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V iviane* saliva ao se lembrar do aroma de vinho tinto, cogumelos e cheiro verde. Os temperos acompanharam o prato principal daquela noite, há sete anos: parte da placenta que saiu após o nascimento da primeira filha. “Estava uma delícia! Eu já era vegetariana, mas adorei aquela carne, saborosa e suculenta”, descreve Viviane.
Não foi pelo sabor, porém, que ela decidiu ingerir a placenta, não só a da primogênita como também a do segundo filho, cinco anos depois. Viviane faz parte de um grupo cada vez maior de mulheres ocidentais que credita ao consumo do órgão a melhora de seu bem-estar durante o pós-parto, um momento naturalmente delicado, em que o corpo feminino experimenta uma queda hormonal muito brusca. A placenta auxiliaria na retomada da energia, na redução do chamado baby blues (tristeza que acomete cerca de 80% das mulheres nos dias imediatamente seguintes ao nascimento do bebê), além de ajudar na produção de leite.
“As pessoas matam frango e comem, ingerem língua de boi, fígado de ganso, e acham que placenta é nojento?”, questiona Viviane. “É uma carne cheia de propriedades, que não precisa da morte de ninguém para existir.” Viviane, que atua como doula e parteira, se utiliza dos conhecimentos da medicina tradicional chinesa, que entende a placenta como “a cura que vem de dentro”. Há relatos do uso medicinal do órgão há, pelo menos, 500 anos.
Se a ideia de ingerir a placenta como um bife parece indigesta, há outras maneiras de fazê-lo. Em um livro de 2007, Cornelia Enning, famosa parteira alemã estudiosa do assunto, traz receitas de sopas, cremes, manteigas, pomadas e bebidas feitas com o órgão. Ela descreve a utilização da placenta por povos de todo o mundo, como forma de acelerar o restabelecimento da mulher e tratar dos sintomas da menopausa e de uma série de outras doenças.
“Em nosso tempo presente e com nosso estilo de vida atual, uma mulher também vai recuperar sua força muito rapidamente se comer sua placenta”, escreve Cornelia em Placenta: the gift of life (sem tradução para o português). “Muitas condições durante o parto, o pós-parto e a amamentação não surgiriam se nós voltássemos ao velho costume de utilizar remédios de placenta”, defende.
Energia em cápsulas
Nos últimos anos, o método que tem se tornado mais popular para o consumo da placenta é em cápsulas. Celebridades como a atriz January Jones, da série Mad Men, e a socialite Kourtney Kardashian revelaram ter lançado mão da técnica para ingerir suas placentas. “Vou ficar triste quando minhas pílulas acabarem. É uma mudança de vida!”, escreveu Kourtney em sua conta no Instagram no início deste ano.
As cápsulas são feitas em um processo que envolve, basicamente, cozinhar a vapor, desidratar e triturar o órgão. Atualmente, a principal autoridade no assunto no Ocidente é a Placenta Benefits (PBi), uma organização norte-americana sediada em Las Vegas. A PBi foi pioneira na sistematização e na difusão da técnica de encapsulamento. A entidade é responsável por treinar pessoas de todo o mundo, que garantem seu nome em um banco de especialistas – mediante o pagamento do curso e de uma taxa anual.
No Brasil, as enfermeiras obstetras Iara Silveira e Ana Cyntia Baraldi foram as primeiras a oferecer o serviço de encapsulamento de placenta. A dupla mantém, há três anos, um consultório focado no atendimento ao parto domiciliar planejado, e há pouco mais de dois anos e meio, passou a fazer as pílulas. Iara havia estudado, em seu mestrado, os rituais de cuidado familiares durante o pós-parto e procurou o curso da PBi quando atendeu a um casal de ucranianos, que perguntou se elas faziam as cápsulas.
“Na nossa cultura, não existe um olhar atento para a placenta. No hospital, ela é tratada como lixo infectocontagioso. Só que ela é um órgão superpoderoso e uma fonte de informação riquíssima sobre a vida intrauterina do bebê”, diz Iara. Ela explica que, para ser encapsulada, a placenta deve estar em boas condições – assim como qualquer carne para ser ingerida. O órgão pode ser guardado no congelador por até seis meses, mas, quanto antes for iniciado o processo de encapsulamento, melhor. O ideal é que comece até 48 horas após o parto. Placentas de mães com doenças infecciosas não podem ser utilizadas.
E funciona?
Em grupos de maternidade e nascimento humanizado, a avaliação de quem experimentou é quase unânime. As mulheres que tiveram mais de um filho – o segundo, com o consumo da placenta – relataram um aumento significativo da disposição em relação ao primeiro pós-parto.
“Eu me senti realmente mais forte. Mas a maior diferença foi na produção de leite. Quando o Francisco estava com quase dois meses, tive que cortar as pílulas, porque meu peito estava empedrando”, conta a jornalista e blogueira Tatiana Sabadini, 34 anos. Ela já era mãe de duas meninas gêmeas e creditou às cápsulas a energia que teve para dar conta de um recém-nascido e de duas crianças pequenas.
A doula Flávia Ilíada, 35 anos, também tomou as cápsulas após o nascimento de Heitor, há dois anos. “Durante o pós-parto da minha primeira filha, tive sintomas muito fortes de baby blues, aquela tristeza profunda. Isso não aconteceu na segunda vez, sentia uma força muito maior”, relata. “Até para a retomada da vida sexual creio que as pílulas ajudaram, tive disposição para o sexo muito antes.”
O marido de Flávia, o consultor Julio Mariano de Carvalho, 37 anos, experimentou as pílulas. Julio participou ativamente do nascimento dos dois filhos, em casa, e considerou que o consumo da placenta era algo natural. “Foi muito bom, me senti menino de novo”, brinca. “É uma coisa que não costuma passar pela cabeça dos homens, mas foi transformador. Ajudou a me conectar muito mais intensamente com minha mulher e o bebê”, conta.
De maneira geral, a recomendação é de que a placenta seja consumida apenas pela mulher que a gerou, mas nada impede que outras pessoas da família experimentem a “iguaria”. Entre grupos de parteiras tradicionais, inclusive, há o costume de ingerir um pedaço in natura do órgão logo após o parto, como um sashimi. Todas as pessoas que participam do nascimento – doulas, acompanhantes – podem participar do ritual.
Iara conta que, entre as mais de 200 mulheres que já consumiram as cápsulas preparadas por ela e por Ana Cyntia, apenas uma disse não ter sentido efeito algum. “Não aconteceu nada, não tive nenhuma sensação, nem boa nem ruim”, diz a publicitária Fernanda de Azevedo, 34 anos. Ela ressalva, entretanto, que começou a ingerir as pílulas quando a filha estava com quase quatro meses. “Talvez tenha mais efeito para quem o faz logo após o nascimento, o período mais delicado”, especula.
Para a ciência, entretanto, todas as avaliações são puramente subjetivas. Um dos mais recentes estudos sobre o assunto, divulgado em junho deste ano, aponta que não há provas da relação entre o consumo da placenta – em qualquer formato – e a rápida recuperação da mulher. A pesquisa, realizada por especialistas da Escola de Medicina Feinberg, de Chicago, nos EUA, analisou os resultados de 10 estudos sobre o tema.
“A placentofagia pode trazer benefícios para animais, pois ajuda a controlar as dores da mãe, mas esses dados não suportam as reivindicações de que a ingestão por mulheres as ajude a estabilizar o humor, a aumentar a produção de leite ou a recuperar a energia”, afirma Cynthia Coyle, coautora da pesquisa. “Mais estudos sobre potenciais benefícios são necessários para chegarmos a uma conclusão.”
E não é perigoso?
Cynthia e outros cientistas alertam, inclusive, que pode haver riscos na prática. Isso porque a placenta filtra toxinas – como o mercúrio e o selênio – para que não cheguem ao bebê. Em tese, tudo volta para o organismo da mãe, que excreta as substâncias. “Mas essas toxinas já foram encontradas no tecido placentário após o nascimento”, diz a pesquisadora. “Nós ainda não sabemos o quanto disso permanece na placenta uma vez que ela passe por um processo de preparo como o encapsulamento”, completa Cynthia.
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não tem um posicionamento quanto à segurança ou à eficácia do consumo do órgão. A agência não pode proibir ninguém de comer o que quer que seja e, provavelmente, só vai interferir caso haja aplicações medicinais comprovadas da ingestão da placenta.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) entende que o órgão é uma propriedade da mãe e que seu destino deve respeitar as tradições culturais de cada família. Nos hospitais, entretanto, sempre há estranhamento quando a mulher manifesta a vontade de leva-lo para casa. “Quando o médico falou ‘a paciente quer levar a placenta’, fez-se um silêncio constrangedor”, lembra, aos risos, a jornalista Tatiana Sabadini – que passou por uma cesárea intraparto no nascimento do filho caçula.
A produtora cultural Micaela Neiva Moreira, 37 anos, acredita que os rituais com a placenta – sejam quais forem – são importantes para a mulher. Após a primeira gestação, ela enterrou o órgão. Na segunda, da qual vieram gêmeos, ela optou pelas pílulas, que lhe deram “muito vigor para enfrentar um momento cheio de inseguranças”. “O parto é um evento na nossa sexualidade e permite um encontro com nós mesmas muito forte. A placenta faz parte disso tudo”, diz.
A enfermeira obstétrica Iara Silveira concorda: “Se eu, como profissional, disser que a pessoa não pode comer a placenta ou não pode colocar uma moeda no umbigo da criança, eu vou estar passando por cima da cultura daquela pessoa. Então, eu procuro orientar sobre formas de fazer isso: com esterilização e higiene”, esclarece. “Essas coisas têm um valor imensurável, traduzem um cuidado que não é científico ou tecnológico, mas não menos importante para as pessoas.”
O que é a placenta?
A placenta é o único órgão que nasce, cresce e morre, acompanhando o tempo da gestação. Ela e o cordão umbilical se formam nas primeiras semanas da gravidez e existem para viabilizar o desenvolvimento do feto. Por ela, passam os nutrientes e hormônios que farão o bebê crescer. A placenta também funciona como um filtro, levando ao embrião somente as melhores substâncias presentes no corpo da mãe.
Geralmente, a placenta está localizada na parte superior do útero. Ela também recebe de volta tudo que o bebê não aproveitou, passando esses resíduos para o organismo materno, que fará a eliminação. Para se ter uma ideia da complexidade desse sistema, a placenta permite que os sangues da mãe e do feto não se misturem.
*Nome fictício a pedido da entrevistada.
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