Quantas mulheres você conhece que sabem programar? E você consegue se lembrar de alguma que saiba resolver seus próprios “pepinos” digitais, como formatar o computador? Se você não trabalha no mercado de tecnologia, provavelmente sua resposta deverá variar entre poucas ou nenhuma mulher. Com tantas ávidas usuárias de tecnologia, que passam horas de suas vidas imersas em celulares e computadores, por que será que, ainda hoje, não participamos de sua produção? Conversamos com algumas mulheres incríveis que estão nesse universo para responder a essa e a outras questões.
Com que tipo de brinquedos você interagia quando era criança? Se você for mulher, provavelmente sua resposta incluirá itens como bonecas e panelinhas. Somos estimuladas, desde muito pequenas, a dedicar tempo e esforço aos afazeres domésticos. Experimente fazer um exercício simples e visitar uma loja de brinquedos. A primeira constatação é a da separação de itens por gênero. Na seção dedicada aos brinquedos para meninos, há super-heróis e videogames. Já na voltada às meninas, muito cor-de-rosa, várias bonecas, princesas e diversos utensílios de cozinha, como panelas e eletrodomésticos. Desde pequenas, somos condicionadas aos cuidados da casa, enquanto os homens recebem estímulos para salvar o mundo e interagir com tecnologia.
Esse exercício em forma de brincadeira se reflete nas estatísticas oficiais do Brasil. Em dezembro passado, o IBGE divulgou dados sobre trabalho doméstico e cuidados com pessoas, que revelaram que as mulheres tendem a dedicar mais horas aos afazeres da casa do que os homens. Em 2016, 89,8% delas realizaram atividades domésticas, enquanto a proporção masculina foi de 71,9%. O IBGE também investigou 12 tipos de tarefas domésticas divididas em dois grupos: cuidados com os familiares e cuidados com o lar. Apenas nas atividades que envolvem manutenção, como troca de lâmpadas e reparo de chuveiros, os homens tiveram maior participação. Nas outras 11, que incluíram tarefas como cuidar da limpeza, educação dos filhos, cuidados pessoais (como dar banho ou trocar fraldas) e o pagamento de contas, a representação delas foi majoritária. Se olharmos o recorte sobre a jornada dupla feminina, com o tempo dedicado à vida profissional e aos afazeres da casa, o levantamento do IBGE mostra que a jornada semanal das mulheres dura, em média, 2,9 horas a mais do que a dos homens.
E a divisão da brincadeira na infância se traduz em desigualdade na vida adulta.
Durante sua pesquisa de doutorado sobre trabalho e gênero no setor de TI, a socióloga e professora da Unicamp Bárbara Castro entrevistou trabalhadores da área tecnológica. Uma das questões abordadas dizia respeito ao surgimento do interesse nesse tipo de atividade. Segundo Bárbara, enquanto os homens respondiam que o processo havia sido natural, já que sempre gostaram de jogar videogame ou de brincar com computadores, as mulheres quase sempre diziam que tinham desenvolvido o interesse com o intermédio de uma figura masculina. Um pai, irmão ou namorado trabalhavam no setor e, com base nesses exemplos, essas mulheres foram ganhando familiaridade com a carreira na tecnologia e se interessando pelo mercado. “Elas nunca justificam esse interesse como uma construção natural. E de fato não é. Tem sempre um ponto de virada na trajetória delas, quase sempre mediada por uma figura masculina que mostra esse despertar de interesse”, afirma a socióloga.
O ponto de virada: educação
Se nas brincadeiras de criança as mulheres são mais estimuladas a se interessar por cuidados pessoais e da casa, a universidade deveria ser o espaço democrático em que, por meio da educação, elas poderiam se inserir de vez no universo da tecnologia. No entanto, as dificuldades da profissão começam justamente na sala de aula. Segundo o Censo IBGE 2010, as mulheres representam apenas 22% das turmas de Ciência da Computação. Além da falta de representatividade, há obstáculos para se inserir em um espaço majoritariamente masculino. Outro desafio apontado por Bárbara Castro em sua pesquisa é o fato de a competência das mulheres nesse setor ser colocada em xeque constantemente, além de o mercado ser permeado por relatos de assédio sexual. Algumas mulheres chegam a tentar “apagar” seu gênero em busca de aceitação, usando roupas mais “neutras” e evitando maquiagem, por exemplo. De acordo com Bárbara, a discriminação no mercado está cercada de sutilezas: “as mulheres são mais rapidamente retiradas de vagas técnicas e realocadas em setores de atendimento ou gestão. É um ciclo de divisão de trabalho perverso. Eu escutei muitas mulheres que queriam continuar como programadoras, mas foram designadas para funções de gestão porque espera-se que elas tenham habilidades de resolução de conflitos quase que naturalmente, sem que precisem de um preparo para isso. Já os homens, quando precisam gerenciar pessoas, fazem MBA”. E essa diferença vai se refletir diretamente nos salários, com as mulheres ganhando em média 70% dos salários dos homens.
Diante de tantos desafios, o jogo começa a virar com iniciativas femininas de qualidade surgindo Brasil afora. A jovem Buh D`Angelo é um exemplo de que empreender pode ser uma saída. Formada em técnico de manutenção, robótica, eletrônica e automação industrial, Buh coleciona relatos de preconceito por ser mulher, negra e de periferia. Ciente de sua qualificação e cansada de lidar com dificuldades no mercado tradicional, ela fundou o Infopreta. A empresa, além de fazer manutenção de computadores e consultoria de tecnologia, tem na responsabilidade social seu mote principal. Por meio do projeto Note Solidário, Buh recebe doações de computadores usados, os recicla e doa para pessoas sem condições de comprar um. Além disso, a empresa desenvolve o projeto “Ressocialização Preta”, que oferece uma oportunidade para ex-presidiárias. A prioridade é contratar mulheres negras e participantes de minorias. “O principal desafio na minha carreira foi o racismo, que é algo que te destrói por dentro e por fora. É pior que o preconceito por ser mulher”, relata Buh. Segundo ela, empreender já está no sangue da pessoa negra e abrir a empresa acabou virando algo político: “eu comecei porque precisava de dinheiro, mas hoje a empresa é para empoderar pessoas, mostrar que todos podem entrar na tecnologia”, conta ela. O Infopreta tem atualmente por volta de 10 funcionários, mas os planos são aumentar o número em breve. Para Buh, o maior desafio ainda é ganhar credibilidade: “as pessoas brancas precisam entender que também podemos fazer bem-feito. Todo dia alguém desqualifica meu trabalho. Sempre fui a única mulher negra nos meus cursos e buscava representatividade nos meus pais”.
Outro projeto que se destaca na área e também com foco em mulheres negras e indígenas é o PretaLab, uma iniciativa do Olabi, grupo que busca democratizar a produção de tecnologia. Se os dados sobre mulher e tecnologia mostram desigualdade, quando olhamos o recorte das mulheres negras, o cenário é ainda mais desolador. Segundo destaca o site do PretaLab, apenas 19 mulheres foram citadas na história da ciência no Brasil pelo CNPq, e nenhuma é negra. Além disso, em 120 anos, a Escola Politécnica da USP formou apenas 10 mulheres negras, conforme levantamento do Poligen de 2013. Diante dessa realidade, o PretaLab atua em três frentes. A primeira é o mapeamento colaborativo de mulheres negras na tecnologia. Segundo Silvana Bahia, idealizadora do projeto, faltam dados específicos sobre mulheres negras e indígenas. A ideia é entender melhor onde elas estão, em que áreas atuam e quais são suas demandas. Além disso, o PretaLab produz campanhas por meio de vídeos, além de workshops e palestras sobre tecnologia. Para Silvana Bahia, é preciso pensar metodologias que aproximem as pessoas, sem muita linguagem estritamente técnica: “para democratizar a tecnologia, precisamos mostrar que ela já faz parte da vida das pessoas. Tecnologia é poder!”.
O objetivo do projeto é captar mulheres das mais diversas áreas, sem se restringir ao trabalho mais formalmente ligado à engenharia e às ciências da computação. A própria criadora do programa trabalhava com comunicação e começou a programar um site em 2014. Silvana afirma que ainda causa um certo estranhamento quando as pessoas descobrem que a diretora do Olabi é uma mulher: “Há um movimento feminino muito forte surgindo. A gente ainda precisa ‘furar a bolha’ o tempo todo, mas já há muitos avanços das mulheres nesse setor. Assim como o mundo não voltará a ser analógico, nós (mulheres) também não vamos andar para trás”.
Furar bolhas de ambientes repletos de homens brancos é basicamente a rotina de muitas mulheres, especialmente as que tentam programar. Quando a jornalista Iana Chan aceitou o desafio de gerenciar um projeto de tecnologia na redação em que trabalhava, suas ideias costumavam ser colocadas em xeque e a fala da profissional era rotineiramente interrompida durante reuniões. Iana é umas das fundadoras da Programaria, uma iniciativa dirigida para empoderar mulheres por meio da tecnologia e da programação. O grupo surgiu a partir da inquietação de designers e jornalistas que queriam aprender a programar e sentiam falta de apoio e encorajamento. A Programaria tem o objetivo de estimular mulheres a explorar os campos da tecnologia, programação e empreendedorismo, debater a falta de mulheres nesse mercado e promover ferramentas para o aprendizado da programação.
Segundo Iana, nos cursos promovidos pela iniciativa, não faltam relatos de situações grotescas vivenciadas por mulheres em empresas do mundo tech: “há histórias de meninas que, na faculdade, ouviam o tempo todo que aquele não era lugar para elas, que deveriam fazer corte e costura, ou, então, que estavam lá para arrumar marido. Uma das cofundadoras da Programaria trabalhou em uma empresa que não tinha banheiro feminino perto da sua estação de trabalho, por exemplo”. Para a jornalista, o futuro está sendo escrito com linhas de código e o principal desafio é mudar o meio, nas faculdades e empresas, além de criar políticas públicas voltadas para a inclusão da mulher na tecnologia e na ciência. “Há empresas que ainda querem contratar mulheres por estratégia de marketing ou para ‘deixar o ambiente mais descontraído’. É preciso desenvolver um mercado que permita a mulher evoluir, sem que ele tenha sua carreira estagnada ou ganhe menos”, defende. Se os desafios são muitos, o sucesso também vem evoluindo de forma positiva. Além de conseguir expandir os projetos da Programaria, o grupo conquistou prêmios importantes, como o Mulheres Tech em Sampa.
Apesar de tantas iniciativas positivas para empoderar mulheres e prepará-las para o mercado de tecnologia, a socióloga Bárbara Castro alerta para o perigo de um retrocesso. Além de desafios que elas enfrentam em todos os setores, como a dificuldade de permanecer no trabalho após ter filhos, a flexibilização das leis trabalhistas poderá se traduzir em exclusão. Além disso, falta discussão sobre gênero nas escolas, onde há a necessidade de se debater os papéis sociais diferentes atribuídos a homens e mulheres. “Temos esses desafios, mas temos muita resistência também. Temos iniciativas individuais muito importantes, mas faltam políticas públicas. Sem a participação do Estado para generalizar essas ações, fica muito difícil caminhar, e vivemos um momento difícil no debate para transformar esses papéis de gênero”, afirma Bárbara.
É preciso encorajar meninas desde cedo, estimulá-las a brincar de fazer ciência, discutir sua importância no mundo e mostrar que não há limites para o que quer que façam. Para ocupar espaços nesse mercado e em tantos outros que ainda sofrem com o estigma de serem masculinos, talvez seja preciso começar do zero, olhar para as universidades sim, mas, principalmente, para como estamos criando meninas e meninos nas creches, nas escolas e nas brincadeiras de criança. Se não estivermos dispostos a dialogar sobre gênero, começando desde cedo, será difícil acreditar num mercado de trabalho aberto à igualdade entre homens e mulheres no futuro.