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2 de maio de 2019

Não é dever da mulher denunciar a violência

"A sociedade joga a responsabilidade da denúncia sobre a mulher, esquecendo do agressor"

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Violência
Crédito Pixabay

Mulher é morta por (insira aqui qualquer arma) pelo (namorado, ex-namorado, marido, ex-marido ou companheiro), ela já tinha denunciado (número de vezes) vezes ele antes. Esta formula serve de manchete para muitas das notícias de feminicídio que se leem no Brasil diariamente.

Segundo a Organização Mundial da Saúde o país é o quinto no ranking de feminicídios, posto que é muito preocupante, já que o assassinato é só o final de uma jornada de violências cotidianas e recorrentes. Nem todas terminam em morte: o número de mulheres que sofrem violência é muito maior.

Pessoalmente, ao ler estas notícias fico com muita indignação por saber que as vítimas já tinham denunciado a violência que sofriam. Já tinham tomado coragem para falar com a polícia, como pedem todas as campanhas de violência contra mulher. Mas parece que isto não é suficiente – e não é – e por isso defendo que as campanhas de violência contra a mulher estão sendo pensadas do jeito errado.

Com certeza denunciar é importante, e conhecer o número 180 deve ser um must da vida de toda mulher ante o panorama de violência que vive o país, mas isso não deve ser o foco das campanhas.

Quando colocamos a denúncia como foco das campanhas, estamos deixando a responsabilidade do ato violento sobre a mulher, vítima, e não na pessoa que perpetrou o ato. Essas campanhas vitimizam a mulher duas vezes. Ela passa de sobrevivente a responsável moral pela denúncia da violência sofrida, em muitos casos sem ter uma rede de apoio que possibilite esta nova responsabilidade de denunciar.

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Além disso, este posicionamento nas campanhas subestima as mulheres vítimas. Elas partem do fato de que as mulheres só não denunciam por falta de conhecimento, quando a realidade é mais complexa. A maioria das mulheres resolve não denunciar por motivos estruturais, como dependência econômica, risco de mais agressões (vide o que sofreu Carla Graziele Rodrigues, jogada do 3º andar depois de ter denunciado o marido duas vezes) ou sanção social, pois o casamento é ainda visto como sinal de sucesso da vida das mulheres.

Também vão haver pessoas que não acreditam no testemunho da vítima e falam coisas como “ela fez algo para merecer isso” ou “por quê só denuncia agora?”. O que, novamente, re-vitimiza a mulher, lhe outorgando culpa. Por tanto, pensar que um “denuncie” no final de uma campanha vai incentivar as mulheres a digitar o 180 e entregar o namorado à polícia é negar a complexidade do problema.

O estado deve não só dar linhas de denúncia, mas ser capaz de dar atenção efetiva para as vítimas, para que elas sejam capazes de criar uma rede de apoio que as encorajem e traga o suporte necessário a tomar essa escolha.

A realidade é que o sistema Judiciário não só não oferece estas ferramentas de apoio como também não é um sistema confiável para as mulheres.

Ao pesquisar a fórmula descrita no primeiro parágrafo, o Google retorna 2.710.000 resultados, o que deixa uma sensação de “se ela denunciou por quê ninguém fez nada?” e na maioria de casos aconteceu uma de duas coisas:ou ninguém fez nada, seja porque o suspeito não foi considerado um perigo para a sociedade, o típico ‘em briga de marido e mulher ninguém mete a colher’ ou se considerou o suspeito um perigo, mas ele foi deixado em liberdade mesmo assim.

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No caso de Maria Regina Araújo, que morreu assassinada a facadas pelo marido em agosto do ano passado, por exemplo, ela já tinha o denunciado marido duas vezes, mas a juíza recomendou-lhe procurar um advogado para a separação, já que ela não via perigo no caso. Realmente, não só ele a assassinou, nosso sistema Judiciário e nosso machismo a mataram também.

O enfoque das campanhas na educação da vítima e não do agressor tira o foco de quem cometeu o crime. A sociedade joga a responsabilidade da denúncia sobre a mulher criando uma responsabilidade simbólica por sua vida e bem-estar físico, perdendo de foco sobre quem atentou contra sua integridade.

Portanto, as campanhas de violência contra as mulheres devem ser dirigidas para eles, os agressores.

As campanhas de violência contra a mulher devem falar do problema que causa a violência: as masculinidades tóxicas. Já que focar-se só na denuncia como caminho para punir o criminoso não está sendo efetivo para salvar as vidas das mulheres.

Muitos assassinatos de mulheres foram motivados por gatilhos como ciúmes, pedidos de divórcio, rejeição, entre outros.

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Estes gatilhos são consequências da construção nociva das masculinidades. Assim, se os esforços se concentram na desconstrução dos códigos culturais que motivam estas violências, as mulheres não precisam denunciar porque já não vão ser vitimas de violências e os homens não precisam violentar para demonstrar suas masculinidades.

Assim, campanhas que foquem seu trabalho na construção e naturalização de masculinidades que não estejam relacionadas à violência, ao controle do corpo feminino, à hiper-sexualização e à força representam um ganha-ganha para nossa sociedade. Elas permitiriam a construção de identidades masculinas mais amáveis com os homens e que respeitem a vida das mulheres.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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