
H oje, quem olha pra mim, pós graduada, classe média, “bem casada”, morando no exterior, me chama de branca e privilegiada. No primeiro plano de mim, eu respiro aliviada. “Consegui!”, me digo, “Dei o salto pra fora”. Mas aí, uma dorzinha interna, um segundo plano, mais profundo, me cutuca. “Seria essa mesma eu? Que culpas eu tenho por ter saltado pra fora da invisibilidade e ter deixado tanta gente por lá no caminho?”
Até outro dia, eu não era sempre branca e muito menos privilegiada. Quando fui babá de uma família americana em Nova York, por exemplo, morando na casa deles, eu era latina, uma categoria difícil de entender pra quem nunca saiu do Brasil, mas que, explicando grosso modo, significa que eu estava um pouquinho acima dos negros na escala social, mas ainda bem abaixo dos brancos. Lembro de uma vez que arrumei um casinho americano, branquíssimo, que desistiu de mim quando o beijei em público, na frente dos outros amigos brancos e ricos.
Fui morar nos Estados Unidos porque, acredite se quiser, ser babá de americano por um ano, na época, era mais barato do que pagar um ano ou dois de cursos de inglês no Brasil – coisa que minha família nunca teve condições de fazer por mim. Eu tenho cinco irmãos, em escadinha, e cresci na periferia. Na infância, nossa casa sofria com enchentes. Estudei em escolas públicas, algumas de minhas colegas de infância hoje trabalham como manicures (dos meninos, tem quem seja traficante) e meu primeiro namoradinho sério era filho de faxineira. Já vendi jornal pra feirante embrulhar banana, fui garçonete, telefonista e babá.
Em retrospectiva, papai é um cara guerreiro que me enche de orgulho: na infância, filho de um pedreiro cearense e uma costureira capixaba, chegou a passar fome e ser engraxate para ajudar a pagar as contas da família. Conseguiu galgar a escalada social com tanto de esforço e outro de sorte – porque essa história de meritocracia pura é furada, né gente? Mamãe, por exemplo, também veio de família nordestina, imigrantes pobres da Paraíba que chegaram a São Paulo sem nada. Ela, porém, foi parada por um tanto de machismo e um tanto de doença e não conseguiu se desenvolver plenamente como advogada.
No meu rosto, os traços do passado dos dois sempre foram muito claros: tenho a pele morena, o rosto bem redondo e sou atarrachadinha. Falo expressões que só nordestinos entendem e meu marido acha fofo que eu tenha morado a vida inteira em São Paulo mas puxe um sotaque nordestino aqui e ali. Como demorou pra eu achar isso fofo também, meu Deus!
O mais nordestino em mim, porém, nunca foi o rosto, mas minha cultura. De criança, a gente comia feijoada caseira com rabo, língua e orelha (nada dessa frescura paulista só com partes magras!), feijão com farinha, buchada e rabada, rapadura, quebra-queixo. A gente se esbaldava com as mãos, porque era mais fácil, e falava alto na mesa. Alguns dos meus primos corriam pela casa gritando “mainha” e “painho”, quando alguém tava bravo era “não se avexe”. Não sei se toda família nordestina pobre é assim, mas a minha era.
No colegial, eu me envergonhava de não conhecer as bandas de rock da MTV. Enquanto as meninas celebraram Axl Rose, eu adorava Luiz Gonzaga em segredo. Era ele que a gente dançava até deixar a sola do pé preta, em discos riscados de tão ouvidos, nas minhas festas de família, em que enchíamos a casa de imigrantes nordestinos como nós. Ah! Claro, tinha sempre a boa e velha lambada e mais forró de “rala bucho”, como dizia meu avô.
Lá em casa, apesar de ser todo mundo nordestino ou quase, os preconceitos dos paulistas impregnaram rápido na gente.
Quem se vestia mal, era baiano. Gente de cara feia “tinha cara de cearense”. E eu e meus tios enchíamos a boca pra destacar que não tínhamos nada a ver com aquilo porque “nascemos em São Paulo”. Eu fazia maquiagens que afinavam o rosto e nunca usava o cabelo atrás da orelha pra não revelar esse traço familiar, o rosto redondão salientado pela testa grande.
Meu Deus, eu tinha vergonha de apresentar meus avós nordestinos a meus amigos e namorados – e, ai se alguém descobrisse que eram semi-analfabetos – e achava que minhas festas de família eram um tremendo mico.
Pra mim, a ideia de pobreza e coisa feia eram todas associadas à nordestinidade da minha família. Sair da pobreza era esconder minhas origens.
Não vou ser hipócrita e dizer que eu sofria preconceito dos outros por isso. Por ser pobre sim, claro, mas ninguém percebia minha nordestinidade, que eu disfarçava com afinco. O mea culpa que eu faço aqui é pra assumir meus preconceitos internos. Para pedir perdão por como eu via minha família e certos aspectos de mim.
Foi outro dia, depois de uma palestra que fui dar na Feira Nordestina do Livro no Recife, que eu tive a epifania. Fui visitar o Museu Cais do Sertão e tudo ali me pareceu tão familiar e eu fiquei tão naturalmente à vontade, apesar de não conhecer bem o Nordeste, que comecei a chorar sozinha no cantinho. Ah, meus lindos avós, eu sou nordestina também! Ah, paulistas, pro inferno com seu preconceito e o meu! Quanto de bom da gente não vem daquele pedacinho de mundo?
Recentemente, vi um documentário ótimo sobre o movimento dos Panteras Negras, que popularizou aqui nos EUA, onde moro temporariamente, a expressão “Black is beautiful”. O filme me inspirou de vez. Cheguei em casa, penteei o cabelo pra trás (até a franja!) e expus meu lindo rosto redondinho, ressaltando as maçãs do rosto e a cor com bronzeador.
Pode parecer bobinho pra vocês, mas essa foi minha pequena revolução deste ano.
Me achei bonita porque “Nordestino is Beautiful!” e eu sou também. Amei as tradições que me fazem o que sou. E que, um dia, eu possa compensar minha linda família por ter me envergonhado disso por tanto tempo! Que esse passo pra fora da invisibilidade que eu dei, graças à luta de duas gerações (e um pouquinho de sorte no caminho), não me faça sair de minhas identidades antigas, mas levá-las comigo para os holofotes que encontrar pelo caminho.