Este texto foi escrito por Renata Rodrigues e Débora Thome, integrantes do Bloco das Mulheres Rodadas, do Rio de Janeiro, como parte da campanha #CarnavalSemAssédio.
E ra madrugada do dia 5 de fevereiro. Uma briga começa no ônibus, um homem empurra e ofende uma mulher. “Piranha”, diz ele. No meio do sono, atravessando a ponte Rio-Niterói na madrugada, outra mulher acorda assustada. Tenta entender a cena e decide, num ônibus cheio de gente impassível, que ela ajudaria a mulher agredida. Ouve de outro homem envolvido: “não se mete nisso, não vai se aproveitar da Lei Maria da Penha”. Explica que a Lei é direito das mulheres contra agressores. Determinada, vai sozinha interferir na briga. Leva um soco que, por sorte, atinge apenas um canto do seu olho. Depois, é também ofendida e ameaçada de estupro.
Acabada a cena de violência, a moça senta-se ao lado da primeira agredida, que chora baixinho: “me desculpe, me desculpe, eu bebi muito, sou homossexual, me desculpe”, sem entender que ela era a grande vítima de uma sociedade que se esforça dia, noite – e madrugada – para agredi-la.
Essa mulher que se levantou em resgate da outra, por acaso, é uma das integrantes do Bloco das Mulheres Rodadas, um dos responsáveis pela organização da campanha #CarnavalSemAssédio. O Bloco surgiu no fim de 2014, quando uma página de Facebook publicou uma foto na qual se lia: “não mereço mulher rodada”. Nós duas, amigas de longuíssima data, achamos aquele machismo tão ridículo e extemporâneo que decidimos fundar um bloco de carnaval para sambar na cara do machismo. Em menos de 24 horas, tínhamos mil confirmações. E por aí foi. Estava criado nosso bloco feminista! Agora, nossa tradição é sair às ruas na quarta-feira de cinzas. Em 2016, um grupo coeso se formou, com discussões e trocas. A música se tornou tão importante quanto o movimento de abraço que surgiu ali. Nessa onda de apoio, entramos na campanha #CarnavalSemAssédio.
Na pele, sentimos, quando soubemos dessa história, que a teoria e prática são muito diferentes. Fazer um carnaval sem assédio, garantindo os direitos de as mulheres transitarem em segurança, é um desafio muito maior que todos os nossos esforços e apoios.
Alguns argumentam que a culpa é do Carnaval, que aumenta a libido e, portanto, as ameaças sexuais de todos os tipos. Mas nós não aceitamos essa distorção. A festa não tem culpa nenhuma, o culpado é o machismo. O machismo que faz um homem bater e ameaçar duas mulheres em um ônibus sem que as pessoas reajam; o machismo que considera que no “Carnaval vale tudo”, ou que uma mulher que usava a blusa de um bloco feminista “merecia ser estuprada”.
O Bloco das Mulheres Rodadas é de uma linha do feminismo, às vezes, controversa, que defende que carnaval pode, sim, ser um tempo (intenso) de desfrutar dos desejos, de beijos na boca, de amassos e apertos. Apesar disso, sempre ressaltamos que toda essa liberdade só pode ser vivida em um contexto, o do consentimento. Essa palavra faz toda a diferença.
Sem consentimento, não há prazer que resista, não há sexo que exista. Na ausência dele, o que perdura é violência pura e simples, além da violação de básicos direitos de se viver em paz.