Literatura pra mim era o quê? Palavras no tubo de ensaio, luvas, pinças, o ambiente asséptico, hermeticamente fechado da folha de papel, sentidos pesados em balança, calculados como se se tratassem duma complicada equação, demonstrações gratuitas de inteligência no mais das vezes, a inteligência como fim em si mesma.
Mas, daí, medir cada linha do que eu era capaz de produzir com Homero, Dante, Camões, Shakespeare, esses homens todos que vieram escrevendo o que hoje se entende por “literatura”, fez com que eu passasse a acreditar que não havia mais nada por ser escrito, tudo por demais já dito, esgotado.
A verdade é que, enquanto vivia como o homenzinho padrão que me criaram pra ser, era só isso o que eu via, era só dessa forma que eu concebia a literatura. Mas, uma vez que pus o pé pra fora da caixa e me vi / fui vista travesti, desesperei por descobrir o mundo que haveria dali pra frente e também o quanto, antes, eu tinha sido completamente incapaz de vê-lo ou sequer de imaginá-lo.
A realidade do assédio, os olhares de reprovação, o medo de ocupar o espaço público, de não voltar viva pra casa, a necessidade de provar meu valor a cada mísero passo dado… pouco a pouco fui voltando a enxergar sentido, talvez mais do que sentido até, a sentir urgência em ver no papel esse mundo que se abria aos meus olhos, essa violência que eu vivia na pele. Escrever, o que era agora escrever? Sobretudo disputar as imaginações desse nosso tempo, romper com as narrativas únicas que engessam tudo o que foi posto à margem, tudo o que foi criado pra calar, pra servir, ou seja, o que não é homem cis, branco, heterossexual, das classes dominantes.
É preciso que compreendam mulheres por outro viés, nosso próprio viés, das donas de casa às prostitutas, assim como pessoas negras, LGBTs, com deficiência, migrantes, e isso é, ou deveria ser, um dos maiores propósitos da literatura.
A inteligência como fim em si mesma, seus jogos, a masturbação mental que ela propicia, totalmente descomprometida com seu tempo, com qualquer ideia de transformação social, deve sim ser temida, ainda mais quando se percebe o quanto ela é capaz de promover práticas discriminatórias.
Alguns dos mais brilhantes homens que conheci foram também dos mais machistas, dos mais determinados em blindar o seu direito sacrossanto de ser machistas.
Daí me acusarem de “ditadora do politicamente correto” ao tentar pontuar que muito do que hoje se entende por literatura erótica se fez com cenas de estupro, daí chamarem de burrice a tentativa de priorizar o que está para além dos holofotes feitos sob medida para o homem padrão dos grandes centros urbanos, daí rirem de qualquer menção a feminismo no contexto acadêmico.
O elemento experimental ainda é importantíssimo dentro do que entendo por literatura, a reescrita obsessiva, os jogos de palavra, a tentativa de entender os sentidos que esse texto produz, de inventar novas maneiras de produzir sentido. Mas agora tudo isso está a serviço de contestar as narrativas em que nos aprisionaram, a maneira única como nos entendem, como apreendem tudo o que existe pra além da norma.
O mundo pelos nossos olhos. Nada por nós sem nós.
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