Vamos começar essa reportagem com um pacto de honestidade: leitora, antes de ler, responda honestamente as perguntas a seguir. Qual foi a última vez que transou sem camisinha? E quantas vezes fez isso no último ano? Sobre exames de HIV e outras DSTs, com que frequência você faz os testes? Quando sai para curtir o carnaval, você leva um preservativo com você?
Não se sinta mal com as respostas, mas vamos pensar um pouco sobre elas. Afinal, você não quer os quatro dias de festa se transformem em uma questão de saúde que vai te acompanhar para o resto da vida, né?
A verdade é que ainda hoje, falar de AIDS e doenças sexualmente transmissíveis é difícil. Perdemos o medo de morrer pelo contágio, mas ainda não superamos uma outra questão bem maior por trás das doenças: pessoas, inclusive mulheres, transam – e fazem isso de maneira casual também.
E falar de HIV e DSTs significa falar sobre a nossa relação com sexo e prevenção. E ela ainda é complicada.
Primeiro, vamos entender o cenário: AIDS ainda é, sim, uma questão. Somente em 2015, 44 mil novas pessoas foram infectadas no Brasil, o que significa 40% do total de pessoas que contraíram o vírus na América Latina, números que têm deixado os órgãos de saúde em alerta. Olhando os dados dos últimos dez anos, vemos que a taxa de detecção em homens tem aumentado, de 24,7, em 2005, para 27,7 a cada 100 mil habitantes, em 2014, enquanto a de mulheres tem caído: de 16,3 para 13,7. Opa! Isso parece ótimo, né? E de fato representa uma boa notícia.
Mas é importante notar: ainda são 13 mulheres infectadas a cada 100 mil. E um dos grupos de maior preocupação, de acordo com o Ministério da Saúde, são os jovens entre 19 e 24 anos.
Para além do HIV, o Ministério da Saúde anunciou no início de novembro passado que o país vive uma nova epidemia de sífilis: 65 mil novos casos somente em 2015. E para essa doença, a vulnerabilidade de mulheres vem aumentando. E não podemos esquecer do HPV, gonorréia, herpes genital e clamídia. Lembrando, que a ideia de grupos de risco é um conceito que não existe mais: qualquer pessoa que faz sexo desprotegido é parte do grupo de risco de contrair uma dessas doenças.
E veja só, segundo esse mesmo Ministério da Saúde, 45% da população sexualmente ativa do país não usou camisinha em suas relações em 2014. Mesmo sabendo a importância dela.
Sexo: uma coisa de homens
Feito o terrorismo, vamos ao que importa, já que o carnaval está batendo na porta: vamos falar de sexo. Porque, se tem uma coisa que esses números mostram, é que falar de doença não tem resolvido a questão. Está todo mundo animado, doido para curtir e se divertir, e a gente vem aqui falar de doença? Não vai colar. Como explica a psicóloga Camila Macedo, que trabalha com prevenção de DSTs em jovens: “Enquanto trabalharmos em separado prazer versus prevenção, teremos que correr atrás do prejuízo tanto de gravidez não planejada, quanto de infecções por DSTs”. Para ela, as campanhas e projetos trazem muito a ideia do “se cuide”, mas poucas exploram o como fazer isso. Além disso, a abordagem tem sempre ligado o uso do preservativo a uma ideia ruim, a um imaginário de doença e não a um hábito sexual que pode, sim, ser fonte de prazer.
Precisamos também entender especificamente o papel da mulher dentro disso.
“O sexo não é pensado como coisa de mulher. Quem dita o sexo na nossa cultura ainda é, de maneira geral, o macho: ele começa com a ereção e termina com a ejaculação. A mulher está nesse circuito como objeto”, comenta Kelly Vieira Meira, coordenadora de projetos da rede feminista de saúde.
Um dado muito importante aqui: segundo dados do Ministério da Saúde, entre 2007 e 2015, 96,4% das mulheres infectadas pelo HIV foram expostas em relações heterossexuais. Por isso é tão importante falarmos da relação entre homens e mulheres nesse assunto.
O prazer é visto como masculino e o cuidado, a prevenção, como algo que cabe às mulheres, inclusive, negociar. Para Kelly, essa visão do sexo como algo do homem influencia a saúde de diversas maneiras: no ideal de amor romântico, em que a mulher prova seus sentimentos topando transar sem proteção, e até no sistema de saúde, onde não se pede exames de DSTs para mulheres de maneira habitual. E abordar a sexualidade feminina então, nem se fale!
A assistente social Heliana Moura, experimentou isso há 20 anos, quando soube que um parceiro havia contraído HIV e decidiu fazer o teste.
“O médico fez um pedido para eu ir ao laboratório e nele dizia ‘teste de HIV, motivo: promiscuidade”, conta.
Uma atitude que hoje seria considerada um absurdo, mas que ainda acontece de maneira mais velada quando, por exemplo, ginecologistas não fazem pedido do exame porque a mulher é casada. “Dificilmente o teste de HIV é oferecido a uma mulher a não ser no pré-natal”, destaca a pesquisadora da ONG de apoio a pessoas com HIV, Grupo de Incentivo à Vida.
Leia mais: Sem Prazer? A culpa é do machismo.
A camisinha feminina
O preservativo para mulheres surgiu com o foco de dar autonomia em relação ao próprio cuidando durante o sexo. Além de independer do parceiro para a colocação, ela pode ser inserida até oito horas antes da relação – quer coisa mais prática se você espera que algo role naquele dia?
Mesmo assim, ela não tem até hoje aceitação no mercado, outro ponto em que se reflete esse olhar masculino sobre a sexualidade. Ainda é pouco conhecida, pouco acessível e cara, cercada de dúvidas e falta de informação.
“Eu achei ela muito grande, parecia um coador de café”, conta Stefany, de 18 anos, que acha que só tentaria de novo se encontrasse de outro tamanho, menor. Entre as adolescentes entrevistadas, foram comuns comentários como “ele ficou inseguro”, “não uso porque os caras têm preconceito” e “achei desconfortável”.
“Ela cai num limbo sobre as construções culturais acerca da vagina. ‘Nossa que grande é isso’, referindo-se ao tamanho da vagina também como uma coisa pejorativa; ‘muito difícil de colocar’, como se a instrução não fosse a mesma da masculina, só tem um aro dentro para ajudar; ‘faz barulho’, como se fosse denunciar a atividade sexual. E por acaso sexo não faz barulho?”, comenta Camila Macedo. Para ela, antes de apresentar a camisinha aos jovens, é preciso que exista educação sexual e de gênero.
Para Heliane Moura, que atua com prevenção de AIDS em Belo Horizonte e é membro da Organização Nacional das Mulheres Posithivas, também falta que as meninas conheçam o próprio corpo. “Elas precisam se tocar, pegar o espelhinho e ver seu canal vaginal, entender onde vai ser usada a camisinha”. Tanto ela quanto Camila, no dia a dia do trabalho de educação, procuram também trabalhar uma mudança na forma como as jovens vêm o preservativo feminino: ensinam formas gostosas do parceiro ou parceira colocar, mostram que o anel externo pode ser usado para estimular o clitóris e, de maneira geral, tentam mostrar que a camisinha pode ser um acessório de prazer e não só algo incômodo que previne doenças.
Mas a popularização da camisinha feminina não enfrenta apenas a questão de mudar a forma como a enxergamos e aprender a usar. Ela é considerada incômoda por muitas pessoas, o que pode indicar uma real necessidade de rever o modelo ou produzir diferentes tipos, para diferentes mulheres (pense na quantidade de tipos de camisinhas masculinas que existem).
Além disso, ela é um produto difícil de encontrar. Tente perguntar nas farmácias pelas quais passa se está disponível. Nos raros casos em que estiver, ela estará na seção masculina da loja, o que dificulta ainda mais que as mulheres se apropriem das camisinhas como algo seu.
“Temos falta do insumo. Em São Paulo, você consegue facilmente a camisinha feminina nas Unidades Básicas de Saúde, mas essa não é a realidade no país”, afirma Camila Macedo.
Jéssica*, moradora do interior do Rio de Janeiro, sentiu isso na pele: “Nunca acho pra comprar, as que tenho, peguei no posto de saúde e, mesmo assim, lá dentro, na salinha do planejamento familiar. Porque naquele lugarzinho que ficam as masculinas nunca tem dela”.
E veja a diferença: em 2015 foram distribuídas 552 milhões das masculinas e apenas 22 milhões das femininas pelo governo
“Só um pouquinho, vai”
Relatos de mulheres que flagaram os parceiros retirando a camisinha no meio da relação ou ainda que ouviram frases como “só um pouquinho, depois eu coloco”, são extremamente comuns em rodas de conversa femininas e grupos de mulheres nas redes sociais.
“A importância da popularização da camisinha feminina bate de frente exatamente com a ideia de que as mulheres precisam negociar o uso de preservativo com os homens. “De uma forma geral, a mulher ainda não consegue discutir e exigir o preservativo dentro de uma relação, duradoura ou eventual. Eu acho que ainda existe muito um estigma de que mulher que anda com camisinha é uma mulher que está preparada para tudo, de uma forma negativa”, comenta Silvia Almeida, ativista e consultora em prevenção ao HIV. Mas veja só: se você quer aproveitar o carnaval inclusive para transar, é essencial que esteja preparada e isso é positivo.
Isso esbarra também na construção de um ideal de amor romântico monogâmico construído sobre a posse. “Se você me ama, você tira o preservativo. Ele é sempre levado para a esfera da prova de amor e de fidelidade”, diz Kelly, da rede feminista de saúde.
Quanta coisa negativa sobre a camisinha, né? Além de ser toda construída sobre o imaginário da doença, de algo ruim, ela ainda “denuncia” a infidelidade. Fica difícil querer usar mesmo!
Para Camila Macedo, dentro dos relacionamentos ainda existe, geralmente, uma divisão dos papeis: “A cultura da prevenção é da mulher, mas a cultura do prazer é do homem. Complicado isso não? Enquanto cabe a mulher refrear o impulso/desejo do homem com a prevenção (de gravidez, por exemplo) ou seja, ter que articular uma negociação que regulamente o corpo do outro (uso da camisinha); ao homem cabe a deixa de, por conta do desejo, poder experimentar qualquer experiência sexual (desprotegida, inclusive)”.
Como mudar isso? No dia a dia do seu trabalho com adolescentes, Heliana Moura procura fazer as jovens entenderem a questão da responsabilidade. “Cada uma é responsável pelo próprio corpo, não é outro. Ela é responsável pelo próprio prazer e pelo cuidado também”.
Quem sofre com violência é mais afetada
Não bastasse isso tudo, existe ainda a questão da violência. Segundo a pesquisadora Andrea Ferrara, “as mulheres mais afetadas pelo HIV/Aids são as mulheres negras da periferia, devido à falta de acesso aos serviços de saúde e detecção tardia da infecção”.
Além disso, a infecção pelo HIV tem relação com a violência doméstica. E em seu relatório de 2016 sobre a situação da AIDS no mundo, a UNAIDS (braço das Nações Unidas focado na questão), apontou que mulheres que viveram violência física ou sexual de parceiros íntimos tinham 1,5 vezes mais chances de contrair HIV.
“O medo de violência por parte do parceiro íntimo tem se mostrado uma barreira importante para a realização do teste de HIV e aconselhamento, para a revelação do status de soropostivo e para o tratamento, inclusive entre mulheres grávidas vivendo com o vírus”, diz o relatório.
Então ao falar de prevenção, educação sexual e de gênero e mudança da forma como encaramos a camisinha, é preciso pensar isso dentro dos diferentes perfis de mulheres e diferentes situações de vida.
O estigma da mulher com HIV
Ser mulher não influencia apenas a prevenção e contágio pelo HIV, mas também faz diferença para aquelas que já foram infectadas. Se o simples fato de ser soropositivo já é algo cheio de estigma, ser uma mulher soropositiva é ainda pior.
“O homem pega o HIV, é porque é macho. Para as mulheres infectadas existe um estigma de que alguma coisa não deu certo, alguma coisa ela fez de errado no relacionamento. Ainda tem essa questão. É muito difícil ver uma mulher que diga ‘eu me infectei porque transei sem camisinha, porque sou livre e posso fazer o que eu quiser’”, conta Silvia Almeida sobre os depoimentos que ouve em seu trabalho com pessoas convivendo com HIV.
Ser mulher soropositiva traz uma grande carga de preconceitos e julgamentos, não só internos, mas também da sociedade. Heliana Moura, que recebeu o pedido de exame por promiscuidade, conta que depois do diagnóstico teve de lidar com dezenas de situações similares.
“Eu engravidei porque o preservativo estourou, mas tive que ouvir do médico um verdadeiro sermão, me chamando de irresponsável”, conta.
O preconceito e a vergonha são os principais responsáveis por afastar mulheres do tratamento. Sendo que, hoje em dia, com tratamento, o HIV pode se tornar indetectável – situação em que a carga viral se torna tão baixa que nem o contágio acontece – e a vida da pessoa segue muito bem com acompanhamento. Até a gravidez não é mais um problema para mulheres soropositivas, se estiverem com a carga viral suprimida.
Mesmo assim, conviver com o vírus traz diversas questões de saúde e necessidade de cuidados. Por isso, prevenir é ainda a melhor saída. Então pode encher a pochete de camisinha quando for sair para o carnaval, combinado?