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3 de janeiro de 2017

Chacina de Campinas não foi exceção ou loucura, foi crime de gênero

Justificar um crime com ciúmes é outra forma de dizer: "você me pertence e eu posso dispor de você - inclusive da sua vida". Isamara Filier foi assassinada porque não quis ser a mulher que Sidnei Ramos de Araújo queria que ela fosse.

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Ilustração: Nada Abdalla

Francisco de Assis Pereira: você não se lembra do nome, mas você conhece o homem. Em 5 de agosto de 1998, o Brasil finalmente conheceu a identidade do homem que ficou conhecido como Maníaco do Parque depois do estupro e assassinato de 6 mulheres. Outras 9 sobreviveram a seus ataques. Mais de um século antes, em 1888, as 11 prostitutas assassinadas pelo lendário Jack, o Estripador, não tiveram a mesma sorte: a identidade do assassino jamais foi descoberta e os crimes seguem impunes.

Entre os dois assassinos, muita coisa em comum: ambos ganharam da imprensa apelidos caricatos, que reforçam a ideia de que eles são exceções monstruosas, sub humanas. Ambos ocupam o protagonismo dos casos – quem se lembra do nome das mulheres mortas, ou pelo menos de quantas foram? Os crimes de ambos tinham a clara intenção de degradar suas vítimas. As mortes eram sujas, violentas; os corpos mostravam as marcas de assassinos sádicos. Sêmen, calcinhas enroladas no pescoço, marcas de espancamento, corpos em poses obscenas, tudo isso repetia o recado inconfundível: mulheres como aquelas mereciam o que receberam. Alguém precisava puni-las.

Jack, o Estripador e Francisco de Assis Pereira: dois feminicidas célebres. Em nenhum dos casos há quem negue que as vítimas tenham sido escolhidas por serem mulheres. Por que então, mesmo diante de uma carta em que Sidnei Ramos de Araújo chama sua principal vítima de “vadia”, tanta gente custa a reconhecer no autor da chacina de Campinas um misógino feminicida? Por quê não conseguimos perceber estes assassinatos como crimes de gênero?

Não, o caso de Campinas nada tem a ver com misoginia, dizem os comentaristas da internet. Diagnosticam loucuras e explicam o rompante violento pelo ciúmes – um clássico que não sai de moda. É que nós acreditamos na falácia de homens possuídos por ciúmes, tomados pela dor do abandono, impossibilitados de superar o trauma de uma mulher que escolheu entregar-se a outro. Mas a verdade é outra. O que une as vítimas de feminicídio – as prostitutas de Jack, as escolhidas pelo Maníaco e os cadáveres de Campinas – é a transgressão do lugar social determinado para as mulheres pela cultura patriarcal.

– É prostituta? Morre!

– É bonita e deu bola para um desconhecido no shopping center? Morre!

– Botou chifre no marido? Pediu o divórcio? Trocou de namorado? Morre também!

As mulheres que morreram por serem mulheres morreram para aprender a servir, a trepar só com quem o mestre mandar, a não usar mais aquela roupa curta. São, no linguajar dos sábios da internet ou do feminicida de Campinas, as famosas “vadias”: mulheres que fizeram com sua liberdade o que um homem não queria. E vadias são mortas porque há homens que não aceitam que elas não lhes pertençam. E há muitas vadias: de acordo com levantamento do Mapa da Violência de 2012, mais da metade das mulheres mortas a partir dos 20 anos foram assassinadas por seus cônjuges ou ex-cônjuges.

Foi assim com Eloá Cristina Pimentel, assassinada pelo ex-namorado Lindemberg Fernandes Alves depois de mais de 100 horas de cárcere privado. Foi assim com Eliza Samúdio, assassinada pelo ex goleiro Bruno Fernandes, que não queria pagar pensão ao filho do casal e que, meses antes do crime, tentou forçar Eliza a tomar abortivos. Foi assim com Sandra Gomide, alvejada pelos tiros do jornalista Antônio Pimenta Neves, com quem ela não queria mais manter um relacionamento. Foi assim com Ângela Diniz, morta a tiros pelo playboy Doca Street, que matou-a por que não aceitou dividi-la com mais ninguém. Foi assim com Maria do Carmo Alves, morta e esquartejada por seu amante, o cirurgião Farah Jorge Farah. Foi assim com Beatriz Helena de Oliveira Rodrigues, cujo corpo foi encontrado carbonizado dentro do carro do marido, Luiz Henrique Sanfelice, que alegou que a mulher o traía. Foi assim com Eliane Aparecida de Grammont, executada com um tiro pelo ex marido, Lindomar Castilho, que não aceitou que ela tivesse um relacionamento com seu primo. Na virada do ano foi a vez de Isamara Filier.

É evidente que estas mulheres não foram mortas por ciúmes, embora seja provavelmente verdadeiro afirmar os criminosos sentiram ciúmes. Mas quem é que nunca sentiu ciúmes? A questão é que a maioria de nós lida com isso, compreendendo que o outro é dono de si, e que, portanto, cabe a nós lidar com a dor de uma traição ou de um abandono.

Justificar um crime com ciúmes é outra forma de dizer: “você me pertence e eu posso dispor de você – inclusive da sua vida”.

Então, no frigir dos ovos, o motivo não é o ciúme – embora ele esteja presente em boa parte dos casos. O motivo é que muitos homens acreditam ser donos de algumas mulheres. Todas essas mulheres foram assassinadas porque não quiseram ser as mulheres que um homem quis que elas fossem. Isamara Filier foi assassinada porque não quis ser a mulher que Sidnei Ramos de Araújo queria que ela fosse.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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