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Violência doméstica e filhos: como proteger as crianças na divisão da guarda?

Mais da metade das mulheres que sofrem violência doméstica são mães. Entenda como garantir a segurança das crianças e as regras sobre guarda nestes casos

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Entre as mulheres que sofreram violência doméstica no Brasil, 60% delas têm filhos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021. E considerando que a casa é o espaço onde acontece a maior parte dos casos – 65% dos feminicídios foram nas residências -, a maioria dessas crianças acabou exposta ou conviveu com as agressões às suas mães, e foram vítimas diretas e indiretas da violência contra a mulher.

Diante dessa realidade, a decisão de se separar do agressor representa para as vítimas não só um movimento pela própria segurança, mas também pela proteção dos filhos. É urgente que ela saia do ciclo de violência o quanto antes. Mas muitas perguntas e medos surgem na hora em que a mulher decide sair de casa, ou quando vai se divorciar, principalmente em relação à guarda das crianças. 

Juliana* passou por isso e viveu na pele a dificuldade de lidar com a violência tendo uma criança em casa. Ela casou-se aos 16 anos e seu marido, sete anos mais velho, começou a se mostrar agressivo na primeira gravidez. No chá de bebê, ele usou uma moto para ameaçar a família de Juliana, e ela precisou ser levada com sangramento ao hospital. A última agressão ocorreu em 2020. Ele usou uma cadeira para bater nela, na presença da filha, que tinha 8 anos à época. A mãe fugiu com a menina após chamar a polícia.

Ela precisou de assistência jurídica para negociar na Justiça a guarda da filha. Por meio de audiência de conciliação, estabeleceram regras para que a convivência fosse menos conflituosa possível. Hoje, a menina vive com a mãe, mas o contato com o pai se mantém em visitas e passeios. As violências cessaram e atualmente ambos participam da criação da filha. 

Histórias como a dela mostram a complexidade do assunto e que as questões são muitas. O que acontece se a mulher foge com a criança? Quais as regras para a guarda? Como funciona a guarda compartilhada nos casos de violência? Quando é melhor pedir a guarda unilateral? Como se proteger das possíveis ameaças do pai usando as crianças? AzMina procurou advogadas especialistas no assunto para entender os caminhos possíveis.

Mudança de cidade x abandono do lar

Antes de pensarem em procurar a Justiça, algumas mulheres, principalmente vítimas de violência, precisam sair de casa emergencialmente, levar os filhos embora e não informar o novo endereço ao pai. Às vezes também necessitam mudar de cidade para se proteger, mas temem que essa saída deponha contra elas e fique caracterizada como abandono do lar e em um processo judicial ou disputa posterior de guarda.

“A mulher, em primeiro lugar, deve buscar a sua segurança e a de seus filhos. E se para isso for necessário deixar o lar, sozinha ou com os filhos, e mesmo uma mudança de cidade, ela não perde nenhum direito relativo à guarda”, esclarece a advogada Margareth Senna, membra da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco, integrante da ONG Tamo Juntas e da Coletiva Mana a Mana, ambas de assessoria gratuita para vítimas de violência.  

Um processo judicial de definição de guarda pode levar de 30 a 180 dias. Até lá os filhos ficam com o genitor que estava com eles no momento da separação. “Por isso eu sempre sugiro a mulher sair de casa com os filhos”, alerta Margareth. A advogada complementa que depois é possível pedir para o juiz afastar o agressor, e a mãe volta para casa com os filhos.

Mas ao sair de casa, assim que estiver em um local de segurança, a mulher deve entrar com essa ação judicial de guarda. A mudança de cidade pode ter implicações num processo futuro de regulamentação de guarda, tendo em vista que é direito do pai da criança saber onde e em que situações a mesma se encontra. 

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Comunique à Justiça

Procurar uma advogada ou a Defensoria Pública pode ajudar a dar entrada no processo nessas situações, em que se deve justificar a mudança de endereço com provas testemunhais, boletim de ocorrência e/ou medida protetiva, uma vez que essa ação ocorreu para garantir a segurança da mulher e filhos. 

Se já tiver dado início a um processo de guarda antes da saída da cidade, o novo endereço deve ser informado para o juiz responsável pelo caso. Provavelmente, o processo de regulamentação de guarda sofrerá alterações de comarca judicial, pois tem que ocorrer onde a criança ou adolescente reside no momento. 

A comunicação à Justiça também é importante, explica a advogada, para evitar que o agressor alegue que a saída de casa da mulher com os filhos seja um caso de alienação parental – caracterizada pela mudança constante de endereço sem justificativa, por esconder essa mudança do Judiciário, além de não informar como a criança está.

Um dos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é a precaução, para além de resguardar o direito ao convívio com os pais. Então, caso exista alguma possibilidade de risco, violência ou violação dos direitos da criança pelo pai, isso deve ser informado e registrado na Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente, além de ser levado ao processo judicial de guarda. 

Preparos para separação

Por envolver muitas questões, cada divórcio precisa de uma avaliação específica para definir temas como separação de bens, pensão e guarda. Aqui nessa reportagem explicamos cada item em que é preciso pensar ao começar o processo de separação. Mas é importante ter sempre em mente a preocupação com a garantia dos direitos e da segurança das crianças. Letícia Ferreira, advogada e co-diretora da ONG Tamo Juntas, cita algumas medidas que podem ser tomadas durante a separação por violência doméstica: 

  • Juntar os documentos da mãe, da criança e dos imóveis do casal; 
  • Registrar conversas, áudios e imagens que comprovem agressões ou ameaças; além de buscar testemunhas das agressões;
  • Procurar por assessoria jurídica, rede de apoio e outras pessoas para interceder; 

“É importante a gente tomar atitudes preventivas, não esperar. Registros são importantes para processos judiciais e futuras ocorrências”, explica. Letícia acrescenta que violências e ameaças relacionadas à guarda, ao convívio dos filhos, também são violência contra as mães.

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Guarda dos filhos: o que diz a legislação

A Lei 11.698 aponta que a preferência no divórcio com filhos é pela chamada guarda compartilhada. Nela, os pais participam em conjunto das principais decisões educacionais e materiais sobre a vida da criança ou adolescente, que passa metade do tempo morando com cada um dos pais. Mas para funcionar bem, esse tipo de guarda precisa de contatos frequentes entre os genitores, e quando existe violência doméstica isso representa riscos para a mãe, e mesmo para a criança. 

Por isso, em casos de violência a lei determina que o modelo adotado seja a guarda unilateral, para que a segurança de mãe e filhos esteja garantida. Apenas um dos genitores têm o poder de decisão e os filhos vivem com ele, sendo que os formatos de visitação do outro são decididos junto com um juiz. Como o contato entre os pais pode ser bem menor, isso diminui os riscos para a mulher vítima de violência. 

Como solicitar a guarda unilateral

Para iniciar o pedido da guarda unilateral, a mulher vítima de violência doméstica vai precisar solicitar a regulamentação da guarda  através de um processo judicial, com suporte de um advogado. Documentos como medida protetiva e boletins de ocorrência contra o agressor não são obrigatórios para o processo, mas podem reforçar a necessidade da regulamentação da guarda unilateral para o judiciário. 

Decisões judiciais pela guarda unilateral em caso de violência doméstica ou quando há um conflito grande entre os pais já não são incomuns. Ela é possível em casos de maus tratos, abandono e falta de condições mínimas para garantir os cuidados da criança ou adolescente. Quem não tem recursos financeiros para pagar advogado, pode solicitar apoio para a defensoria pública. 

Caso já haja uma definição de guarda, seja por acordo ou por um processo que decidiu a guarda anteriormente, é possível entrar com uma ação de modificação da mesma. A guarda é regulamentada por questões atuais efatos novos podem influenciar na decisão do juiz.

Situação é avaliada por juiz

“Não há um padrão para casos de violência doméstica, e a ocorrência de agressão física, moral ou mental não dá, necessariamente, a guarda unilateral à mãe”, destacou Letícia Ferreira. Também não existe nenhum documento específico que deva ser assinado para conseguir esse tipo de guarda. Apesar disso, a advogada diz que a situação dos filhos e dos pais vai ser avaliada no processo judicial, para que se compreenda qual o melhor regime para atender aos interesses da criança, que são prioritários.

Se ao final a decisão judicial for pela guarda compartilhada, uma boa opção é encontrar uma terceira pessoa que possa levar e trazer a criança, buscar comida e outros itens que forem necessários, sem necessidade de vítima e agressor se encontrarem. A advogada reforça que a mulher vítima de violência deve buscar orientação jurídica para regulamentar a guarda, não deixar a situação seguir informalmente. Quando a negociação é difícil, o ideal é que outras pessoas façam a intermediação, e não os próprios pais.

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Visitas e medida de afastamento

O direito de um dos genitores de se encontrar com a criança não pode atingir a segurança do outro. Na guarda unilateral o genitor também tem o direito de visitar os filhos, por isso, muitas vezes essa mãe precisa ter uma medida protetiva de afastamento do agressor, solicitada na delegacia da mulher, para não ter nenhum contato com ele. 

“Se a mãe é a guardiã do filho, que é o que acontece na maior parte das vezes, deve ser garantido que o convívio com o pai não exponha essa mulher a mais violência”, defendeu a advogada Letícia.

A medida protetiva, que é temporária e urgente, pode muitas vezes incluir a criança se o juiz da Vara de Violência Doméstica compreender dessa forma. Dessa forma, a medida protetiva pode regulamentar temporariamente a guarda, proibindo as visitações, por exemplo, principalmente se houver riscos na convivência entre a criança e o pai.

Mas se a criança não está exposta a nenhuma situação de violação por parte do convívio com esse pai, a medida protetiva não se sobrepõe ao direito da convivência familiar. Então, estratégias devem ser pensadas, juridicamente, para possibilitar a relação entre o pai e os filhos sem colocar em risco a segurança da mulher vítima de violência.

O debate sobre alienação parental

Quando as mulheres se separam e entram com pedidos de medidas protetivas, os agressores podem tentar usar a Lei de Alienação Parental com intenção de manter o contato com a vítima. Eles argumentam que as mães estão cometendo o crime de afastamento e destruição dos vínculos parentais da criança. Alegam que a mãe está dificultando a relação do pai com os filhos. 

Mudanças de endereço, calúnias ou proibição de contatos são algumas acusações feitas nesses casos. Se forem aceitas, podem levar ao pagamento de multas ou perda da guarda para quem é acusado.

Reportagem anterior d’AzMina tratou sobre os problemas gerados pela lei da alienação, que é baseada na controversa teoria de Richard Gardner. Ela fala em uma síndrome causada nas crianças pela quebra de vínculo entre pais e filhos, incentivada por um dos genitores. “Mas essa é uma falsa premissa científica”, afirma a advogada Letícia Ferreira. Afinal, é difícil que tenha sido a mãe que fez com que a criança tivesse medo do genitor, ou a convenceu de que o pai é mau em uma situação de violência dentro de casa

O problema é que a lei da alienação vem sendo utilizada como revide do pedido de medida protetiva, segundo Letícia, e as denúncias são invalidadas por causa da suposta alienação.

Alterações na lei

Em maio deste ano, 2022, no entanto, foram sancionadas alterações na Lei de Alienação Parental. Não é mais possível suspender a guarda da mãe, por exemplo, como forma de punição durante o processo judicial. Já as medidas como advertência ou multa, além da ampliação da convivência com o genitor foram mantidas no texto. 

Na aprovação das novas regras, porém, foi retirado o artigo que proibia o juiz de conceder alteração de guarda ou guarda compartilhada ao pai ou à mãe investigados ou processados pela prática de crime contra a criança ou o adolescente ou de violência doméstica.

Fato é que muitos juízes ainda entendem que a violência é um problema entre o casal, sem relação com a paternidade, e que uma eventual guarda unilateral seria prejudicial à criança. 

*Nome fictício a pedido da entrevistada

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