“Autoriza o árbitra”. A expressão, com um erro de gênero no artigo, foi ao ar no último domingo (9), durante a transmissão da estreia (com vitória por 3×0) da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de Futebol Feminino, contra a Jamaica. Galvão Bueno anunciava o início do segundo tempo da partida e, habituado a sempre narrar jogos masculinos e com árbitros, cometeu o equívoco, que foi corrigido rapidamente.
Não é de se assustar que essas gafes aconteçam. Por aqui mal são exibidos os jogos femininos e é raro que mulheres apitem os masculinos. Mas na Copa Feminina, a arbitragem é quase toda de mulheres (a exceção fica por conta de alguns homens escalados como árbitros de vídeo). Inclusive, esse ano, pela primeira vez, um trio completo representa o Brasil nos apitos: a juíza Edina Alves e as auxiliares Neuza Back e Tatiane Sacilotti.
A notícia de que o Brasil terá três mulheres na arbitragem pela primeira vez na história do Mundial reacende a luz no fim do túnel da ex-árbitra da Fifa, Janette Arcanjo, que acredita que a oportunidade pode mudar os rumos da arbitragem no país. “Vai ser uma vitrine. Se a Seleção Brasileira não avançar na competição, o trio de arbitragem tem chances de chegar à final do Mundial e isso poderia trazer muitas mudanças para as árbitras mulheres”, afirma.
Janette foi a única representante de arbitragem do Brasil na última Copa do Mundo de Futebol Feminino, no Canadá, em 2015. A assistente de arbitragem trabalhou no jogo entre Holanda e China e ficou como reserva em outras duas partidas.
Chegar a juíza não é fácil
Janette começou a estudar em 2000, quando as Ligas Esportivas de sua cidade, Ipatinga (Minas Gerais), começaram a oferecer cursos de arbitragem para mulheres. Em 2004 recebeu o convite para fazer o teste de árbitra da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e passou. Foi promovida a aspirante Fifa em 2011. Para entender o que isso representa, é preciso conhecer os desafios de ser juíza de futebol no Brasil.
Machismo, assédio, xingamentos em campo, preconceito, profissão desvalorizada e poucas oportunidades de trabalho são as principais dificuldades encaradas por Janette e outras profissionais que decidem ser árbitras. E a trajetória profissional não é simples: é preciso muito tempo, dinheiro e preparação para passar nos testes físicos exigidos pela CBF.
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Desde 2007 a CBF exige que as árbitras tenham o índice dos homens nos testes físicos para apitar a Série A do Brasileiro. Neste teste físico, as candidatas precisam realizar seis tiros de 40 metros abaixo de 6 segundos, correr 75 metros em 15 segundos e na sequência caminhar os 25 metros restantes da pista em 20 segundos – as duas últimas marcas precisam ser repetidas 40 vezes.
Atualmente, o quadro da CBF conta com 17 árbitras. Oito delas possuem índice para apitar a primeira divisão do futebol brasileiro; homens são 42. Para se ter uma ideia, em 2017, por exemplo, 35 homens foram escolhidos para trabalhar na série A. Nenhuma mulher foi escalada.
A primeira em 15 anos em um jogo masculino
Mesmo possuindo oito árbitras brasileiras com aprovação nos exames exigidos pela CBF, há 15 anos uma mulher não apitava a primeira divisão do futebol masculino. A exceção ocorreu em maio desse ano, quando Edina Alves apitou a partida CSA x Goiás. Na semana seguinte, ela foi a única árbitra central brasileira a ser escalada para apitar jogos na Copa do Mundo, na França.
O jogo do Brasileirão aconteceu apenas uma rodada antes da viagem dela e das duas auxiliares, que vinham treinando desde a última Copa do Mundo Feminina para conquistar uma vaga no Mundial na França.
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Edina e as auxiliares Neuza Back e Tatiane Sacilotti foram anunciadas em dezembro do ano passado, após uma série de treinamentos exigidos pela Fifa com o trio de arbitragem brasileiro no Mundial. A estreia das brasileiras em campo foi nesta terça-feira (11), às 10h, no jogo pelo Grupo E, da Nova Zelândia contra a Holanda. A Revista AzMina tentou falar com o trio, mas as normas da Fifa proíbem entrevistas antes da Copa.
A honra de apitar um clássico
As conquistas de Edina e a trajetória de Janette se devem também à luta de mulheres que vieram antes. Janette conta que na mesma época em que trilhava sua carreira, a ex-árbitra Silvia Regina e a ex-bandeirinha Ana Paula de Oliveira começaram a abrir os caminhos para as mulheres na arbitragem.
No currículo Janette acumula conquistas importantes: foi a primeira árbitra mineira a fazer um clássico masculino: Cruzeiro x Atlético Mineiro. “O jogo foi em 2012 no Mineirão. Subi e as pernas tremiam. A ansiedade passou só depois que marquei o primeiro lance. É a realização de um sonho trabalhar em clássico.”
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Além da Copa e do clássico, no currículo de Janette ainda constam jogos na Copa América Feminina no Equador, Copa Libertadores Feminina na Colômbia e participação no torneio Sul-Americano feminino na Bolívia.
Sobre a diferença entre apitar os jogos masculinos e femininos, Janette responde: “Com mulher a gente tem mais liberdade para falar o que pensa e com homem a gente fica mais comedida, mesmo tendo a sensação de que você está fazendo o que gosta.”
Na Fifa, só pode homem com homem e mulher com mulher
Uma outra barreira a ser quebrada é sobre a Fifa escalar mulheres apenas para apitarem torneios femininos. Isso não é uma norma da organização, mas é o que acontece na prática. Na última Copa do Mundo Masculina, por exemplo, a ausência das mulheres na arbitragem foi observada. Dos 36 árbitros convocados, todos eram homens. Não houve presença feminina nem no VAR (árbitro de vídeo).
Para o professor Rafael Pombo Menezes, da Escola de Educação Física e Esporte da USP de Ribeirão Preto, a separação de gênero está cada vez mais comum em competições internacionais, principalmente nas de futebol. “Nos últimos anos, parece que os homens apitam competições masculinas, e as mulheres apitam competições femininas, principalmente em competições da Fifa.”
Segundo Janette, que deixou a arbitragem após a Copa Feminina de 2015 por não estar presente no quadro da Fifa no ano seguinte, qualquer motivo serve de brecha para eliminar as mulheres nos jogos. “Depois da Copa da França de 98, quando uma juíza foi reprovada nos testes físicos, não tivemos mais nenhuma participação feminina em Copas do Mundo masculina”, conta.
“Fiz uma boa campanha na Copa, fui pré-selecionada para trabalhar nas Olimpíadas do Rio de 2016, e fui cortada. Não teve muita explicação, mas me desanimou bastante. Mesmo ainda estando na CBF, sei que ficaria na geladeira e apitaria apenas jogos da série B, se apitasse. Essas partidas não valem o investimento que fazemos ao longo dos anos para estar bem fisicamente numa partida. São gastos com nutricionistas, acompanhamento médico e não temos uma agenda. Somos escaladas uma vez ou outra. Essa imprecisão me fez abandonar a carreira”, disse.
De acordo com ela, o preconceito vem de todos os lados. “Os árbitros também têm preconceito quando as mulheres apitam. Imagina uma mulher indo apitar uma partida, com tantos árbitros aptos a fazerem o mesmo trabalho. Eles não aceitam”.
Por tudo isso, ela está cheia de esperanças no impacto que o trio de brasileiras na Copa pode produzir. E a torcida de Janette Arcanjo para que o trio e outras árbitras prosperem não fica só do sofá. Atualmente, ela é instrutora no curso da Federação Mineira de Futebol, onde forma mais mulheres árbitras. “Hoje meu foco é trabalhar com o quadro feminino de arbitragem e lutar por elas, por melhores condições de trabalho e para formar mais mulheres árbitras no nosso Brasil.”