“Minha filha, se você encontrar uma porta fechada, meta o pé, porque você tem que entrar!”. O conselho que a humorista Jacy Lima, 28 anos, ouve da mãe desde criança e que sempre seguiu à risca ganhou ainda mais força há três anos, quando começou a produzir conteúdo nas redes sociais.
Na época, o objetivo dela era um só: ser notada para seu primeiro trabalho enquanto atriz. Começou, então, publicando vídeos de um quadro chamado Papo de Quinta no Instagram, no qual trata com humor temas como masturbação, orgasmos, hipersexualização do corpo preto e saúde da mulher. Para garantir, mandou o episódio de estreia também para uma agente.
“Ela achou o vídeo horroroso, disse que eu nunca conseguiria nada com aquele conteúdo. Só que eu fiz desse limão uma limonada”, emenda Jacy, lembrando tudo que conquistou de lá para cá: mais de 140 mil seguidores no @thejacy, onde segue falando justamente de sexo e autoestima com muita atitude; trabalhos com grandes marcas e contrato com a Wolo TV (o primeiro streaming brasileiro voltado para população negra), onde estreia este mês na websérie Casa da Vó — sem falar no fato de que voltou a ser procurada pela mesma agente que a desencorajou lá no início.
O problema é que essa trajetória não foi — nem é — simples. Assim como tantas outras mulheres negras, Jacy ainda enfrenta muitas dificuldades para converter seus trabalhos em dinheiro e contratos — ainda mais se comparado à rentabilidade de criadoras brancas com a mesma base de seguidores.
Por mais que hoje ela já consiga atrair um público diversificado, bancar esse tipo de conteúdo segue sendo difícil. Até mesmo aumentar a base de seguidores é um enorme desafio. E por trás dessas dificuldades está uma nova forma que o racismo adquire na internet: a dos algoritmos.
Leia mais: Os algoritmos estão ajudando a criar novos machistas?
“É um lugar ambíguo de frustração e coragem o tempo todo, pois há milhares de barreiras. Os obstáculos são estruturais da sociedade (a exemplo do colorismo, já que quanto mais retinta mais difícil conquistar seguidores), mas da própria rede também. Os algoritmos funcionam como uma cortina de ferro e não permitem que pessoas pretas alcancem mais pessoas”, desabafa Jacy. Ela se preocupa ainda com a limitação de alcance das postagens por conta do uso de determinadas palavras e conteúdos considerados pornográficos pelo Instagram.
O que criadoras como Jacy e tantas outras estão fazendo, porém, é aprendendo a entender e driblar esses algoritmos e o racismo por trás deles para atingir seus objetivos.
Se o Instagram recompensa quem posta imagens com pouca roupa, Jacy se vale do corpo para engajar na rede e atrair seguidores para o conteúdo que produz. “Infelizmente dentro da internet, seja uma pessoa dentro ou fora do padrão, todos os vídeos sobre autoestima são sobre o corpo. Eu também estou lá [de maiô], sendo obrigada a mostrar meu corpo, mas a chave da minha autoestima e do meu conteúdo está em outro lugar”.
Jogando sempre na linha tênue do que funciona melhor na plataforma, Jacy bombou na quarentena ao publicar vídeos de exercícios físicos com paródias sexuais explícitas. “Isso me rendeu muitos seguidores. Por mais que as pessoas julguem, elas gostam de ver”, avalia.
Coragem e frustração
Os algoritmos são comandos programados por humanos, em sua maior parte homens e brancos, para que sistemas e máquinas realizem tarefas automaticamente.
São esses algoritmos que, dentre outras coisas, decidem o que vai aparecer ou não na sua timeline das redes sociais ou quais resultados uma busca no Google vai mostrar ou que fazem as recomendações dos vídeos relacionados nos Reels e Youtube. Como a maior parte dos códigos desses comandos são fechados, não é possível afirmar com precisão como funciona o viés racista – mas há uma série de experimentos e testes que denunciam sua existência.
Além disso, ações tomadas pelos próprios usuários de redes sociais interferem no comportamento da tecnologia, que também se baseia nisso para construir seu aprendizado, o chamado machine learning (aprendizado de máquina). Por exemplo: se muitas pessoas buscam no Google por “cabelo ruim” e clicam em fotos de cabelos afro no resultado, o buscador vai entender que essa é a resposta mais “correta” e vai passar a mostrar mais desse resultado, que é racista.
“Todo mundo acha nosso rosto bonito de ser visto no Carnaval e em novembro [mês da Consciência Negras], mas quer ter férias desse rosto e corpo no resto do ano. Isso é ainda mais fácil na internet, onde se pode fugir da realidade garimpando o que você quer seguir ou não. Conforme você vai curtindo, o algoritmo vai entendendo o que você gosta de ver e normalmente não são pessoas pretas e demais grupos minoritários”, complementa Jacy.
Leia mais: Se querem mais diversidade, empresas precisam ir atrás dos profissionais negros, diz criadora do AfroGooglers
Os dilemas que essa indecifrável estrutura impõe a todas essas criadoras negras são os mesmos enfrentados por elas no dia a dia fora das redes e, por isso, as consequências são tão complexas.
Quem também entrou no universo da criação de conteúdo para internet motivada a divulgar seus serviços foi a faxineira Veronica Oliveira. Em 2016, ela publicou em sua conta pessoal no Facebook, na época com 300 amigos, anúncios divertidos com montagens inspiradas em filmes e séries, como “Kill Bill”, “Better Call Saul” e “Orange Is the New Black”.
Em poucos dias, as publicações acumularam milhares de curtidas e compartilhamentos e garantiram muitas faxinas. Dali para a frente, a @faxinaboa (que logo migrou para o Instagram) cresceu tanto que hoje Veronica trabalha como produtora de conteúdo e “inspiradora digital” com mais de 230 mil seguidores.
Mas ela ressalta que os algoritmos e comportamentos racistas são um desafio constante e diz que os temas que mais geram engajamento são também aqueles que mais a incomodam e afetam sua saúde mental. “O ódio gera um engajamento absurdo, então se eu eu compartilho uma situação de injustiça ou de violência, sofrida por mim ou por outra pessoa, isso gera uma repercussão imensa, mas não é algo que me faz bem”, pondera.
Consequências no bolso
Em setembro, a pesquisa Black Influence mostrou que influencers negros têm menor participação em campanhas publicitárias e recebem menos por essas ações que infuencers brancos – a pesquisa não especificou gênero. A análise comparativa da média de ganhos por número de seguidores mostra que a diferença é mais evidente nos influenciadores que têm mais de 50 mil seguidores, chegando a mais de 50%.
“É frustrante ver influencer com 20 mil seguidores ganhando um monte [de dinheiro] e você com 130 mil sendo chamada para trabalhar de graça. Trabalhar de graça ficou na época da escravidão” – Jacy Lima
Sem falar que, ainda hoje, sociedade e empresas parecem limitar a mulher preta produtora de conteúdo a dois assuntos: racismo e negritude ou cabelo, afirma a atriz e apresentadora Luana Xavier, que tem cerca de 233 mil seguidores no Instagram. “É como se a gente não pudesse falar de outros assuntos, como se a gente não tivesse outro tipo de conhecimento. Esquecem, inclusive, que temos trabalho, formação e vivências específicas. O que esperam de nós é isso, mas o que a maioria de nós gostaria era poder falar sobre tudo que mexe com a gente e é importante levantar”, desabafa.
Luana começou a usar as redes como forma de mostrar os bastidores da vida de atriz, mas logo percebeu que o que interessava às pessoas era seu jeito simples, seu dia a dia junto aos tios, avós e pais, moradores da Zona Oeste do Rio de Janeiro, além da relação com o próprio corpo e com o axé. Para ela, a dosagem entre a militância combativa e as besteiras cotidianas é o que gera identificação. “As pessoas meio que botam um limite na militância. Você pode ser militante, mas nem tanto. Então, talvez eu seja a pessoa que se encaixa nessa ideia de que a militância não pode ser completamente combativa”, avalia.
O problema são os algoritmos ou os usuários?
É fato que o racismo está sendo filmado e vem se reinventado junto com a sociedade, que está cada vez mais digital. Para Luana Xavier, as redes sociais refletem exatamente o que acontece no mundo real. “Isso não só em relação ao comportamento do algoritmo, mas na busca e preferência da audiência por conteúdo branco”, pondera.
A pesquisadora e hacker antirracista Nina da Hora defende que é necessário pensar o ambiente digital não como algo novo, mas como continuidade e extensão da realidade que já vivemos no mundo físico.
Se as pessoas que criam os algoritmos são racistas, isso vai se refletir na forma como a tecnologia se comporta. E se usuários racistas treinam inteligências artificiais racistas, como é que as empresas que produzem essas tecnologias podem enfrentar esse problema?
Leia mais: Você se incomoda em frequentar lugares em que só há brancos?
Para Nina, a mudança cabe também às próprias plataformas. “Já é um lugar comum o de que os algoritmos são racistas e que as redes lucram com todo tipo de ataque, mas como é que a gente faz para sair do denuncismo? Quais soluções empresas, sociedade civil e pesquisadores podem pensar?”, questiona, ao ressaltar que as pessoas que enfrentam as piores dificuldades desses sistemas são as que mais precisam ser ouvidas.
Em nota, o Google afirma que construir uma experiência de busca é um desafio complexo, dinâmico e em constante evolução e, que, eventualmente a busca pode espelhar estereótipos existentes na internet e no mundo real em função da maneira como alguns autores criam e rotulam seu conteúdo. A empresa diz estar empreendendo esforços para melhorar tais resultados, de modo que representações negativas não afetem pessoas de determinadas raças, gêneros e grupos.
Já o Instagram diz estar revisando, desde junho, aspectos como distribuição de conteúdos, verificação de contas e viés algorítmico, a partir das experiências e desafios que pessoas pretas enfrentam na plataforma. Parte dos resultados desse movimento podem ser conferidos aqui.
“Por mais que não tenhamos respostas, a gente tem se provocado a fazer boas perguntas para as respostas que queremos ter um dia. Pensar o impacto que o racismo tem no meio digital é um avanço e a gente só vai avançar quando tivermos mais pessoas entendendo que isso é um problema. Essa discussão precisa chegar à sociedade como um todo, não só ficar nas bolhas da alta tecnologia e da militância negra”, acredita Silvana Bahia, co-diretora executiva da Olabi, organização social que há cinco anos busca democratizar a produção de tecnologia. Ela também coordena o PretaLab, projeto que procura mapear a produção, em tecnologia, de mulheres negras e indígenas.
Silvana é uma das muitas mulheres pretas brasileiras que estão somando esforços para construir um mundo digital em que as plataformas geridas pelas grandes corporações sejam mais transparentes sobre seus métodos. “A internet é muito maior que as redes sociais, mas há uma força econômica poderosa nos forçando a ficar nesse território e isso nada tem a ver com burrice ou ingenuidade. É só parar para pensar que operadoras nos dão as redes sociais ‘de graça’, mas não dão possibilidade de checar uma notícia em um portal jornalístico”, exemplifica.
O ano do antirracismo
No ano em que o mundo inteiro usou a internet para se comunicar como nunca antes, as desigualdades estruturais da sociedade ficaram ainda mais evidentes no ambiente online. O racismo foi assunto onipresente ao longo dos meses, impulsionado pelas inúmeras denúncias e casos de repercussão mundial.
Nas redes sociais, a discussão assumiu formas de hashtag com o #BlackLivesMatter, se transformou em um card preto no feed do Instagram durante a campanha Blackout Tuesday, virou ocupação de perfis de pessoas brancas e, mais recentemente, uma série de experimentos para denunciar o viés algorítmico.
A movimentação foi tão intensa que 2020 foi o ano em que os brasileiros mais buscaram por “racismo” no Google — a procura pelo assunto subiu 40% em relação ao ano passado. O Brasil também foi um dos cinco países com mais interesse de busca pelo assunto antirracismo em todo o mundo. Globalmente, as consultas ao tema tiveram uma alta de 70% frente a 2019.
Driblando algoritmos
Programadoras, ativistas, influencers e empreendedoras negras sabem que não há respostas fáceis ou soluções rápidas, mas divergem sobre se os avanços da luta antrirracista têm sido de fato significativos nas redes sociais.
“Foi um ano de muita conversa e pouca atitude. Na internet, as pessoas buscam a onda do momento e começam a reproduzir aquilo que todo mundo está fazendo. Isso vende bastante. Para ser bem sincera, foi algo que não me comoveu. Achei até graça pela coragem de muita gente branca que indicava perfis de pretos, convidava para lives ou para ocupar a rede social, mas sequer seguia ou conhecia o trabalho da pessoa”, avalia Jacy.
Em junho, Luana Xavier recebeu o convite da amiga Fernanda Paes Leme para ocupar suas redes, num formato similar ao que foi anunciado por Paulo Gustavo e Djamila Ribeiro dias depois. Pelo menos três aspectos pesaram para ela declinar do convite: o primeiro, foi que quando recebeu o convite ainda estava tentando acompanhar o tanto de discussão que rolou naqueles dias; o segundo foi que, uma vez começadas as ocupações, viu o esvaziamento de lives e percebeu que as pessoas não estavam dispostas a escutar; por último, a falta de remuneração.
“Ou seja, a gente sempre fica em desvantagem e fiquei me perguntando até que ponto valia distribuir meu conhecimento de graça. Eu acho que eu toparia fazer uma ocupação se tivesse uma troca rentável, se me pagassem, porque inclusive nosso debate sobre igualdade, representatividade e liderança passa principalmente pela questão de grana”, pondera.
O caminho que Nina da Hora tem feito é o de “hackear” as redes sociais transformando-as em ferramentas de crítica às próprias redes, divulgação científica e educação digital. Apesar de ser crítica das plataformas, ela escolhe seguir usando-as – mas para mostrar os problemas que existem, sugerindo melhorias em postagens acessíveis ao público em geral.
“O termo hackear ficou preso à tecnologia, mas se aplica a tudo, porque é você ressignificar um padrão. É pegar um que já existe e dar novo sentido para melhorar algo. A educação é a melhor forma de hackear todos os sistemas [quebrando padrões que estimulam a desigualdade]”, afirma.