“Eu nunca tinha viajado pra fora do país e estava muito apreensiva, ainda mais porque tudo teria que ser sem que ninguém da família descobrisse. Era quase uma missão impossível, mas eu estava confiante”, conta a professora Edna*, 28 anos.
A ida à Colômbia foi a solução que encontrou para interromper uma gestação indesejada, já que aqui no Brasil o procedimento não é permitido. Ela e o namorado organizaram tudo, porém dois dias antes do embarque, os planos foram por água abaixo: seu voo foi cancelado devido ao fechamento das fronteiras da Colômbia pela pandemia do coronavírus, no dia 16 de março.
Edna faz parte de um grupo de nove mulheres que estavam com viagem para a Colômbia organizada para fazer um aborto e tiveram os planos interrompidos pela pandemia. Presas no Brasil, onde não têm direito de escolha, se viram correndo contra o tempo. “Porque a gravidez não espera a pandemia passar”, desabafa uma delas.
Cada uma teve de lidar com a questão de uma maneira diferente: encontrar um novo país para ir onde o procedimento é legalizado, aborto clandestino e até aborto legal. As histórias de seis delas estão nessa reportagem.
Todas essas mulheres estavam organizando suas viagens com apoio da iniciativa Milhas Pela Vida das Mulheres, que ajuda brasileiras a abortarem legalmente em países onde o procedimento é permitido. Juliana Reis, fundadora da organização, conta que o apoio varia de mulher para mulher: vai desde o apoio financeiro para os custos da viagem, para mulheres que não podem pagar, até o agendamento do procedimento e contato com mulheres colombianas para dar suporte às brasileiras durante a estadia. Desde novembro de 2019, 18 mulheres já foram para a Colômbia com a iniciativa.
“Isso que fazemos e o que essas mulheres viveram com a pandemia são facetas dessa violência que é a criminalização do aborto no Brasil. E vamos criando alternativas concretas para resolver isso”, explica Juliana.
No Brasil, a interrupção voluntária da gravidez é crime exceto em três situações: anencefalia do feto, gravidez resultante de estupro ou quando há risco à vida da mulher. No entanto, se a mulher brasileira faz um procedimento fora desses três casos em outro país, onde ele seja legal, ela não está cometendo nenhum crime.
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“Algo básico do funcionamento da lei penal dos países é a lógica territorial. Em regra, a sua conduta tem que ser avaliada com relação às leis do local onde você está”, explica a advogada Gabriela Rondon, do Instituto Anis de Bioética.
No caso da Colômbia, para onde essas mulheres iam, o aborto não é totalmente descriminalizado, mas a lei é mais ampla que a brasileira. São permitidas as interrupções da gestação lá em casos de estupro, incesto, má-formação severa do feto e riscos à saúde da mulher.
“A lei inclui uma perspectiva de saúde mais ampla, que entende que uma situação de uma gravidez não pretendida em situações sociais e pessoais adversas pode gerar um sofrimento mental”, explica a advogada. Assim, os riscos à saúde mental da mulher também são considerados legais, bastando um laudo médico informando a existência disso.
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Não sabia que tinha sido estuprada
Mãe solo, recém-formada e cheia de planos para construir um futuro melhor para si e para a filha, Cristina*, 28 anos, ficou em choque e sem saber o que fazer quando soube que estava grávida. Evangélica, ela era completamente contra o aborto. “Justamente por haver formas de evitar a gravidez, mas o que eu não via é que ainda assim há outras formas inesperadas de acontecer”, conta.
Mas ao se ver grávida, pensando em abrir mão de todos seus planos de uma vida melhor para si e para a filha, começou a mudar de ideia. “Estive no lugar de tantas outras mulheres e senti o peso dessa situação, as negações, as frustrações, o desespero, a depressão, o isolamento, a solidão. Isso me fez repensar. Então pedi a Deus que me ajudasse, sem colocar minha vida em risco.”
Foi quando soube da possibilidade de interromper a gravidez no exterior. Entrou em contato com a iniciativa Milhas pela Vida, um pouco receosa, mas aos poucos foi passando a confiar e começou a planejar a viagem. Até que veio a pandemia e seu voo foi cancelado.
Na época, ainda era possível ir para o México, no entanto, por ser fora do Mercosul, era necessário ter passaporte, o que ela não tinha, e não deu tempo de conseguir um de urgência. “A sensação de impotência, de não ter escolha sobre seu próprio futuro, de não ser respeitada… Pelo contrário, alguns acusam, julgam, apontam como se o futuro fosse deles, como se eles fossem abrir mão de algo, isso é tão frustrante”.
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No entanto, em uma conversa sobre como tinha engravidado, ela contou que o parceiro tinha tirado a camisinha sem avisá-la e sem seu consentimento. Cristina não sabia que isso era uma forma de violência sexual. Conhecido como stealthing, o ato de tirar o preservativo sem consentimento da mulher é considerado violência sexual e, portanto, é crime no Brasil.
Com posse dessa nova informação, Cristina soube então que sua gestação era resultante de uma violência sexual e, portanto, tinha direito ao aborto dentro da lei no Brasil. Procurou então o serviço do SUS e conseguiu interromper a gestação.
Apesar de ser um direito, o acesso ao aborto dentro da lei nem sempre é garantido. Nesta reportagem, explicamos o que fazer caso ele seja negado.
Três tentativas com pílula
Edna nunca quis ser mãe, desde a adolescência sabe disso. Mas para piorar tudo, descobriu que estava grávida bem na semana em que seu namorado foi demitido. “Eram muitas incertezas no momento. A única certeza que eu tinha era a de que não tinha condições de ter um filho”, lembra.
Então logo começou a pesquisar alternativas e conseguiu um contato para comprar pílulas de misoprostol. Tomou e, apesar de sentir algumas cólicas, não teve sangramentos. Fez um ultrassom e confirmou que ainda estava grávida. Então tentou as pílulas outra vez e nada. “Cheguei a conclusão de que estava gastando com remédios falsos. Desisti mas o desespero tomava conta de mim. Já não tinha vontade de sair, nem de comer, não queria ver ninguém e não reconhecia mais meu corpo”.
Foi o namorado que, vendo o desespero dela, começou a pesquisar sobre fazer o aborto fora do Brasil. Entraram então em contato com a iniciativa e começaram a planejar a viagem – a sua primeira par fora do Brasil. “Na semana da viagem começamos a arrumar as malas discretamente, comprei absorventes, separei umas roupas confortáveis e roupas de frio pra viagem. Estávamos acompanhando o crescimento do surto de Covid-19 na Europa há alguns dias e torcendo para que não fechassem os aeroportos na Colômbia”.
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Mas fechou. “Eu me vi sem chão mais uma vez e achava que não haveria outra saída a não ser ter um filho. A barriga já estava começando a aparecer e o tempo estava ficando apertado”, conta Edna, que entrou em desespero novamente.
Sem desistir, ela conseguiu um novo contato para comprar a pílulas de misoprostol. Com receio, decidiu tentar de novo. “Senti muita dor e o procedimento com medicamentos é um tanto demorado e sofrido, mas sinto que valeu a pena. Não poderíamos ter uma criança que desejamos tanto que não nascesse”.
Presa no México
Quando descobriu que estava grávida, Fabiana *, 27 anos, se viu em uma confusão de emoções. A certeza de que não queria seguir com a gestação veio quando o companheiro “pulou fora” das responsabilidades.
Pesquisando, viu que em outros países o aborto era legalizado e, como tinha férias para tirar no emprego, decidiu por esse caminho. Comprou a passagem e contou com apoio para fazer o agendamento na Colômbia. Mas assim que viu que a pandemia se agravava e que as fronteiras podiam fechar, começou a pesquisar alternativas.
Conseguiu transferir seu voo para a Cidade do México, onde a interrupção da gravidez é legal. Entrou em contato com uma clínica e no dia seguinte já embarcou. “Viajei durante a noite a no dia seguinte pela manhã já fui para a consulta”, conta.
Anticoncepcionais no SUS: quais estão disponíveis e como funcionam
Chegando lá, passou com um médico que explicou suas opções – fazer o procedimento de aspiração intrauterina ou tomar as pílulas. Ela escolheu a aspiração, por ser mais rápida. Depois, ainda teve consulta com uma psicóloga, que conversou sobre como ela estava e também falou sobre métodos contraceptivos, oferecendo opções de longo prazo.
Então chegou a hora do procedimento. “Eu estava muito nervosa. Com medo de dar errado e ninguém saber, porque eu não tinha falado para ninguém que ia fazer. Mas tomei a anestesia e quando acordei, falaram que tudo tinha corrido bem”. Nos dias seguintes, ela repousou ainda na cidade do México.
Depois, aproveitou as férias para ir para a praia e descansar mais uns dias. “Eu senti que precisaria, tanto para o corpo, quanto para a alma. Descansar, pensar em outras coisas”, conta. Era para ela ter ficado ali mais 20 dias. No entanto, seu vôo já foi cancelado duas vezes e ainda não conseguiu voltar para o Brasil.
Apesar dos imprevistos, Fabiana está tranquila. “Eu sabia de todos os riscos quando fui pegar o voo. Tanto de contrair o coronavírus, quando de vôos cancelados. Mas decidi encarar, porque quero poder decidir meu futuro. Ficar presa aqui, sem voltar, é menos grave do que estar presa no Brasil sem opção, porque a gravidez não ia esperar a pandemia passar”.
Perda natural
Evangélica e pró-vida autodeclarada, Denise*, 27 anos, nunca imaginou que passaria pelo dilema de seguir com uma gestação. Sonhava com a gravidez, mas aconteceu o diagnóstico de uma doença fetal rara e gravíssima. A probabilidade de que seu filho sobrevivesse após o parto era baixa e, ainda assim, ele não se desenvolveria e não passaria dos primeiros anos de vida. Diante disso, ela e o marido decidiram não seguir com a gestação.
Quem entrou em contato com as Milhas pela Vida foi o marido, mas Juliana pediu para falar com a mulher, que contou toda a história. O agendamento foi feito e estava tudo certo, até que no dia do seu vôo as fronteiras fecharam.
Em desespero, Denise dirigiu cinco horas de sua cidade até a capital, para tentar forçar o embarque. O que não deu certo, pois não poderia entrar na Colômbia. Ela ficou tão mal que, dias depois, diz ter tido um aborto espontâneo.
Denise não aceitou conversar com a reportagem, mas mandou seu depoimento para Juliana e autorizou que ela repassasse para AzMina.
Chá, pílula, reza, clínica…
Antibiótico pode cortar o efeito do anticoncepcional. Giovana*, 36 anos, não sabia disso. Casada, com um filho e sem nenhum plano de ter outro, de repente ela se viu grávida, mesmo usando de forma regular um contraceptivo.
“A maternidade não é para mim, não gostei. Eu amo meu filho, mas se eu pudesse voltar no tempo, eu não teria”. Ela conta que entrou em desespero com a notícia e começou uma corrida contra o tempo.
Primeiro, tentou Misoprostol, mas não funcionou. Em pânico, tentou chás e receitas caseiras, mas também não funcionou. Estava desistindo quando soube da possibilidade de ir para a Colômbia. “Foi tudo muito rápido, entrei em contato e agendaram para dali cinco dias”. Mas veio a pandemia e seu vôo foi cancelado.
Sem chão, ela começou a correr atrás de alternativas. “É horrível. Por causa da ilegalidade, você se depara com golpistas. Tem grupos de whatsapp que só te ajudam se você comprar deles. O Brasil tá muito atrasado”, desabafa.
Ela conta que visitou diversas enfermeiras e médicos, tentando encontrar um lugar em que se sentisse segura para fazer o procedimento. “Tinha uma que era na casa dela, um monte de bebida alcoólica em volta, não me senti segura”. No fim, ela encontrou uma clínica onde se sentiu segura e realizou o procedimento.
“Achei que ia sentir alívio, mas vieram os sentimentos contraditórios. Eu sentia culpa, vazio, chorava toda noite”. Após o aborto, ela procurou acompanhamento psicológico e sente que, agora, está ficando bem.
Onde comem três, comem quatro
Com três filhos, Bruna*, 32 anos, está separada há quase um ano, depois que descobriu que o ex-marido abusava da filha. Ela faz bicos e faxinas para alimentar as crianças e pagar as contas. Em um momento de desespero, aceitou fazer um programa. Ela conta que tomou a pílula do seguinte, mas o remédio não funcionou.
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Entrou em contato com a Milhas pela Vida com 18 semanas de gestação e agendou a viagem para a semana seguinte, porque o procedimento só pode ser realizado até 22 semanas.
Quando as fronteiras fecharam, ficou sem alternativa e se resignou a seguir com a gravidez, apesar do medo de não ter condições para criar mais um filho.
* Nomes fictícios para preservar a identidade das entrevistadas, que contaram suas histórias sob a condição de anonimato.
Essa reportagem faz parte da parceria d’AzMina com o Data Labe, Gênero e Número e Énois na cobertura do novo Coronavírus (Covid-19) com foco em gênero, raça e território. Acompanhe a cobertura completa aqui e nas redes e pelas tags #EspecialCovid #CovidEMulheres