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25 de maio de 2018

Os liberais não passam de cagões

“Nós reconhecemos a dificuldade gigantesca que é escrever uma regra que valha para milhões de pessoas. Nós sabemos que elas podem ter efeitos colaterais não calculados que vão na contramão da intenção”, diz Letícia Bahia

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Não, Alice, é futebol, a gente não pode pôr a mão na bola!

Ela tentou mais algumas vezes, mas logo arregou:

– Opa, mão na bola! É falta, seu juiz!

– Não! Eu tô segurando com a unha!

Alice tem apenas 3 anos e já percebeu como é difícil formular sentenças claras, que não dêem brecha para interlocutores sagazes, malandros ou que simplesmente tenham compreensões distintas das nossas.

É também por causa dessa dificuldade que nós, liberais, temos certa resistência a resolver problemas com a canetada do estado.

As feministas (e é claro que eu sou uma delas), travaram uma batalha em 2017 para pedir ao estado uma canetada.

Elas achavam absurdo que homens e mulheres pagassem preços diferentes para entrar em baladas. Eu também. Elas queriam proibir a cobrança desigual. Eu não.

Passando rapidamente pelo mérito da questão, meu entendimento é o seguinte: um punhado de adultos livremente escolhem gastar seu dinheiro em baladas que cobram preços distintos para homens e mulheres. São adultos, o dinheiro é deles e estão agindo por livre escolha. É legítimo impedi-los?

Alguns aspectos desse imenso aparato cultural que chamamos de machismo devem ser proibidos – como o estupro.

Mas quando se trata de adultos escolhendo livremente, a gente tenta dissuadir, faz campanha, pede por favor, mas a gente não pede para o estado intervir.

É assim com a depilação, com homens que abrem a porta do carro e com nossos vestidos de noiva. Por que seria diferente com a entrada da balada?

Mas vá lá, suponha-se que a caneta do estado tenha sido concedida às feministas pleiteantes: como elas traduziriam seu anseio em uma sentença clara e inequívoca?

“Não é permitido cobrar preços diferentes para homens e mulheres”. Certo, e como se garante que a razão para a cobrança distinta é o sexo (o que é sexo?)? Como se investiga a intenção de alguém? Ora, basta que a casa noturna retire a placa da fachada e continue realizando informalmente a prática. Teríamos uma lei que não serviria para nada, mas que teria custado grana aos cofres públicos e sabe-se lá que acordos para sua aprovação. Leis custam, inclusive as jamais aplicadas.

À época do debate, cheguei a este exato ponto com algumas amigas. Elas concordaram que essa formulação não resolvia o problema, mas não largaram o osso: com ajuda da cerveja, a discussão cresceu e passou-se a pleitear que a ninguém fosse permitido cobrar preços diferentes pelo mesmo serviço. Parece bom, não é mesmo? Parece belo, justo, equânime. Mas de boas intenções a esquerda está cheia. Segue uma lista de efeitos colaterais:

AzM_vaquinha_bullet_1Você está na feira comprando bananas. Você pede um desconto e o feirante te dá. Porque você compra sempre. Ou porque você foi gentil. Ou porque ele está te xavecando. Ou porque está cansado, quer vender logo tudo e ir para casa. Ou porque sim. Mas, se o estado diz que o preço é o mesmo pra todos, essa situação é proibida.

AzM_vaquinha_bullet_1O vendedor disse que em dinheiro é mais barato. Essa prática é comum em comércios pequenos (os mais frágeis!) que não têm bala na agulha pra arcar com as taxas dos cartões. Mas se o estado diz que o preço é o mesmo pra todos, essa situação é proibida.

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É seu aniversário (parabéns!) e você escolheu um bar que oferece desconto aos celebrantes do mês. Mas se o estado diz que o preço é o mesmo pra todos, essa situação é proibida.

AzM_vaquinha_bullet_1Você finalmente venceu os dragões que te separavam da telefonista da Tim. Você agora está conversando com uma pessoa, não mais com máquinas. Você vai explicar pra ela sua situação, você pensa, vai contar que é bom pagador desde a geração do seu bisavô, que é cliente desde mil novecentos e bolinha. E ela vai te dar o desconto que é justo, você pensa. “Desculpe, senhor, o estado diz que o preço é o mesmo pra todos. Peço que fique na linha para avaliar meu atendimento”.

“Ah, mas uma lei como essa não seria aplicada nessas circunstâncias!”. Sim, algumas pessoas dormem em paz deixando para lá o conceito de que todos são iguais perante a lei. Mas não você, certo?

Você, cara leitora, sabe que a aplicação seletiva das leis (que infelizmente é uma realidade), além de ferir a Constituição, coitada, é muito útil pra quem quer espremer grupos mais vulneráveis. Você sabe, e o Gregório Duvivier sabe. É por isso que ele vive chamando a polícia pra passar na casa dele e conferir seus pés de maconha. Ele sabe que a proibição da maconha tem como efeito colateral (ou intencional, dirão alguns) uma guerra desigual e covarde contra a população preta e pobre. Agora imagine uma autoridade local querendo acabar com uma feira de rua pra, digamos, abrir um shopping ou subir um belo edifício com varanda gourmet. A lei aí de cima seria um instrumento maravilhoso pra infernizar a vida dos feirantes, não é mesmo?

É por isso que nós, liberais, somos um bando de cagões.

Nós reconhecemos a dificuldade gigantesca que é escrever uma regra que valha para milhões de pessoas. Nós sabemos que elas podem ter efeitos colaterais não calculados que vão na contramão da intenção.

Foi assim com a lei da alienação parental, que hoje condena crianças a viverem com seus pais abusadores. Foi assim com a cota para candidaturas femininas, que em 20 anos não fez nada com a representatividade feminina, mas facilita o jogo para candidaturas de mulheres machistas. Foi assim com a Lei Seca (um clássico) nos EUA. Foi assim quando Sarney tabelou o preço da carne para enfrentar a inflação, e acabou gerando desabastecimento porque os produtores preferiram não vender a perder dinheiro no preço imposto pelo governo. Foi assim quando Maduro tabelou o preço do pão para enfrentar a fome: os padeiros se recusaram a produzir. (Maduro resolveu a questão oferecendo duas opções aos desobedientes: produzir na marra – alguns chamariam de escravidão moderna – ou ver sua farinha confiscada – alguns chamariam de roubo. A tirania pode ser vista nesse vídeo da TVS Pueblo, rede simpática ao líder venezuelano).

Mesmo quando os liberais topamos violar a proibição do proibir (não, não somos anarquistas), que dor de cabeça! Antes o Código Penal proibia estupro (ufa!) falando em conjunção carnal – e sexo oral, anal e outras violências ficavam de fora. De 2009 pra cá, estupro é definido como “qualquer ato libidinoso” – uma definição perigosamente larga.

– Alice, tive uma ideia: vamos guardar essa caneta mágica em um cofre muito bem guardado e escrever na porta: “só use em caso de violação de direitos fundamentais”?

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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