Philip Zimbardo, psicólogo e professor da universidade de Stanford, EUA, estuda um fenômeno ao qual ele deu o nome de “Efeito Lúcifer”. A pesquisa visa entender como e por que pessoas boas, normais, comuns, sem traços de psicopatia se tornam agressivas e doentiamente violentas. Ele produziu o experimento de aprisionamento Stanford (há um filme disponível na Netflix que retrata como se deu essa experiência), e posteriormente ele foi contratado pelo governo americano para atender e entender os soldados americanos que praticaram tortura durante a guerra no Iraque.
Ele elenca três condições que criam um ambiente favorável para que esse fenômeno aconteça. (1) A invisibilização do outro, deixar de ver o outro como alguém digno de respeito, de direitos, como um igual, um ser humano, enxergando-o apenas como um inimigo. (2) A sensação de irresponsabilidade, a perspectiva de impunidade dos seus atos. (3) A existência de um ambiente que legitime e autorize a conduta violenta.
O estudo comprova que pessoas comuns, pais, mães, filhos, pertencentes a qualquer classe social, se colocadas em uma situação em que sejam instigadas a odiar, sem a existência de um freio social, externo ou interno, que lhes faça respeitar os acordos civilizatórios que a sociedade construiu ao longo dos anos, tendem a se tornar extremamente cruéis e violentas com esses membros tidos unicamente como inimigos.
Estamos vivendo coletivamente essa experiência em nosso país. Pessoas que você achava que conhecia, que eram seus amigos, gente aparentemente agradável e cordial, hoje propaga sem qualquer pudor mensagens de ódio, que afetam diretamente a sua vida e de outros membros da sociedade. Você lê e não acredita que possa ser possível alguém compactuar com um discurso tão violento, tão desrespeitoso, com falas que atingem direitos fundamentais de outros seres humanos e agirem assim, naturalmente, como quem está publicando uma receita de bolo.
São indivíduos que perderam os filtros éticos e morais. Os vários discursos de ódios que propagaram a intolerância aos que pensam diferente, aos que têm uma ideologia diversa, é o que justifica pessoas normais que até então não se sentiam com liberdade para agredir verbalmente e até fisicamente pessoas que pensam diferente delas começassem a fazê-lo.
A figura de um líder que assume abertamente uma postura de ódio em relação as minorias legitima seus seguidores a agir da mesma forma
Por que as pessoas não conseguem criticar o que é dito e refletir sobre o que está sendo proposto? Como é possível em pleno 2018 as pessoas realmente acreditarem em tudo que lhes dizem, havendo fontes inesgotáveis de fatos que comprovam o contrário dos discursos que estão sendo propagados?
Hannah Arendt trata sobre isso em sua obra “Eichmann em Jerusalém um relato sobre a banalidade do mal”. No livro, escrito depois da segunda guerra mundial, ela explica que o nazismo só foi possível em função da massificação da sociedade, fator que criou uma multidão incapaz de fazer julgamentos morais: os membros da massa apenas aceitam o que lhes é dito e assumem como verdade incontestável. As pessoas deixam de se importar, de se preocupar se o que estão fazendo é correto ou não.
Só nesta última semana uma professora foi ameaçada de morte por um aluno de 11 anos, que disse textualmente: “quando ‘ele’ se eleger eu vou ter uma arma e vou te matar”; um homem fez um post chamando feministas de feias, fedidas e nojentas; uma mulher publicou um texto dizendo que os “africanos fedidos” irão acabar quando seu candidato se eleger.
Eu não procuro essas informações. Elas chegaram ao meu conhecimento porque essas atitudes absurdamente violentas estão se tornando algo comum, trivial. Existem pessoas que realmente perderam o senso mínimo de civilidade e de fato acham que podem se portar dessa forma torpe em relação aos demais membros da sociedade. É desesperador assistir a tudo isso. Se você não está preocupado, você não está entendendo.
Enquanto revisava esse texto, de ontem para hoje, uma das coordenadoras da página “Mulheres contra Bolsonaro” (página que foi criminosamente hackeada por mais de uma vez), foi agredida por homens armados no Rio de Janeiro. Uma ex-cliente, professora de sociologia, me procurou porque um aluno a está perseguindo por considera-la “doutrinadora”: ela está apenas ensinando o conteúdo do curso, nada além disso. Uma cantora sertaneja que declarou apoio ao movimento #elenão teve sua família ameaçada e fez uma postagem dizendo que se calaria sobre política.
Você consegue compreender com clareza a dimensão que a situação está tomando?
O quão grave é isso tudo? Quantas pessoas desconhecidas tem se sentido no direito de lhe ofender gratuitamente? Quantos professores de história, filosofia, sociologia, ciência política, direito constitucional, direito penal e outros, estão se sentindo amordaçados? Isso tudo é gravíssimo.
#EleNao
A carreata do candidato em questão entoou uma música que dizia: “para as feministas ração na tigela”, “as mulheres de esquerda são mais peludas que cadelas”.
É surreal que isso tudo esteja de fato acontecendo aos olhos de todos. Não estamos nos indignando o suficiente. Muitos estão deixando passar, caindo na conversa de que são só “brincadeiras infelizes”. Não são. É um discurso violento que não pode ser admitido, que precisa ser enfrentado e rechaçado.
As pessoas precisam se envergonhar de falar essas coisas e agir dessa forma violenta. Não é admissível que alguém em 2018 se sinta suficientemente a vontade para defender o extermínio dos negros, que menospreze mulheres, que ofenda, que humilhe e que fiquemos calados diante disso.
É preciso que exista o enfrentamento no campo das ideias, é preciso questionar essas falas.
É essencial que não nos deixemos abater pelo cansaço, porque sim, é extremamente cansativo tentar explicar coisas óbvias para pessoas que deliberadamente escolheram ignora-las.
Se existem pessoas que não conseguimos conversar paciência. Que não desistamos daqueles que apresentam abertura para o debate, os indecisos, os que dizem que irão votar por falta de opções. Precisamos conversar com cada amigo, cada conhecido ou desconhecido, explicar que estamos falando sobre algo que é suprapartidário, sobre balizas civilizatórias, respeito, civilidade, democracia, empatia pelas minorias. Esse processo de convencimento é uma missão que cabe a todos nós como sociedade.
O professor Zimbardo conta que tanto em relação aos presos torturados no Iraque, quanto no experimento de aprisionamento Stanford houve um fator chave para barrar as ações das pessoas que se tornaram cruéis em função do contexto em que estavam inseridas. Ele explica que para combater os vilões (é o termo que ele utiliza) que se revelam pelo efeito Lúcifer, é necessário a existência de heróis. Não os heróis que voam, usam capa e têm superpoderes. Heróis, na definição do professor, são pessoas comuns que não se quedam inertes diante de situações violadoras de direitos.
Em relação aos presos do Iraque quem denunciou a situação foi um soldado cabo (a patente mais rasa das forças armadas). Ele expôs internacionalmente a situação dos presos e por conta da denúncia sua família foi ameaçada, tiveram que viver escondidos três anos sob a proteção do Estado. Heróis são essas pessoas comuns que mesmo com medo, e apesar do medo, fazem a coisa certa. São aqueles que se revoltam com que está errado, que não se calam, nem se amedrontam. Todos temos o dever e a obrigação moral de nos indignarmos e combatermos atitudes que colocam em risco as nossas conquistas civilizatórias.
Existem manifestações agendadas pelo Brasil inteiro no próximo sábado, dia 29. Esses protestos serão um marco na história da democracia brasileira. Será o momento de declararmos em qual tipo de sociedade queremos viver. Uma sociedade livre de preconceitos, que não apoia a opressão das maiorias em face das minorias, que não exorta a violência e que acredita na força da democracia para solucionar seus problemas políticos pacificamente.
É o momento de todos sermos heróis.
* A advogada autora do artigo preferiu não se identificar devido aos ataques sofridos por mulheres que se posicionam publicamente com a campanha #EleNao