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16 de janeiro de 2019

Feminicídio e armas: Facilitar posse vai assombrar vida das mulheres

"Com a autorização ampla para posse de armamento dentro dos lares, não dá nem pra pensar sem arrepiar no aumento dos casos de feminicídio que vão assombrar a existência das mulheres daqui pra frente. E com cada vez mais com autorização do Estado", escreve Tainã Gois, da Rede Feminista de Juristas.

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Quartos vazios de Maira Martell, da exposição Feminicídio, no México

Uma arma de fogo tem apenas dois usos possíveis: matar ou intimidar pela violência. Qualquer outra justificativa para sua posse – legitima defesa, esporte, ou, sei lá, masculinidade frágil – só serve para mascarar a barbárie de nossa situação civilizatória.

E se já bastante rebaixada a solução da difícil segurança versus garantias em um país fundado na desigualdade, que mesmo em nosso suposto Estado Democrático de Direitos já atropelava garantias fundamentais se valendo da violência ilegal para resolução de conflitos, o atual governo promete cavar ainda mais o poço.

O recente decreto que flexibiliza as regras para obtenção de posse de armas estabelece, dentre outras insensatezes, a “presunção de veracidade de necessidade” – ou seja, basta uma simples declaração do cidadão, afirmando ter necessidade de possuir uma arma, para que cumpra um dos requisitos de autorização de posse, sem que o Estado demande maiores comprovações. Eu nem sei como é que isso poderia funcionar na prática, tamanha irresponsabilidade.

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Não temos presunção de veracidade para quase nada que preste em nosso sistema jurídico, exatamente pela insegurança que causa. Não conseguimos nem mesmo presunção de veracidade do depoimento de vítimas de agressão de gênero, estupro ou assédio sexual que, se não tem nada a ganhar com a denúncia – já que serão estigmatizadas pela sociedade, e hostilizadas pelo sistema penal -, muitas vezes também não têm qualquer testemunha que valide seu relato.

Agora existe presunção de veracidade para o direito de matar, mas ainda não para o direito de viver. Estamos bem.

Aliás, em nada muda, para o problema do feminicídio, que o decreto amplie a possibilidade de ter uma arma em casa – a posse de arma, e não andar com ela na rua – que seria o porte de armas.

Na verdade, para crimes relacionados a gênero, o ambiente doméstico e privado é infinitamente mais perigoso que o público. Dois em cada três feminicídios acontecem dentro de casa, isolados dos vizinhos, a portas e ouvidos fechados.

Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, em 2017 foram registrados 94 casos de feminicídio – cifra bastante inferior ao real número de assassinatos por motivação de gênero, já que muitos não são notificados, ou são registrados sob outros tipos penais. Em 2018, o número sobe para 118.

Com a autorização ampla para posse de armamento dentro dos lares, não dá nem pra pensar sem arrepiar no aumento dos casos de feminicídio que vão assombrar a existência das mulheres daqui pra frente. E com cada vez mais com autorização do Estado.

Acontece que, como todos os problemas derivados das desigualdades sociais, a segurança pública não é um problema do caráter individual do criminoso ou da condição de inofensividade da vítima – é um problema social, estrutural e complexo, como já reconhecido até pelos melhores intelectuais da direita.

O atual governo, contudo, ao invés investir em transformações coletivas e estruturais, que se mostrem realmente protetivas à sociedade, como mecanismos de redução de desigualdade e conflitos sociais, e proteção às franjas sociais mais vitimadas pela violência, apela para ampliação do uso legalizado da morte como instrumento individual de solução de conflitos.

Por fim, pra não dizer que estamos torcendo contra, acabo ficando na dúvida. Não sei se o atual governo realmente quer mais mulheres mortas, ou intimidadas à não denunciar agressões, ou se não compreendeu que o desenho de regras normas e políticas públicas não é um palanque para medidas midiáticas a favor do homem médio, e sim um costurar intrincado de necessidades englobam toda uma diversidade social e condições materiais determinadas, e que um fio equivocado que se puxe pode causar disfunções gravíssimas em todo o tecido social.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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