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Conheça Sheyla Smanioto, autora de “Dupla Penetração”

"Quando eu fui arrumar a garagem as coisas eu reli tudo mais uma vez e mais outra e sabe que foi me dando um calor?"

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Quem é a escritora:

Sheyla Smanioto é a estrela do dia. A escritora de 25 anos, paulista de família meio baiana meio italiana, capturou a atenção da curadoria d’AzMina com um conto erótico cheio de ironia. Aquariana, crescida em Diadema, ela passou a adolescência em Caieiras, foi para a Unicamp estudar literatura e, hoje em dia, mora em São Paulo. É autora do livro de poemas “Dentro e folha” (Dulcineia Catadora, 2012) e do romance “Desesterro” (a ser publicado em 2015), vencedor do Prêmio Sesc de Literatura. Conheça mais sobre ela neste site e no conto abaixo.

 

“Dupla Penetração”

De onde você tira essas coisas que você escreve?

Vamos dizer assim, elas são verdade ou você só inventa?

Mas é tudo inventado, ou tem alguma coisa verdade?

Não, é que eu costumava ler os seus cadernos pensando que eram sobre você, sabe? Os seus diários. Eu pensava que eram histórias suas, que você tinha mesmo vivido todas aquelas… eu não tinha essa cabeça eu tenho agora, eu não sabia que você… eu achei que você estava me provocando, claro, eu lia aqueles cadernos todos pensando o que foi que eu fiz de errado, meu Deus? O que foi que eu fiz para merecer você estragar minha vida sua vida desse jeito? Essa menina ou é lésbica ou é louca, eu pensava, eu lia os seus diários mas tem certeza de que é tudo inventado?

Não, é que esses dias eu arrumei seus cadernos estavam todos na garagem, eu peguei seus diários para organizar, só pra isso, eu acabei lendo uns trechos, uma página ou outra, algumas partes, e depois mais, eu acabei lendo tudo. Vou ser bem sincera aqui com você, você já está grandinha vai me entender, eu li tudo de novo, eu gostei muito eu sempre gostei eu lia você não estava em casa então eu lia, no fundo eu sempre gostei, eu só estava preocupada com você, eu tinha que ler, eu não conseguia parar de ler, eu queria mas eu não queria parar, você me entende?

Eu adorei a história, como é mesmo o nome da menina que escreve o diário?

Eu adorei. A personagem é muito verdadeira, para ser sincera eu até me identifico um pouco com ela, sabe? Eu também odiava quando sua vó se metia na minha vida, já falei para você quando ela morreu eu chorei eu dei graças a Deus, eu fiquei com vergonha mas depois eu pensei não, essa mulher é louca, foi tarde. Eu não tinha essa cabeça eu tenho agora, eu não entendia você estava inventando um diário essa vida toda, eu não entendia era tudo mentira, eu achei que você tinha mesmo feito todas aquelas coisas, eu achei que era tudo verdade, eu não sabia vocês os escritores vivem inventando histórias, não é isso?

Eu não sabia eu ficava nervosa eu pensava o que foi que eu fiz para ela fazer isso com a vida dela, meu Deus, o que foi que eu fiz para ela querer fazer sexo, meu Deus, o que foi que eu fiz pra essa menina? Eu comecei a minha vida sexual cedo, mas eu tive meus motivos, você não, minha mãe era uma louca foi tarde, mas eu, eu fiz de tudo para você poder estudar, não fiz? Eu não fiz nada errado, eu já falei eu me arrependi, não tinha ninguém pra me falar assim o que eu falo pra você, eu já não falei? Então por que essa menina, ela não pode ser minha filha, eu pensava, por que ela faz isso só pra me provocar? Eu nunca nem pensei que você podia estar inventando tudo aquilo, eu nunca nem pensei mas de onde você tira essas histórias?

Quando eu fui arrumar a garagem as coisas eu reli tudo mais uma vez e mais outra e sabe que foi me dando um calor? Eu fui me envolvendo com a história, eu fui me envolvendo me envolvendo me envolvendo e foi me dando um calor um calor mas um calor. Te falei que adoro contos eróticos? A gente vai ficando velha vai redescobrindo essas coisas, eu reli todos os seus cadernos, os diários, peguei alguns livros na biblioteca, li todos, nossa, li tudinho de cabo a rabo eu não conseguia parar de ler. E a internet, a internet é ótima, filha, acredita na minha idade eu descobri que adoro anal e bondage, eu queria ser uma daquelas novinhas, sabe, a xota apertadinha, mas adoro cus largos, e cabos, e rabos, adoro gordos engolindo esperma, e homens fantasiados de homens do saco, mas seus cadernos esses eu não largo, acredita que eu achava que eram diários?

Pensando agora não é até engraçado? Todas aquelas vezes que eu te batia você não sabia? Todas aquelas vezes eu não tinha ideia era tudo mentira, todas aquelas vezes, lembra? Quase todo dia. Não é até engraçado? Era só você ter me contado, filha, mas tudo bem, agora eu entendi tudinho você essas ideias que você tem essa sua mania de inventar histórias eu entendi tudinho quando eu li de novo os seus diários.

Nos diários – eu achei que eram diários – neles parece que eu estou na história, sabe? Eu reli tudinho várias vezes de uma só vez. Os meninos estavam no quarto fazendo o que meninos fazem, você sabe, eu aproveitei e reli tudo na garagem, eu sentei no meio daqueles cadernos todos eu li tudinho eu fiquei louca de vontade. Eu achei que eram seus diários, acredita? Esse tempo todo eu não sabia você tinha inventado tudo. Eu fiquei louca me deu um calor mas um calor, sabe? Eu reli tudo na garagem, sentada nos diários, eu achei que eram diários, sentindo a mola dos cadernos na bunda, eu reli tudo, filha, eu me masturbei a tarde inteira, você está grandinha você entende eu fiquei louca, cabo de vassoura, o espanador, eu reli tudo, grampeador, a coleção de mini-craques aqueles cabeçudos eu fiquei louca, meti tesoura, meti rolo de tinta e até a sua câmera fotográfica eu não sabia era tudo inventado, você entende não entende?

Eu reli tudo, a menina vai ficando louca com o tempo, eu não entendi a mãe dela ajudava o pai? Eu não entendi, ela queria ela não queria? A mãe dá raiva, lembra sua vó só pensa nela mesma, foi nela na sua vó que você se inspirou?

Eu queria que a menina, qual é mesmo o nome dela?

Eu reli tudo eu não achei o nome dela. Eu queria que a menina gritasse com a mãe esganasse a mãe forçasse a mãe a falar com o pai, sabe, mas no fundo eu também queria que a história continuasse, eu li muitas vezes a cena da dupla penetração, minha preferida, chegou uma hora eu pensei a mãe percebeu, só pode ser isso, ela deve ter percebido eu pensei a história vai acabar, a mãe vai fazer alguma coisa, ela tem que fazer, mas não. Eu reli tudo minhas cenas preferidas anal bondage, e quando ele mija que nem cachorro nas pernas dela? A mãe estava fingindo que não ouvia tudo da cozinha, não estava? Eu reli tudo sozinha na garagem eu fiquei louca eu não consigo parar de pensar eu sonho todos os dias já pensou meu pai fazendo isso comigo?

Já pensou?

E aquela história dela sentar no chuchu? Quando eu li pela primeira vez você estava na escola, eu ficava pensando meu Deus por que eu não tenho uma filha normal banana pepino berinjela. E quando ela fala ficou se masturbando a noite inteira para não dormir sonhar com aquele dia? Isso eu nunca entendi. Desculpa esfarrapada lágrima de crocodilo quem não gosta sonhar sexo à vontade, quem não fica imaginando no supermercado, e de repente na reunião de pais, a diretora usando um chicote, as pessoas em fila tirando a roupa para passar no detector de metais do banco? Todo mundo quer seu pai nunca quis me lavar com bucha na pia detergente, a bucha áspera, eu com roupa rasgada na rua ele me pega para criar e resolve me chamar de Lessie, eu não sei falar nada e ele só me ensina a falar pau cu buceta.

Nas primeiras leituras também não gostava desse título, “Dupla penetração”, já dá o ouro assim de cara, te falei é minha cena preferida? Você sempre foi assim não sabe valorizar o que tem nunca soube desde pequena. A personagem que vai contando a história é uma coitada, é disso que eu gosto nela, ela se humilha, aceita, mal consegue olhar nos olhos da mãe, eu fico louca. Queria ser coitada assim que nem ela, sabe? Enquanto estou sendo enrabada. Ela vai ficando louca, eu demorei a perceber isso, ela vai ficando louca eu percebi eu finalmente entendi o título, a dupla penetração. Eu gostei ainda mais dos cadernos esse tempo todo eu achei que eram diários, eu gostei ainda mais quando eu percebi que o sexo como é que se diz uma metáfora quando eu percebi, como é que você diz? Quanto mais fundo fodem a gente mais a gente se fode, falei certo não falei?

É isso mesmo a dupla penetração, não é, filha?

Eu não ia te falar nada disso os cadernos eu achei que eram diários, eu não ia te falar eu lia todos os seus cadernos quando você estava na escola. Mas esses dias eu estava acompanhando, você tem um blog, é isso? Eu dei uma olhada, eu entendi você sempre teve esse lado. Você sempre foi mentirosa desde pequena contava na escola essa história seu pai morrendo e eu não entendia. Eu fui na garagem ler de novo seus cadernos, eu sempre vou lá quando não tem ninguém em casa eu não me controlo. Você tem um blog eu não tinha essa cabeça eu tenho agora, achei era tudo verdade, você tinha uma vida secreta uma vida sexual, eu tive motivos você não. E aí eu queria te perguntar uma coisa, eu fiquei pensando era tudo inventado mas você não terminou, então eu queria te perguntar uma coisa, filha. Essa história dos cadernos dos diários, ela tem final?

Mas você não escreveu o final?

É que eu queria muito saber o que acontece com a menina, ela é mesmo lésbica?

E o pai consegue ou não consegue consertar ela?

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