas da Revolução Cultural, em que foram estupradas, torturadas, separadas de seus filhos e casadas à força por membros da Guarda Vermelha em nome da loucura de Mao Tsé-Tung. Já as jovens não têm acesso crítico a essa memória nas escolas e aprendem a se calar e se fechar nas telas dos celulares. O fascínio pelo aparelho impede que as pessoas se falem no transporte público ou nas ruas das cidades chinesas. Há um tipo de medo de abrir-se ao outro, me diz uma jornalista brasileira que mora em Pequim, herança de anos em que mesmo filhos denunciavam os pais à Guarda, que os castigava sem piedade.
Minha visita se iniciou em um momento especial: dias após a abolição da política do filho único. A partir de outubro do ano passado, casais foram permitidos a ter dois filhos, o que é uma boa notícia para as mulheres. A espiritualidade chinesa se dá fortemente em torno da veneração de ancestrais em altares erguidos em casa. Os incensos que queimam constantemente só podem ser acesos por membros homens da família. Se o incenso apagar, com ele acaba o descanso de toda uma linhagem no além. Essa fé, aliada a uma valorização da masculinidade e da transmissão do nome familiar através do filho homem, levou muitos chineses a matarem suas meninas ao nascer, em massa, já que ninguém queria condenar os ancestrais à infelicidade eterna.
Até o momento de nossa visita à China, o modelo da família chinesa era este: um casal, um filho.
Por outro lado, surpreende a inexistência de comportamentos machistas tão conhecidos pelas brasileiras. Não há, por exemplo, assédio sexual nas ruas – nem mesmo olhares ousados – e as chinesas ocupam profissões dominadas exclusivamente por homens no Ocidente, como pedreiras, agricultoras de trabalho pesado e reparadoras de rodovias.
Ling Xie, uma inteligente advogada recém-formada de 23 anos que conheci em Guanxi, no sul do país, me diz que não está feliz com a política de dois filhos: queria logo três! Já uma grande amiga dela não pretende casar-se ou ter filhos (algo impensável há algumas décadas), outra nem sequer arrumou namorados ainda e uma terceira ama mulheres. O grupo de quatro garotas inseparáveis está super confortável com isso, mas a menina ainda precisa esconder a orientação sexual dos pais, geração para qual isso seria inaceitável.
Enquanto Ling Xie foi à universidade, namora um homem que ama e fala inglês fluentemente, sua avó ainda mora em um barco com o marido arranjado há décadas e treina pássaros para pescar por eles. As diferenças entre as duas acaba, porém, na mesa do jantar familiar a que fui convidada – e começa um abismo de desigualdades entre a realidade delas e a minha, diferenças que eu nem comecei a entender nesse mês de mergulho na China. É que, mesmo na China contemporânea, em muitos círculos ainda é inadequado que mulheres consumam bebidas alcoólicas. Meu copo, porém, é enchido até eu dizer chega com um destilado branco que queima forte ao descer pela garganta. Ao mesmo tempo, meu celular pouco moderno apita com mensagens do Gmail e do Facebook em modo VPN.