
Por Jéssica Guimarães e Luana Fagundes, com colaboração de Laura Daudén, como resultado de atividade do Circuito Mulheres Mobilizadas SP. A roda de conversa “Política de drogas e encarceramento feminino” reuniu pesquisadoras, juristas e ativistas no Centro Cultural da Juventude, na zona norte de São Paulo, com o objetivo de trocar experiências e buscar saídas para os graves problemas do sistema carcerário feminino. Neste texto, elas resumem suas conclusões.

O encarceramento feminino é uma das mais injustas e brutais expressões da atual política de drogas brasileira. Dados do estudo Infopen Mulheres, levantamento nacional de informações penitenciárias do Ministério da Justiça, apontam que a população penitenciária feminina no País apresentou crescimento de 567% entre 2000 e 2014, enquanto a masculina, no mesmo período, teve aumento de 220%.
Os números alertam para uma realidade alarmante e diretamente ligado à política de combate às drogas: 68% das presas respondem por delitos relacionados a tráfico (desde 2005, esse indicador cresceu 290%).
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Para elas, o confinamento resulta numa dupla penalização: não se trata exclusivamente da privação de liberdade, mas também da violação de direitos básicos, como acesso a médicos e advogados (o que deveria ser garantido pelo Estado), além da negação de suas particularidades de gênero, tanto físicas quanto sociais (as detentas são privadas de itens de higiene, como sabonetes e absorventes, e muitas vezes separadas do convívio com os filhos – 80% delas são mães, de acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional).
O perfil da mulher presa
De 610 mil presos no País, 38 mil são mulheres. A maior parte delas é pobre, negra, ré primária, com baixa escolaridade e foi presa por crimes não violentos, sobretudo por comércio de entorpecentes.
Kenarik Boujikian, juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo, conselheira do Fundo Brasil de Direitos Humanos e integrante do Grupo de Estudos e Trabalho “Mulheres Encarceradas”, esteve presente na roda de conversa e explicou:
“Na cadeia do tráfico, as mulheres exercem papéis menos relevantes e assumem postos baixos. São as pequenas vendedoras, as que realizam transporte de pouca quantidade de drogas ou que as utilizam para consumo próprio, e acabam sofrendo com anos de reclusão em regime fechado”.
Elas frequentemente a ponta mais frágil do esquema, atraídas pela possibilidade de obter ganhos financeiros para o sustento da casa. “O envolvimento com a criminalidade se relaciona com a sobrevivência, com a necessidade de manter o mínimo de subsistência para ela e a família. A maioria das mulheres presas é chefe do lar, com filhos pequenos, muitas vezes vítimas de violência doméstica”, afirmou Kenarik.
No entanto, essas mulheres nem de longe participam dos altos lucros que a venda de drogas rende aos aliciadores, conforme apontou Ana Carolina Santos, advogada criminalista e vice-presidente para a área da mulher da Comissão de Direitos e Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
“Muitas são lançadas à própria sorte para atravessar oceanos carregando entorpecentes e, embora seja um esquema de muitas cifras, isso não significa que receberão grandes quantias em dinheiro. Seu pagamento é inexpressivo em face ao risco de serem presas. Depois disso, no cárcere, elas só perdem: o companheiro, os filhos, a família, tudo.”
“E a sociedade perde também. São crianças desamparadas e lares desfeitos, algo que nos custará um preço alto no futuro.”
Sheila de Carvalho, mestranda em ciências sociais com atuação política no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), explica ainda que as mulheres negras são as mais vulneráveis. “A cada três mulheres em situação de cárcere, duas são negras. Isso mostra o quanto elas são estigmatizadas e criminalizadas pelas estruturas desiguais do nosso país. Esse quadro reforça a condição de solidão da mulher negra, que já sofre tantas discriminações mesmo em liberdade. As políticas públicas na esfera do sistema penitenciário, que é machista, racista e classista, precisam refletir urgentemente as perspectivas de gênero e raça”, apontou Sheila.
O encarceramento é uma violência de gênero
Quando uma pessoa é presa, ela não tem somente sua liberdade cerceada. No Brasil, detentos e detentas se veem alijados também de uma série de direitos elementares previstos na legislação, como acesso à Justiça, educação, trabalho, assistência médica e convívio familiar. No caso das mulheres, que, em alguns casos, sequer recebem itens de higiene como sabonetes e absorventes, esse quadro se agrava.
“A prisão causa profundos danos pessoais e sociais a elas”, , esclareceu Mariana Lins, pesquisadora do programa “Justiça Sem Muros” do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, que luta pela erradicação da desigualdade de gênero, garantia de direitos e combate ao encarceramento.
“A mulher que transgride a norma penal rompe não somente com a Justiça, mas com o que a sociedade espera dela, que é a docilidade, a sensibilidade. É como se ela adotasse um comportamento masculino que não é tolerado. Com isso, surge o abandono de familiares e companheiros, o que as deixa deprimidas.”
Outro fator que colabora para o desamparo e esquecimento é a distância. As penitenciárias em geral estão distantes das cidades de origem das presidiárias, o que desencoraja as visitas. Além disso, existem poucos estabelecimentos voltados exclusivamente para mulheres; a maioria das presas está em presídios mistos, cuja ala feminina é apenas uma extensão da masculina.
“O cárcere perpassa a mulher presa. Ele afeta também os que estão em seu nicho familiar. Para os companheiros, as mulheres perdem seu valor como esposas ou namoradas. No caso das mães e amigas de detentas, às vezes, é preciso atravessar a cidade para fazer uma visita e ainda passar pela revista vexatória, na qual sofrem constrangimentos e abusos de carcereiros”, complementou Sheila.
Sem o apoio de familiares e companheiros e afastadas da convivência com os filhos, o sentimento de exclusão social das presas se estende para a vida extramuros. Quando em liberdade, elas se veem sem apoio e desprovidas de condições para recomeçar. Para a juíza Kenarik, esse é mais um dos sinais de que aprisionar não é um método eficaz.
“Sempre que possível é necessário evitar o sistema prisional como resposta para um crime. Existem outros caminhos mais eficientes. No Brasil, a sociedade, de uma forma geral, ainda não se deu conta do gasto enorme do encarceramento e dos danos sociais que perpetua”, defendeu.
Possíveis saídas para o problema
O número de mulheres atrás das grades não para de crescer, mas quais seriam as alternativas ao aprisionamento no Brasil? Em fevereiro deste ano, a ONU (Organização das Nações Unidas) publicou um informe da visita realizada ao país em 2015 e pediu um esforço para reduzir a população carcerária brasileira.
“Encorajamos veementemente o governo brasileiro a focar na redução da população carcerária ao invés de aumentar o número de prisões. A tortura e os maus-tratos por parte da polícia e dos agentes penitenciários segue sendo um fato alarmante e de ocorrência singular, principalmente contra pessoas que pertencem a minorias raciais, sexuais, de gênero e outros grupos minoritários”, observou Juan Méndez, relator especial da ONU sobre tortura.
Como medida de emergência, o Grupo de Estudos e Trabalho “Mulheres Encarceradas” e mais 200 entidades defendem o indulto, uma espécie de perdão ou redução da pena, para mulheres condenadas por tráfico de drogas. De acordo com Kenarik Boujikian, “o benefício é concedido a pessoas que cumpram requisitos fixados pela Presidência da República, que podem ser o tempo de cumprimento da condenação e a primariedade do caso, entre outros. Obrigatoriamente, cada caso concreto tem que ser submetido ao Poder Judiciário”. Atualmente o indulto não beneficia as presas porque o crime de tráfico é considerado de extrema gravidade. A proposta do grupo ainda precisa passar pela sanção da presidente Dilma Rousseff.
Sabemos, porém, que é preciso muito mais que isso para pôr fim às injustiças e violências de gênero a que estão sujeitas as mulheres encarceradas. Para a juíza, é necessário buscar outras possibilidades de punição para não retirar essas mulheres do convívio social, tendo em vista que cometeram crimes não violentos. “O STF (Supremo Tribunal Federal) tem várias decisões de aplicação de penalidades alternativas para estes crimes, mas o fato é que cerca de 45% das mulheres estão cumprindo pena em regime fechado”, apontou.
Está justamente na responsabilidade do STF o julgamento do recurso extraordinário que contesta a constitucionalidade do artigo 28 da lei de drogas (11.343/2006), que torna crime o porte de entorpecentes para uso pessoal. Uma decisão a favor da descriminalização nesse âmbito seria fundamental para começar a virar o jogo da política de drogas no Brasil e, assim, reduzir gradativamente o número de mulheres presas.
“Essa lei consubstanciou-se em um dos principais motores de nossa política de encarceramento em massa, que nos leva ao vergonhoso ranking de 4ª maior população carcerária do mundo”, afirmou o advogado Rafael Custódio, coordenador do programa de Justiça da ONG Conectas.
“Pessoas de ‘carne e osso’ esperam que esse Supremo Tribunal Federal siga o fluxo da História, que hoje, envergonhada, finalmente caminha para a busca de outras políticas de drogas: menos violadoras, menos encarceradoras e menos seletivas”, concluiu.
Em 2015, o ministro Gilmar Mendes votou a favor de que a posse de drogas para uso pessoal deixe de ser crime no Brasil. Para ele, “é sabido que as drogas causam prejuízos físicos e sociais ao seu consumidor. Ainda assim, dar tratamento criminal ao uso é medida que parece ofender de forma desproporcional o direito à vida privada e à auto determinação”. Entretanto, após a votação, o julgamento do recurso extraordinário foi interrompido a pedido do ministro Edson Fachin, para análise do caso.