O termo “mula”, no contexto brasileiro, vem carregado de uma forte ligação com o tempo colonial, em que o ato de nomear as mulheres negras de mulatas fazia referência ao animal mula. Este animal é resultado de uma mistura de raças e, por conta da miscigenação da população brasileira no período, essas mulheres multirraciais também sofriam a mesma representação. Além de, segundo análises históricas, elas serem animalizadas de outras formas e objetificadas sexualmente.
No campo da Justiça Criminal, a maioria das pessoas que recebem o nome “mula”, segundo a advogada Kaelly Silva (2018), acabam não apresentando nenhum histórico de envolvimento com crime organizado. Logo, essa mulher presa por tráfico, por transportar drogas, deveria ter uma diminuição de pena. Geralmente, são pessoas que não participaram “de nenhum delito anterior”.
Os homens negros em condições de transportadores de drogas também são atravessados pelo processo de desumanização, contudo, é sobre a mulher que o peso do processo desumanizador e misógino acontece.
O uso do termo para se referir às mulheres negras não se restringe ao Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, chamar uma mulher de “mula do mundo” refere-se à mulher negra ser considerada capaz de aguentar todas as atrocidades, como trabalho árduo e abuso sexual. Rupe Simms (2001) acrescenta que as mulheres escravizadas naquele país eram vistas como “brutas, insensíveis e sub-humanas, que deveriam ser reconhecidas apenas por seu trabalho”. Além disso, “a imagem da mula justificava a superioridade masculina branca e validava a inferioridade das mulheres africanas e sua exploração na unidade de trabalho”.
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Por essas razões, o Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC), que acompanha muita dessas mulheres migrantes em conflito com a lei e vítimas do tráfico de drogas, e estuda esse cenário, optou por não chamar as mulheres em conflito com lei por questões de tráfico de drogas de “mulas”. O termo adotado passou a ser “mulheres que transportam drogas”.
E se fossem brancas?
No ano de 2022, o relatório do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen aponta que as mulheres negras representam 20.747 de pessoas em situação de prisão no Brasil, seguido por 9.989 mulheres brancas e 141 indígenas. O relatório também informa que os crimes previstos na Lei de Drogas foram os que mais levaram essas mulheres à prisão, representando 15.830 das 30.137 infrações.
Em um estudo apresentando em 2019, o ITTC também verificou que 40% das mulheres migrantes em conflito com a lei entrevistadas se classificou como branca, 31% como preta e 23% enquanto parda. Se adotamos o mesmo critério de agrupar pretas e pardas para compor a categoria negra, então temos uma marioria: 54% de mulheres migrantes negras. É importante dizer que o Instituto teve dificuldades na identificação conforme critérios externos a sua cultura ou país de origem, contudo as mulheres também tiveram a chance de se autodeclarar conforme as nomenclaturas de suas culturas. Além dos termos preta e branca, também se destacam categorias como trigueña, morena, canela e mestiça.
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É extremamente importante perceber que muitas mulheres são vitimadas pelo tráfico de drogas, mas a condição de vítima não anula a importância de ponderar uma nomenclatura menos difamatória.
Na maioria dos casos, as mulheres migrantes que transportam drogas apresentam uma situação de vulnerabilização social, como dificuldades de acesso a serviços públicos básicos em áreas como saúde e educação. Logo, como o ITTC vem provando em seus estudos, os impactos do sistema prisional começam antes mesmo de a mulher migrante ser presa.
“Mula” é um termo racista e misógino e acaba por desumanizar as mulheres. Sendo as mulheres negras a maioria em situação de prisão, é essencial considerar o que antropólogo João Vargas (2017) pontua: “ser negro significa ser, desde sempre, excluído das esferas de cidadania, do consumo, de pertencimento político. Da humanidade. Ser negro significa não ser; significa ser, desde sempre, socialmente morto”.
Logo, essa reflexão nos leva a pergunta: se a maioria das pessoas acusadas de transportarem drogas fossem brancas, será que “mula” seria o termo escolhido para identificá-las? Teriam essas mulheres que clamar, como já feito pela escritora e abolicionista Sojourner Truth: “olhem para mim, sou eu uma mulher?”
*Texto escrito por Stella Chagas, coordenadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)
Para maior aprofundamento:
Silva, Kaelly. Mulheres “mulas”; um estudo sobre a instrumentalização da mulher pelo tráfico de drogas na América Latina. Faculdade de Direito Sul de Minas, 2018.
Vargas, João Costa. Por uma mudança de paradigma: antinegritude e antagonismo estrutural. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 48, n. 2, p. 83-105, jul./dez. 2017. Acesso em 24 de abril de 2023.
INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA (ITTC). 2017. https://ittc.org.br/o-encarceramento-de-mulheres-migrantes-e-politica-de-drogas/
INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA (ITTC). 2019. http://ittc.org.br/boletim-banco-de-dados-qual-o-perfil-das-mulheres-migrantes-atendidas-pelo-ittc/
Leitura recomendada: http://ittc.org.br/wp-content/uploads/2014/02/PARECER-ITTC-Mulas.pdf