Se tem uma palavra que todo mundo tem ouvido sem parar nas últimas semanas é a tal da democracia. Cada um defendendo um jeito diferente de exercê-la. Mas será que todos esses jeitos estão de fato, respeitando o que ela significa? Para começar essa discussão, é essencial entender o significado dessa palavrinha tão ouvida: democracia.
De origem grega, a palavra significa algo como “governo do povo”, mas recebeu já muitas definições ao longo do tempo. O italiano Norberto Bobbio, por exemplo, define a tal democracia como um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, garantindo a participação mais ampla possível dos interessados, o povo. Para ele, é parte de qualquer regime democrático a instituição de normas e leis que regulem o “jogo” das disputas políticas. O principal requisito para se classificar um regime como “democrático” é, justamente, existir um conjunto de regras que regulam antecipadamente, em Lei, quem está autorizado a tomar decisões coletivas e como tomar essas decisões. Já para a professora Maria Victória Benevides, referência feminina no estudo dos Direitos Humanos no Brasil, a democracia é ainda um regime político fundado na soberania popular e no respeito integral aos direitos humanos.
Nesse sentido, a participação do povo é fundamental para legitimar as decisões tomadas em seu nome e, em nenhum momento, podemos perder de vista o conceito de democracia como o exercício do poder popular.
Há 31 anos o Brasil é considerado uma democracia representativa (em que o povo elege seus representantes para os poderes legislativo e executivo), e um Estado Democrático de Direito, com garantias constitucionais importantes, como o direito de ser considerado inocente até que se prove o contrário em um processo, e direitos sociais como alimentação, saúde, educação e moradia. Mas, como estamos vendo ultimamente, esse sistema gera inúmeras contradições, chegando ao ponto de ameaçar a confiança da população no próprio sistema democrático.
Sim, a democracia brasileira é imperfeita, mas como as alternativas disponíveis se aproximam do autoritarismo, a sociedade deve ter como objetivo o aperfeiçoamento desse sistema.
E nenhum “bem maior” justifica sua revogação.
Os critérios que definem o exercício do poder político devem estar em constante evolução, e é preocupante quando dão sinais de retrocesso. Se as regras são mudadas no meio do jogo e principalmente quando entram em conflito com os princípios de proteção aos direitos individuais e coletivos do cidadão, acende o sinal vermelho. Mal comparando, seria como se um árbitro de uma partida de futebol mudasse, no meio do segundo tempo, a regra do impedimento ou outra regra qualquer. Não pode, né? Mas é isso que tem sido sugerido.
A sociedade brasileira está dando sinais de descrença com o bom funcionamento da democracia. Num contexto de crise econômica, incertezas e ansiedades, com uma atuação problemática dos meios de comunicação, vemos o aumento das propostas pela revogação de aspectos cruciais do Estado Democrático de Direito, como o direito à ampla defesa.
Ao longo da história brasileira, o respeito aos direitos humanos foi fortemente ignorado, quando não ativamente rechaçado, principalmente durante a ditadura militar. Com a redemocratização, o Estado formalmente passou a se comprometer com o cumprimento desses direitos, consolidados na Constituição de 1988. Mas as violações continuam existindo. Principalmente em nome do combate à criminalidade e contra “obstáculos ao progresso”, com apoio e muitas vezes aplausos de uma bela parte da sociedade.
Agora, essa fúria se volta contra outro grande mal percebido pela opinião pública: a corrupção estatal, desvio de recursos públicos e o mau uso do dinheiro dos impostos, problemas importantes e cujo combate é fundamental. Mas rasgar as regras democráticas em nome desse “bom combate”, além de comprometer a própria eficácia da luta contra a corrupção, corrompe os fundamentos da democracia e pode abrir caminho para regimes menos transparentes mais repressivos, e por isso mesmo, mais corruptos.
Hoje vemos uma operação de combate à corrupção realizada por instituições que se fortaleceram e se consolidaram nestas três décadas da democracia, como o Ministério Público, a Magistratura e a Polícia Federal, que começou atuando de forma técnica e discreta e conseguiu o feito louvável de punir corruptos, tanto no poder público quando no setor privado, e devolver aos cofres públicos quantias bilionárias que foram desviadas.
Mas, se olharmos para o centro do poder político brasileiro, essa operação se vê contaminada e ultrapassa os limites da lei, sempre sob os holofotes da mídia. Esse processo pode levar à interrupção do mandato da presidenta Dilma Rousseff, conquistado pelo voto popular nas eleições de 2014. Isso criaria uma instabilidade das instituições que se equilibram de forma notavelmente democrática desde a última ocasião parecida, o impeachment do ex-presidente Fernando Collor em 1992. Essa instabilidade, com o fortalecimento de vozes autoritárias, o protagonismo do Poder Judiciário, que por sua própria natureza é o menos democrático e transparente, e a violência tolerada da polícia, são fatores que geram grande preocupação sobre a ruptura da democracia e o surgimento de uma nova ditadura.
Defender a democracia e a legalidade não significa ser contra esse ou aquele partido ou defender os erros do governo, mas garantir que haja um devido processo legal para apurar da melhor maneira os fatos ocorridos.
O quer dizer: um processo justo, onde seja garantido o mesmo espaço e oportunidades de manifestação tanto para defesa quanto para acusação. Para só depois punir os responsáveis de forma justa. Sabemos que, infelizmente, apesar das conquistas obtidas “no papel”, esse processo legal muitas vezes é desrespeitado pelo poder público no Brasil, principalmente nas periferias, o que é condenado e criticado por quem defende o Estado Democrático de Direito. Agora, esse desrespeito chega à Presidência da República. Não podemos admitir o retrocesso, a seletividade e perseguição penal.
As ameaças à democracia com apoio de boa parte da sociedade também podem ser entendidas num contexto de crise da representação política do Estado. Expostos a notícias diárias de corrupção e negligência do poder público, ao espetáculo do balcão de negócios particulares a que se reduziu o legislativo, o cidadão fica descrente da capacidade do Estado de o representar politicamente. Para a Defensora Pública do Estado de São Paulo, Flávia D’Urso, autora do livro A Crise da Representação Política do Estado, “Os lobbies tornam o Congresso Nacional palcos de barganhas de interesses raramente confessáveis. Nesse passo, a instituição que deveria representar a vontade geral dá lugar a uma soberania de grupos sociais e não uma soberania do Estado. A democracia, nesse contexto, precisa ser muito mais fortalecida através de mecanismos de representação direta do povo. É imprescindível uma maior operacionalização da soberania popular através dos plebiscitos, referendos e leis de iniciativa popular”.
Dessa forma, a participação popular direta funcionará melhor quanto mais a população for educada no respeito aos direitos humanos e os direitos das minorias. Afinal, tomando-se a opinião pública atual, a partir de pesquisas recentes, medidas de expansão de direitos das minorias, como a legalização das drogas e do aborto, provavelmente seriam repelidas num referendo popular, enquanto medidas restritivas de direitos, como a pena de morte e a diminuição da maioridade penal, poderiam ser aprovadas.
A democracia depende, antes de tudo, do respeito às leis, instituições e processos democráticos, da qualidade intelectual e moral daqueles que governam, e do comportamento e educação daqueles que são governados.
Uma democracia depende de todas as pessoas (governantes, governados, legisladores e julgadores), que vivem em um país. Neste processo, a participação ativa de cidadãos organizados desempenha papel fundamental. O caminho para a consolidação e real implementação da democracia, portanto, não é fácil ou simples, mas é um caminho que vale a pena ser seguido.