
A minha irmã Jesus entra na sala do teatro, vestida de Renata Carvalho: vestidinho preto e casaco bege, como o meu. Faz frio. Ela carrega dois mil anos de História da Cristandade num corpo de mulher com vinte anos de palco e trinta e seis nesta encarnação. Jesus de Nazaré, que já foi tantos outros seres humanos em todo formato imaginável de narrativa humana, é agora uma atriz brasileira, travesti, cujas falas foram escritas por uma mulher trans escocesa, a dramaturga Jo Clifford.
Na sessão que assisti de O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, mundos se encontram num espaço cênico da encruzilhada global chamada de Cidade de São Paulo. A digna parte que me coube neste encontro, para além de simplesmente ser de Jesus, filha de Maria e Gizélio, irmã de Tiago, foi a de ser plateia, admiradora, testemunha e escritora, uma evangelista que lhe relata o que ocorreu, mas não só de ter ouvido dizer, mas de ter visto, ouvido, falado, sentido, degustado.
Jesus traz uma maleta branca e nos conta que tem sua entrada negada em muitas igrejas que clamam o seu nome em vão. Ela acabou de chegar de Salvador, onde um espaço cultural recebeu ordem judicial para que não lhe permitissem levar sua palavra e sua arte. O delito, no olhar dos censores, é o simples fato de Jesus ser uma travesti.
Não há outro nome para isso senão transfobia.
Perguntaram-na: “Quem é o meu próximo”? Ela responde contando uma parábola: “Com quem você se identifica mais? Com o religioso que repudia o homem drogado caído no chão, que acabara de ser agredido e roubado (deve ter merecido…), e segue seu caminho para o culto; o policial que vê esse homem caído como “mais um”, e segue seu caminho para a delegacia; ou a profissional do sexo, travesti, que liga para uma ambulância, a fim de que ele seja socorrido? Aquele (ou aquela) com quem você se identificou é o seu próximo”.
Eu pararia para socorrer o homem caído? Ele pararia por mim? Nós amamos o próximo? Quem é o nosso próximo? Você ama as mulheres? Todas as mulheres ou apenas as mulheres cis e brancas? O mal é banal e está vestido de rotina, cada qual com a sua. Seja a dos que a cada dia reúnem forças para enfrentarem o ódio ou a dos que se esmeram a odiar para esquecerem o tédio de seus dias. Somos crianças, adolescentes, adultos, idosos. Eles, os outros, também são. Todas, todos ou todes educados pelo Apartheid de Raça e Gênero a (se) segregarem. Sobre isso eu penso:
“Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal”[1]
Qual dessas almas atirará a primeira pedra na adúltera? Na violentada? Na oprimida? A dor da mulher cis lhe parece mais digna de compaixão que a da mulher trans, ou da travesti? O homens cis lhe parece mais homem do que o homem trans? Assim não é só porque lhe parece.
Os meus olhos marejam de lágrimas de alegria: Jesus me representa
De seu olho esquerdo escorre uma lágrima. Recorda seus muitos companheiros de jornadas de outrora, nomeia alguns, e algumas, principalmente os renegados; fala do apóstolo João, que ela tanto amava – imediatamente me lembro do meu marido, João, que eu tanto amava e que também se foi… A Rainha do Céu me toca no coração e diz que eu posso ter sede de água, mas essa fonte não secará. Isso também é amor.
Festejemos o retorno da filha pródiga! Ela que morreu homem para renascer ela mesma: mulher. A nós foram entregues uma pequenina lâmpada e uma taça de vinho. “Fiat Lux”! Faça-se a Luz, proclamou a mãe ao separar a Luz das Trevas. Todos somos de luz, mas há os que preferem as trevas. Mas há também os que veem trevas na Luz, ou os que, expulsos das luzes, encontram acolhimento nas trevas.
Vem à minha mente dizeres de Indianare Alves Siqueira, uma puta educadora, uma pessoa normal, de peito e pau, em especial o que segue, não exatamente com estas palavras: “Prefiro a escuridão. À noite tem menos pessoas cis na ruas para nos violentar”. Quem é trans entende profundamente o que a minha amiga Índia diz. Algumas pessoas cis também.
Só por hoje, nesta gélida noite paulistana, nós homens e mulheres, cis e trans, acendemos nossas luzinhas, para nos lembrarmos do gesto primordial da Deusa e nos animarmos para iluminar caminhos. Quem sabe enxergaremos pessoas como pessoas, e não como genitais ambulantes.
A Nazarena reparte o pão e nos entrega. É o seu corpo que banqueteamos. Que corpo! Bebemos do seu sangue. Delicioso. “Odara! Adoro!” É o que penso. Quanta beleza nessa proliferação de corpos e, principalmente, vidas. Falamos de sexo, da sua beleza quando é desejado e não imposto. Eis o novo mandamento: Deem e comam se quiserem! Desejem e se realizem! Permitam-se ser o permitam ser!
A minha irmã Jesus não é negra como eu, mas vive no mesmo país racista que eu. Ela sabe que não passa pelo que passo, porém ela se coloca no meu lugar e reconhece seus privilégios. Eu me vejo nela e a amo não por ser meu reflexo, e sim por ser ela mesma. Seguimos sonhando, amando e realizando, oxalá sendo sonhadas, amadas e realizadas. Nossa luta e nossa vitória são todo dia!
Eu, que sou de Jesus e filha de Iansã, em verdade vos digo: Esse é o caminho e a vida. Amém! Axé!
[1] Trecho de “A Flor e a Náusea”, de Carlos Drummond de Andrade.
* As opiniões aqui expressas são da autora e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo