Troca de mensagens diárias, emojis de corações e encontros frequentes são alguns dos sinais de que um relacionamento pode estar se iniciando. Essa situação pode simplesmente não sair do lugar no quesito “compromisso”, o que não isenta essas relações do risco de abuso.
É cada vez mais comum ouvir relatos de mulheres que sofrem diferentes tipos de abusos nessas dinâmicas sem compromisso que ganham cada vez mais espaço na cultura brasileira. Nomenclaturas como “conversantes”, “ficantes” e até “ficantes premium plus” são cada vez mais comuns, podendo, ou não, evoluir para status mais tradicionais, como namoro, noivado e casamento.
São relações sem definição clara, onde a falta de exclusividade fica subentendida, o que não se confunde com os relacionamentos não-monogâmicos ou abertos. A liberdade de ficar, e até mesmo namorar outras pessoas faz parte das relações não-mono, sem que isso represente falta de comprometimento.
Ada Rodrigues, psicóloga e especialista em dinâmicas relacionais, afirma que não ter um relacionamento definido torna mais difícil para uma pessoa entender que está em uma relação abusiva, mesmo quando as microviolências são frequentes. “É tudo muito confuso, porque eu tenho um cara que eu mostro pra minha família, mas, ao mesmo tempo, eu não posso postar no Instagram que eu tô com ele, porque a gente não tem nada.”
Quando ele pode, mas ela não
A baiana Ana*, de 27 anos, passou 1 ano se encontrando e conversando com um rapaz que conheceu na faculdade. Ela conta que, depois do primeiro encontro, ele demonstrou carinho, disse que queria vê-la de novo, estava apaixonado e queria namorar. Mas esse compromisso nunca aconteceu.
Com o tempo, Ana percebeu que alguns comportamentos do parceiro mereciam mais atenção. Por exemplo: ele flertava abertamente com as amigas dela, mas não tolerava o contrário. “Eu segui um amigo dele nas redes sociais porque eu queria, de alguma forma, descontar o que ele fazia comigo, e ele ficou muito irritado, falou um bocado de coisa para mim”, conta Ana.
A pernambucana Mikhaela Araújo, de 25 anos, passou pela mesma situação. Quando ainda estava na escola, se apaixonou por um amigo que, anos depois, declarou também ter sentimentos por ela. Mas os sinais abusivos logo começaram a surgir. Mikhaela lembra de quando foram ao cinema juntos, e, ao chegar em casa, ele comentou: “Foi ótimo, mas sua coluna é feia, você precisa ajeitar.”
Esse comentário se referia ao fato de ela ter escoliose, uma curvatura lateral da coluna, e cifose, uma curvatura excessiva para frente. Ainda assim, eles continuaram conversando todos os dias. Mas a aparente sintonia era restrita ao virtual. Em ambientes públicos, e com pessoas conhecidas em volta, o máximo de contato era um “oi”.
Mikhaela conta que, em uma festa, quando amigos dele questionaram um suposto romance entre os dois, ele negou. Falou na frente dela que ele não ficava com ela, que eles não tinham nada, eram apenas amigos. “Eu fiquei em choque, pensando ‘não é possível que ele tá mentindo na cara dura’”.
Leia mais: Violência digital nos relacionamentos: por que é tão difícil de identificar?
Escondidos por quê?
Quando após algum tempo de relacionamento sem rótulo, a pessoa só quer ficar em lugares discretos e longe dos amigos, esse é um sinal de alerta. É um comportamento, inclusive, muito comum com mulheres negras, que reflete uma construção em que a mulher pode até ser desejável, mas apenas longe dos olhares dos outros.
Ser uma jovem negra, sem bagagens românticas e afetivas, colaborou para que tanto Ana quanto Mikhaela tivessem dificuldade de compreender o que seria um comportamento saudável em uma relação amorosa.
A atitude de esconder a relação não se limita aos homens casados, muitas vezes está encobrindo, na verdade, o racismo. “Homens, no geral, não querem ser vistos com aquela mulher [negra]. Ela não é a mulher que vai desfilar com ele”, afirma Paula Galrão, cientista social e pesquisadora de Gênero e Interseccionalidade da Universidade do Vale do São Francisco (UNIVASF).
Não é raro conhecer mulheres negras adultas que nunca tiveram um relacionamento afetivo sério e que acabam em envolvimentos abusivos e violentos. Historicamente, elas são vistas apenas como parceiras sexuais. A psicóloga Ada Rodrigues avalia que mulheres negras, quando encontram alguém que oferece o mínimo, têm dificuldade de sair da relação porque já passaram por situações de rejeição e abandono.
Mikhaela passou a usar roupas mais reveladoras e tirar fotos mais sensuais para ser desejada e amada. “Eu precisava me objetificar para ele ficar mais interessado, e isso me colocou num buraco que demorou muito para eu sair”, concluiu.
Até onde a cobrança é normal?
Gabriela*, de 30 anos, conheceu o seu ex-ficante aos 15, em uma festa de aniversário. Em 2011, quando tinha 17, eles começaram a ficar. Era um rolo que não ia para lugar nenhum, mas ela não conseguia largar.
Com o tempo, Gabriela percebeu que alguns acordos eram unilaterais. Os amigos dele sabiam que não podiam se aproximar dela, porque ela era ‘dele’, mas em uma festa, ele estava ficando com outra pessoa e fingiu que não a conhecia.
A advogada Rayanne Moraes, que atua em defesa da mulher, afirma que um dos perigos de uma relação que não é bem delimitada é a dúvida de até qual ponto a cobrança é normal ou não. Em geral, essas relações têm todas as características de um relacionamento ‘tradicional’, mas só para os assuntos de interesse do homem.
Leia mais: Relacionamentos inter-raciais: amor, afeto e desafios
Idas e vindas
As idas e vindas são um traço marcante dessa dinâmica de relacionamento. Os homens usam recursos claros para manter as mulheres em uma interação sem compromisso e instável. Gabriela, por exemplo, passou 10 anos entre idas e vindas com o ficante.
“Na minha cabeça, a gente tinha uma ligação que não conseguia se largar.” Eles tinham ‘combinado’ que casariam se aos 30 anos ela ainda estivesse solteira.
O momento decisivo para ela romper esse ciclo foi quando descobriu a gravidez. Ele não aceitou e tentou induzi-la a fazer um aborto. Para ela, essa não era uma opção. “Ele contou para a mãe dele que eu queria abortar, mas não disse que ele estava me pressionando, me ameaçando e fazendo proposta de fazer outro [filho] depois. Ele mudou toda a história”.
A versão contada para a família e amigos dele era de que tudo aconteceu em uma única noite, e que ela engravidou com a intenção de prendê-lo, ignorando que, na época, eles já estavam envolvidos há cerca de 7 ou 8 anos. Mesmo depois que a filha nasceu, em 2016, ele continuava dizendo para todos que foi algo de apenas uma noite, nunca assumindo a profundidade do envolvimento.
Moravam juntos, mas eram só ‘amigos’
Helena*, de 41 anos, também engravidou em uma dinâmica de ‘não-relacionamento’. Em 2019, ela conheceu alguém no Tinder, começou a se envolver, mas não durou muito tempo. No final de 2020, com a pandemia da Covid-19 no auge, eles voltaram a se falar, como amigos.
Na época, Helena estava prestes a entregar o apartamento que dividia com uma amiga, e ele também estava em processo de mudança. Então ele sugeriu dividir as despesas, como forma de parceria e amizade. “Era apenas por um tempo, mas a gente acabou morando junto por dois anos”.
Os dois não queriam um relacionamento fixo sério com ninguém, diz Helena. “Mas a gente dividia o apartamento e tinha aquela cumplicidade e intimidade de um casal que já tinha se relacionado em algum momento”, continua.
O modo de agir dele mudou quando Helena engravidou. Desde o início ele afirmou que não assumiria a paternidade. Na hora de entregar o apartamento alugado em nome dela, ele sumiu e ela descobriu que ele havia acumulado dívidas, incluindo um empréstimo com o seu CPF e um cartão de crédito que solicitou sem o seu conhecimento.
Helena decidiu ir à Delegacia da Mulher e à Defensoria Pública para dar entrada no pedido de reconhecimento de paternidade, pensão alimentícia, e falar dos golpes. Mas a polícia considerou que ele não cometeu crime, e a assistente social sugeriu abordar o caso com “menos expectativa”. Até hoje, ele se recusa a reconhecer a paternidade.
Leia mais: “Como me tornei feminista após superar um relacionamento abusivo”
Promessas e estratégias para manter a relação
A psicóloga Ada Rodrigues explica que os rapazes, em um relacionamento heterossexual, são afastados emocionalmente do sentir, porque eles não foram ensinados a isso. “A outra pessoa começa a se questionar se está exagerando por exigir alguma reciprocidade, e se está sendo agressiva demais por não aceitar certas coisas”, complementa Ada.
O não-relacionamento de Mikhaela Araújo durou 3 anos, e era baseado em conversas virtuais carinhosas seguidas de frieza, mais carinho, e depois, distanciamento. “Eu ficava nessa dependência de ‘meu Deus, quando é que ele vai falar comigo de novo?’ Depois eu entendi que era um comportamento padrão de abusadores psicológicos”, relata.
Embora o assunto ‘namoro’ nunca tenha sido pauta nas discussões,— até porque Mikhaela nem considerava que ele pudesse querer algo tão sério — ela acredita que se mantinha nessa dinâmica por causa das estratégias abusivas dele. O cara dizia para ela: “Por mais que eu fique com outras pessoas, nunca vai ser mais do que você; e mesmo que você fique com outras pessoas, nunca vai encontrar uma relação igual à nossa”.
Promessas de oficialização do namoro fizeram com que a baiana Ana relevasse a maioria das atitudes do rapaz com quem se relacionou por 1 ano. O fato dele ter passado por dificuldades e desafios na vida a comovia e era usado como uma justificativa para o comportamento dele.
“Quando eu falava em nos afastar, ele vinha dizendo que estava com saudades e que dessa vez ia dar certo porque ele tinha mudado. Aí eu me envolvia de novo e de novo…”, desabafa Ana.
Paula Galrão, pesquisadora de Gênero, afirma que a dependência emocional é construída sob ideias e discursos que sugerem que a mulher não pode se sentir completa sozinha. E os homens sabem utilizar muito bem esses recursos para manipulá-las emocionalmente.
“Os homens também sabem ser românticos, e esses pequenos momentos de dopamina na relação são suficientes para ela se sentir amada, não conseguindo reconhecer o quão insuficiente é”, destaca Paula. E muitas mulheres ainda “preferem” permanecer, porque diante da cobrança da sociedade para estarem num relacionamento, seria “melhor” ficar na relação do que estar sozinha.
Como sair de uma relação assim?
“Quando você tem pelo que sofrer, o luto fica mais simbolizado”, considera a psicóloga Ada Rodrigues. Por exemplo, no namoro, as pessoas terminam, e em um casamento as pessoas se divorciam. Mas em uma relação sem responsabilidades claras e com um acordo confuso fica muito difícil entender porque é necessário sair dela.
A psicóloga aponta que um dos maiores obstáculos é a tentativa de conversar com alguém que já entrou na dinâmica sem responsabilidades. E a chance de haver qualquer compromisso emocional no final é praticamente nula.
Para Ada, é importante prestar atenção se você está vivendo algo confuso e se isso é desconfortável para você. Se a outra pessoa desaparece com frequência, isso é um sinal. Também é essencial ser sincera consigo mesma e se perguntar se você está disposta a sustentar algo que não tem um acordo estabelecido. Ada comenta que essas dinâmicas têm influências do machismo e do patriarcado, que não podem ser resolvidas só com terapia.
Se vocês ficaram um dia, e no outro dia ele não te liga, ou não manda mensagem, não ligue e não mande mensagem também! O sinal que você deu foi de que isso é aceitável, e ele apenas vai seguir essa dinâmica. Se o encontro foi bom, e você ficou satisfeita, vida que segue.
Percebendo e denunciando violências
Mulheres ouvidas pela reportagem relatam ter sofrido abusos sexuais nessas dinâmicas de relacionamento. “Ele veio me beijar e, de repente, começou a puxar minha roupa, mas puxar mesmo”, narra Ana. Ela resistiu, mas ele disse: “Você veio até aqui porque quer fazer sim”, e seguiu adiante. “Por muitos meses eu fiquei me questionando se foi um abuso.”
Mikhaela Araújo viveu situação semelhante. Durante uma festa na casa de uma amiga, o cara com quem ela se envolveu a chamou para a garagem e, longe dos olhares dos outros, tentou avançar fisicamente com ela, mesmo após repetidas negativas de Mikhaela. “Ele insistiu e botou a mão. Eu fiquei desconfortável, mas eu não entendia o que estava acontecendo.”
A advogada Rayanne Moraes afirma que quando falamos em violência sexual, física e psicológica, independente da mulher ser casada ou não, estar namorando oficialmente ou não, ela tem amparo da Lei Maria Da Penha. Só basta ser uma relação íntima de afeto ou familiar.
Os profissionais que acolhem essas mulheres, sejam médicos, enfermeiros em postos de saúde, ou, principalmente, psicólogos, estão aptos a confirmar o que aconteceu. Isso vai ajudar na documentação da denúncia. Por exemplo, uma mulher que foi estuprada pode relatar isso ao psicólogo, que pode registrar em um laudo as implicações daquele fato para a saúde dela.
Leia mais: Pacientes têm direito ao relatório psicológico em casos de violência doméstica
O julgamento social que atrapalha
Os casamentos oficializados ainda são os que oferecem mais segurança jurídica para a mulher, aponta a advogada Rayanne Moraes. Quando os relacionamentos não têm registro formal, muitas vezes as mulheres precisam lidar com o ‘desprestígio social’ e com o machismo presente no judiciário.
“O ambiente jurídico reproduz aquilo que está intrínseco na sociedade: machismo, racismo e homofobia, principalmente por ser um ambiente formado majoritariamente por homens brancos”, opina Rayanne.
A mulher já é frequentemente desacreditada nesse espaço, e quando está inserida em relações não oficiais, ou são amantes, é ainda pior. “Quando elas tentam acessar a proteção ao direito, a própria sociedade vai deslegitimar e ridicularizar essas mulheres. Muitas delas, inclusive, entendem como se não tivessem o direito”, percebe a advogada.
É por essa razão que a construção de provas pode ajudar a embasar a denúncia sobre o que ela sofreu. Rayanne Moraes menciona algumas providências que essas mulheres podem tomar: documentar (registros no celular, ligações e laudos médicos), denunciar, solicitar uma medida protetiva e, se possível, buscar mais informações com advogadas especializadas nos direitos da mulher.
*Os nomes das mulheres foram mudados para proteger as identidades delas.