Das bonecas ao altar: por que há tantos casamentos infantis entre os ciganos brasileiros
Shanya* aperta os olhinhos num sorriso de menina, como quem está pensando duro na resposta. Tem 15 anos, lábios vermelhos e o colo rodeado por um vestido de contas amarelas e franjas vermelhas. Passa a filha de cinco meses de um braço ao outro e repete:
— Meu sonho, assim?
— Isso, o maior sonho da sua vida.
Dá-se por vencida. Não sabe – ou a pergunta não faz sentido no mundo dela. Largou a escola, casou-se aos 13 anos e era meio que isso aí. Tem algo mais depois disso e dar filhos ao marido? Um menininho de dois anos se achega nas duas e brinca com os pezinhos da bebê. Shanya se sente na obrigação de nos explicar:
— Esse aí é o prometido da minha filha, pra ela ver se casa quando fizer 13 anos.
E os amigos e familiares riem e acham fofo. E o tio, Rogério Almeida, complementa:
— Quando crescerem eles se acertam, mas a gente promete assim pra mostrar que gostaria que fosse isso. Em família de brasileiros, as meninas namoram um e depois outro, aqui não tem isso, não. Pode até separar depois de casar, mas a virgindade da mulher é garantida no primeiro casamento. O homem é arretado, liberado, mas a mulher não desperta o conhecimento.
É Boa Vista do Tupim, cidade de 18 mil habitantes no sertão baiano, localizada a 327 quilômetros de Salvador. Shanya e a filha pertencem à comunidade cigana local que, por sua vez, faz parte da nação de cerca de meio milhão de ciganos brasileiros. Seu grupo étnico, os calon, deixou a vida nômade pra fincar pé em cidadezinhas nordestinas como aquela há mais ou menos 25 anos. Largaram carroças e barracas, mas mantiveram as vestes coloridas, os dentes de ouro, a vida leve e a cultura patriarcal.
E integram, com seus costumes matrimoniais, as estatísticas do Banco Mundial que colocam o Brasil em primeiro lugar em casamentos infantis na América Latina – quarto no mundo em números absolutos.
Entre as meninas ciganas calon, bonecas devem ser trocadas por bebês não muito depois da menstruação descer. A idade média dos casamentos é 13 anos, “às vezes 12, se a menina for madura; mas se ela for muito infantil a gente espera mais, até uns 16”, conforme explica Rogério. Mulheres não devem optar por maridos mais que dois anos mais jovens, mas homens podem ter até uma década de vivência a mais que suas esposas. Por isso, os meninos ciganos também casam-se antes dos 18, mas um pouquinho mais tarde que as meninas.
“Quando casa, você é adolescente, não sabe de nada. Mas depois vai acostumando, aprendendo. Aí vai levando a vida… a tradição cigana é assim…”, comenta Jaqueline Andrade, 26 anos de vida e 12 de casada. “A gente nasce, fica mocinha, já é pra casar. Os pais aprontam, fazem o casamento e casa: vai ser feliz.”
A ideia de felicidade, para as ciganas de Tupim, está intimamente ligada ao matrimônio. Para elas, bom marido é aquele que cuida da mulher e dos filhos e dá a eles uma casa segura em que não falte nada. Querem que ele seja educado e carinhoso mas, de vez em quando, acham normal que ele grite e até bata na mulher. “Só devezinquando”, diz Kelly*, ao que a amiga Gina*, de 6, completa: “Quando ela fizer coisa errada”.
Para os jovens da comunidade, uma boa mulher é aquela que obedece.
“Uma mulher cigana deve manter o caráter do marido, ser obediente, fazer o que ele quiser”, decreta Roberlânio Mascarenhas, de 19 anos, com a esposa adolescente sentada a seu lado, silenciosa. “O homem deve também manter o respeito, mas eles sempre são descarados. Arruma um carro com som e vai pra rua beber, farrar, raparigar. Homem pode trair, mulher não. Pode até ser escondido, mas se alguém descobrir, aí o bicho pega.” Termina a frase baixando os óculos escuros de aviador e lança pra repórter: “Vem cá, já sentiu curiosidade de estar com um homem cigano?”
O que é casamento infantil
Cristina* tinha 13 anos e seus planos não incluíam a união arranjada por seus pais. Meninas ciganas calon, no entanto, são criadas para o casamento. Desde o momento de sua primeira menstruação, toda a família se mobiliza para que ele aconteça. É escolhido um bom marido – um homem capaz de lhe cuidar bem – e os pais da noiva separam o dinheiro do dote, que pode variar de R$ 30 mil a R$ 100 mil, dependendo das condições financeiras da família. Os parentes assinam um contrato entre si sem nenhum valor de lei – ou seja, o Estado sequer fica sabendo que aquele casamento ocorreu.
Quando se casa, a menina deixa de obedecer ao pai para submeter-se ao marido. Sua família não mais lhe pertence: agora, ela é parte da família dele e a mulher que a aconselha não é mais a mãe, mas a sogra. Ninguém sabe se tudo isso foi demais pra Cristina ou se ela simplesmente não estava feliz com o pretendente. Mas todos em Boa Vista lembram que, na semana em que o casamento deveria ocorrer, não houve tempo suficiente pra levar seu corpinho envenenado ao hospital.
“Ela não queria casar e o pai queria obrigar ela”, conta a cigana Eliana Almeida, 48 anos, “E ela se matou. Menina, ela tinha 14 anos…”
O destino escolhido por ela não tinha volta, mas, provavelmente, tampouco teria o casamento. Entre os calon, quando acontece um divórcio, os maridos são obrigados a devolver o dinheiro do dote com juros e correção monetária. A medida é um estímulo bastante forte para tornar a separação algo raro. E, mesmo que a decisão tenha esse peso de vida toda, não é bem visto esperar demais para tomá-la. Não existem estatísticas oficiais sobre o percentual de ciganas que se casam antes dos 18 anos, mas especialistas entrevistadas pela Revista AzMina estimam que o número, entre os calon, não seja menor que 80%.
Leia mais: Será que deveríamos fazer uma reportagem sobre casamento infantil cigano?
“Para eles, se a menina é apta a cuidar da casa, deve casar-se o quanto antes”, explica a historiadora Thaianne Macedo, que se dedicou a estudar os casamentos ciganos em Boa Vista. “Acredito que essa cultura de casar cedo é justamente para garantir a virgindade da menina.”
Internacionalmente, a prática que tirou a vida de Cristina é considerada uma violação de direitos humanos. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, que o Brasil assinou em 1990, definiu como casamento infantil aquele em que “ao menos um dos cônjuges é menor de 18 anos”. Apesar da norma incluir ambos os gêneros, a regra na América Latina, segundo o estudo, é que meninas se casem com homens mais velhos.
Opa, peraí, faz sentido dar o mesmo nome pro casamento de uma menina de 12 e o de uma adolescente de 17? Para Paula Tavares, uma das autoras do mais recente estudo do Banco Mundial sobre casamento infantil, faz, sim.
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“Uma das funções desta definição é nortear comportamento da sociedade e da lei, recomendando que a idade mínima para o casamento seja 18 anos”, defende.
“O que se considera, aí, é que o casamento só deve acontecer quando o(a) adolescente tiver plena capacidade emocional, legal e psicológica de consentir e responder por seus atos. E isso ocorre, via de regra, aos 18 anos.”
Questão de cultura?
As duas moram a apenas um quilômetro uma da outra e estudam na mesma escola. Mas, se seguir a tradição de seu povo, os ciganos, Gina vai se casar em seis ou sete anos, enquanto Liz estará terminando o ginásio e descobrindo se quer mesmo ajudar vovôs a se curarem de doenças. O que alimenta as diferenças entre os destinos das duas meninas, seria uma questão de cultura?
“Pra mim, isso não é cultura, é machismo”, protesta a ativista cigana Rebecca Taina, ex-assessora civil da ONU Mulheres. “Casamento infantil é uma violência e não há nada que impeça nós, ciganos e ciganas, a acabarmos com isso.”
Ela entende que, antigamente, isso era um pilar da sociedade cigana para evitar que, ao se misturar com não-ciganos, o grupo acabasse perdendo a identidade. Logo, casar as crianças muito cedo, muitas vezes em uniões arranjadas pelos pais, era uma maneira de manter os laços da comunidade. “Mas, como historiadora, sei que nosso povo não era originariamente cristão. Em nossa tradição original, vivíamos em uma sociedade matriarcal”, ela explica. “A mudança que justifica o casamento infantil para manter ‘a pureza’ da mulher tem a ver com nossa conversão ao cristianismo e não nossa cultura.”
“Cultura, pra mim, é o que você faz porque se orgulha de ser assim. Se você tem medo ou sofre se não seguir isso, não é cultura, é violência.”
Nicolas Ramanush Leite, presidente da ONG Embaixada Cigana do Brasil, é antropólogo e cigano da etnia sinti, o que faz com que conviva com um eterno dilema: “Nós, ciganos do Brasil, somos brasileiros portadores de uma etnia chamada cigana. Isso gera impasse entre o direito à diversidade cultural e os direitos humanos universais, como casar uma menina ou um menino nesta idade”, diz.
Para ele, a primeira coisa a ser compreendida para aproximar-se do tema sem uma postura de superioridade cultural é: os ciganos são grupos muito diversos. “Existem grupos ciganos machistas? Claro! Como existem grupos machistas em todas as etnias! Mas isso não quer dizer que essa é uma marca da cultura cigana.”
Em sua comunidade, por exemplo, a traição masculina é tão mal vista quanto a feminina. Para ciganos de algumas regiões da Europa, o casamento infantil é coisa do passado.
O que ocorre é que os calon chegaram ao Brasil deportados de Portugal na segunda metade do século 16. Até hoje, permanecem o grupo cigano mais marginalizado e com pouca instrução do país. Considerando essas especificidades, Ramanush considera muito mais sábio dar liberdade e oportunidades e permitir que os ciganos, por conta própria, decidam que costumes querem alterar, do que forçar mudanças com medidas punitivas e um olhar condenatório.
“Se as ciganas continuarem sendo educadas para um casamento em idade jovem, mas com a liberdade de dizer não para desenvolver sua profissão, este sim seria o caminho adequado”, defende. “Mas que elas possam escolher.”
Rebeca se incomoda com parte da argumentação: “Como homem, Nicolas quer que os ciganos continuem com seus privilégios machistas. Concordo com a ideia da autonomia, mas temos que entender que esse ‘desejo de casar’ está intimamente ligado à falta de autonomia sexual das ciganas. Se não debatemos isso, nem começaremos a vislumbrar o fim do casamento infantil.”
Consequências de casar-se cedo
Se, por um lado, é complicado fazer julgamentos morais a partir de um ponto de vista culturalmente distinto, é possível analisar de forma mais homogênea e distanciada os resultados dessa prática na vida das 15 milhões de meninas que se casam todos os anos mundo afora – inclusive as ciganas. Este foi o esforço de Paula, do Banco Mundial, ao realizar o estudo sobre casamento infantil.
“O que observamos é que meninas que se casam antes dos 18 anos, em geral, estão mais expostas à violência doméstica, têm escolaridade mais baixa (respondem por 30% da taxa de abandono escolar no ensino secundário), participam menos no mercado de trabalho e respondem por taxas mais altas de mortalidade materno-infantil”, revela ela. “Como seus corpos estão menos maduros para a maternidade, isso também pode afetar a saúde de seus bebês e a qualidade de vida de seus filhos.”
Entre as ciganas calon, salta aos olhos um outro efeito do casamento precoce, este observado pelas pesquisadoras da Promundo, uma ONG internacional dedicada a construir um novo conceito de masculinidade. Esse aspecto é o controle. Em entrevistas com homens de mais de 24 anos casados com menores de idade, elas descobriram que 71% achavam que meninas com menos de 15 anos eram mais bonitas e 15% acham que meninas nessa faixa etária “respeitam mais os homens”.
“Uma vez que ela não tem claridade, emprego ou formação profissional, a menina segue regras com muito menos resistência: não sair de casa, dedica-se apenas aos filhos. Ele controla como ela se veste, com quem se relaciona, o que faz e o que não faz”, argumenta Danielle Araújo, coordenadora da pesquisa “Ela vai no meu barco”.
A vida das mulheres ciganas calon é uma materialização do estudo de Danielle. Todas as entrevistadas pel’AzMina afirmaram que quem manda na casa, ao menos prioritariamente, é o homem. Quando as conversas aconteciam diante de algum homem da comunidade, suas reações eram medidas, cuidadosas, as falas interrompidas por olhares silenciosos a eles, em busca de aprovação. Os homens presentes frequentemente as interrompiam para responder perguntas em seu lugar.
“A cigana é uma filha natural e mantém a tradição do seu povo”, defendeu o cigano Rogério, em uma dessas ocasiões. “São bonitas e cuidam bem da casa, do filho, da sogra e do marido, sempre se mantendo uma mulher bem familiar.”
Por que meninas ciganas se casam?
Os seios pequeninos de Isabela*, 14, nem sequer preenchem o decote do vestido bordado à mão. As unhas tem esmaltes coloridos meio comidos, e ela se remexe na cadeira, tímida e infantil. É a mais recente noiva da comunidade cigana de Boa Vista. Como conheceu o marido? Brincando. Noivou aos 13, largou a escola e casou-se dois meses depois.
“Meu casamento foi bom e divertido, mas eu estava nervosa, com medo de ficar feia no vestido de noiva”, ela lembra. “A vida de mulher casada é boa: tem sua casa, tem seu conforto, tem carro, tudo que a gente quiser.”
A segurança financeira descrita por Isabela é a terceira razão mais comum para meninas se casarem no Brasil, segundo a pesquisa “Ela vai no meu Barco”, da Promundo. No topo do ranking está a vontade de supostamente “proteger a reputação” de meninas que têm gravidezes indesejadas, seguida do desejo de controlar a sexualidade das meninas antes que elas percam a virgindade fora do casamento – esta é, inclusive, a razão mais comumente alegada pelos ciganos. Ainda aparecem, no pé da lista, a vontade de sair da casa dos pais para fugir de uma situação abusiva ou em busca de mais liberdade e, finalmente, o desejo dos homens mais velhos de se casarem com meninas mais fáceis de controlar.
Com os meninos, a história é bem diferente. “Adolescentes da mesma idade que as meninas casadas são unanimemente desprezados enquanto parceiros viáveis devido à uma percepção de que são incapazes enquanto provedores e que ‘falta a eles responsabilidade’. Normas de gênero desiguais são reforçadas pela religião, mídia e pelas comunidades nas quais as meninas vivem”, afirma o estudo.
Segundo o levantamento, a idade média dos maridos é de nove anos a mais que suas pequenas esposas.
Os casamentos infantis entre ciganos e “brasileiros” têm mais alguns traços em comum: são, em geral, uniões informais e consensuais, levam ao abandono escolar da menina e perpetuam uma situação de insegurança econômica. A idade média da maternidade de pequenas esposas, brasileiras ou ciganas, é 15 anos. Entre as calon, o primeiro filho vem, em geral, entre 14 e 16 anos.
Existe, no entanto, uma diferença significativa entre meninas-noivas ciganas e “brasileiras”. É o preconceito intenso que lhes rouba oportunidades e perspectivas de outra vida. “Enfrentamos ‘muincho’ preconceito, até quando vamos numa lotérica, numa feira ou num posto tirar uma ficha. Cigano não é bicho, é gente e devia ter direito a trabalho!”, protesta Uenis Magalhães, 37. “Fizemos campanha pro novo prefeito e ele prometeu dar emprego pra gente e não cumpriu, fez que nem conhecia.”
“Mulher cigana também quer emprego, mas ela é sempre enxotada de onde o povo trabalha. A gente tem capacidade: sabe ler e escrever, mas o povo vê o cigano e só vê ladrão”, acrescenta.
Já Jaqueline afirma que, se tivesse tido mais opções, teria se casado mais tarde. “Ia focar no trabalho, ganhar meu dinheiro todo mês e fazer meu mundo primeiro”, confessa.
Rebecca, a cigana ativista, acredita que o principal papel do poder público deveria ser estimular o diálogo sobre a autonomia sexual e reprodutiva.
“O embrião da solução é fazer com que as mulheres ciganas entendam que não precisam se casar para ter sexualidade, nem precisam ser mães se não quiserem – há muitas outras maneiras de afirmar sua identidade cigana.”
Questionada, a atual gestão da prefeitura, de Hélder Lopes Campos (PSDB), respondeu por intermédio da secretária de Assistência Social, Edinete Silva Cruz Nascimento. Ela afirmou que a comunidade de Boa Vista acolhe bem os ciganos e há uma boa interação. Contudo, admite que o casamento infantil cigano é um problema no qual o estado tem prestado pouca atenção. “É uma comunidade em que não interferimos muito, mas você nos desperta para fazer um trabalho neste sentido, em parceria com a secretaria de Cultura, para conscientização.”
Enquanto a prefeitura não desenvolve este plano de ação, porém, estereótipos como “bandidas”, “desonestas” e “sequestradoras de bebês” impedem que as ciganas de Boa Vista consigam inserção no mercado de trabalho ou na sociedade local. Resta a elas fiar-se à tradição. Como Maia, uma moreninha esperta e vivaz de 12 anos que está se casando exatamente enquanto você lê esta reportagem. Exatamente hoje.
Quem são as ciganas e como elas vivem?
Quando você cruzar uma cigana de saia rodada e colorida, saiba que está diante de uma peça de resistência. “O que define a mulher cigana são as vestimentas”, respondem, em uníssono, todas as entrevistadas pela reportagem em Boa Vista do Tupim, no sertão baiano.
Apesar das vestes as tornarem alvo fácil de preconceitos, elas insistem em exibir, com orgulho, essa marca identitária.
Ninguém sabe ao certo de onde os ciganos vêm, mas a tese vigente entre a maioria dos historiadores hoje é que são um povo de diáspora que saiu da Índia há cerca de mil anos e se espalharam pelo mundo. O primeiro registro de sua presença no Brasil data de 1574: a deportação do cigano João Torres e sua esposa, Angelina, pra cá a mando do governo português.
Das muitas etnias ciganas, três fincaram pé no Brasil: Calon, Rom e Sinti. As mulheres de Boa Vista do Tupim pertencem ao primeiro grupo. Elas têm uma língua própria, o romani, que guardam como um segredo e não ensinam a ninguém que não for cigano.
Há pouco mais de duas décadas, algumas mudanças importantes nos costumes dos ciganos calon tornaram ainda mais importante a estética marcante das mulheres e os casamentos dentro da comunidade. Nesta fotorreportagem, a gente te mostra um pouquinho como elas vivem.
“Casamento infantil não é cultura, é violência”, afirma ativista cigana
Para muitos ciganos tradicionalistas, Rebecca Taina perdeu o direito de ser cigana porque resolveu falar contra o machismo. “Tive minha identidade sequestrada de mim”, protesta ela. Mas ela insiste em ocupar um lugar de vanguarda dentro de uma comunidade que, por enfrentar tantos preconceitos, resiste em deixar-se mudar. Uma de suas bandeiras pessoais é o combate ao casamento infantil.
Nesta entrevista a AzMina, ela fala sobre os limites entre especificidades culturais e violações de direitos.
As mulheres ciganas calon, de Boa Vista do Tupim, sertão baiano, nos relataram que casam-se entre 12 e 14 anos, em geral. Você considera isso um problema? Ou esta prática faz sentido dentro da cultura cigana?
Considero sim, um problema! Durante muito tempo as “representações ciganas ” junto ao governo alegavam que não havia casamento infantil e, sim, de adolescentes com 15, 16 anos. Isso não é verdade. Entendo que, na época dos meus avós e da minha mãe, isso fosse um pilar da cultura para que não nos “misturássemos” com os payos (não-ciganos).
Mas, hoje, eu vejo o casamento infantil como um absurdo, uma violência. Não existe nada que nos impeça de acabar com isso.
Algumas dessas mulheres me relataram que, se não sofressem tantos preconceitos e pudessem ter oportunidades de arrumar empregos, iriam dedicar-se mais a suas carreiras e estudos e se casar um pouco mais tarde. Acha que o poder público é culpado pela falta de escolha que elas enfrentam?
Em parte, sim, pois temos muitas dificuldades de inserção e falta de acesso à educação. Porém, eu entendo que essas mulheres moram em um rancho e, como você é uma payo, dificilmente elas assumiriam pra você que a cultura as oprime.
Minha avó, que era italiana e não cigana, se casou aos 14 anos. Assim como avós de muitas pessoas vivas hoje. Esta prática foi abandonada gradualmente por muitos grupos culturais durante os últimos 80 anos (inclusive alguns grupos ciganos da Europa), mas não entre ciganas calon. Por que acha que isso não mudou entre elas também?
Bem, o casamento infantil não ocorre apenas entre os calon (uma das etnias ciganas). Ocorre muito no Leste Europeu, por exemplo. Na verdade, o casamento infantil é muito forte ainda no Brasil todo. Eu moro no Norte e lhe garanto que aqui o casamento infantil, infelizmente, ainda é uma prática. Nas próprias periferias de Rio de Janeiro e São Paulo, você encontra casais vivendo juntos, mesmo sendo menores de idade.
O que acontece ali (em Boa Vista do Tupim), e é importante esse recorte, é que nosso povo, os calon, e principalmente os “ranchados” (que vivem em ranchos), estão mais à margem da sociedade; então, eles mantêm mais forte a “cultura”.
Por que “cultura” assim, entre aspas? Como historiadora, sei que nosso povo não era originariamente cristão. Em nossa tradição original, vivíamos em uma sociedade matriarcal.
A mudança que justifica o casamento infantil para manter ‘a pureza’ da mulher tem a ver com nossa conversão ao cristianismo (e a influência, principalmente, das igrejas evangélicas neopentecostais) e não nossa cultura.
O relatório recentemente lançado pelo Banco Mundial mostra que meninas que casam e têm filhos na adolescência tem mais chances de mortalidade no parto e problemas com os bebês. Em Boa Vista, muitas mulheres entrevistadas, de fato, haviam perdido muitos filhos na primeira infância. Acha que elas poderiam se beneficiar de uma mudança cultural para um casamento um pouco mais tarde?
Com certeza. Na verdade, elas precisam entender que o casamento não é seu único destino. Que elas saibam que uma mulher cigana pode optar por não casar, por não ser mãe.
Eu não sou casada nem mãe e não me enxergo nesses papéis, por exemplo. Mas sei que há muitas outras maneiras de afirmar minha identidade cigana além dessas.
Tive a impressão de que as mulheres calon daquela comunidade eram muito submetidas pelos homens que, por exemplo, davam em cima das repórteres diante de suas esposas. Ciganos entrevistados mais tarde disseram que de maneira alguma este machismo é uma marca da cultura cigana, mas uma prática local que pode e deve ser combatida. Você concorda?
Eu vou lhe contar minha experiência. Aqui no Brasil, os ciganos tradicionalistas dizem que não sou cigana e qualquer mulher cigana que se levanta contra o machismo na nossa comunidade tem sua identidade de cigana “tirada”. Na Europa, me dou muito bem com os meus primos e primas, porque eles já se veem como feministas, ou pró-feministas.
Mas, aqui, sequestraram minha identidade cigana.
Pergunte para qualquer cigano brasileiro se existe cigano gay ou lésbica, por exemplo? Eles nunca seriam abertos a isso. Mas tem uma associação LGBTQI na Espanha. Quando você vive na comunidade, sabe a violência a que somos submetidas – desde essa negação de nossa identidade até violências como maridos que tem amantes payas, não deixam a mulher estudar mas pagam a faculdade da outra. E a mulher cigana tem que aceitar.
Um representante da Embaixada Cigana no Brasil me disse que a solução é dar oportunidades e liberdade para as mulheres ciganas, sem adotar um olhar punitivista para homens ciganos. E continuar permitindo que, se quiserem, meninas e meninos continuem se casando cedo. Você concorda?
Lógico que ele, como homem, quer que os ciganos continuem com seus privilégios machistas. Concordo com a ideia da autonomia, mas temos que entender que esse ‘desejo de casar’ está intimamente ligado à falta de autonomia sexual das ciganas. Quando você vive em uma comunidade pequena, você não tem a mesma autonomia sexual que um casal de adolescentes da cidade. Então, para realizar seu desejo sexual, só existe um caminho: o matrimônio.
Se não debatemos autonomia sexual e reprodutiva, não começaremos a vislumbrar o fim do casamento infantil.
Quando se fala de especificidades culturais, é sempre preciso ter responsabilidade e delicadeza para enfrentar o conflito entre direitos humanos universais e o direito a expressão cultural e identitária. Este é o dilema que o mundo enfrenta, por exemplo, quando tratamos do véu muçulmano ou da mutilação genital de algumas comunidades africanas. Em sua opinião, onde deve ficar o limite entre esses dois direitos? Culturas são (ou devem ser) mutáveis?
Estamos falando de uma questão bem delicada aqui. Por exemplo: eu não sou tradicionalista mas, se vou dar uma palestra, uso roupas ciganas e lenços nos cabelos porque, pra mim, minha roupa é uma forma de resistência política. Contudo, eu tenho essa escolha. No dia-a dia, uso roupas normais.
Eu colaboro com um blog de uma feminista islâmica, uma mulher culta e que usa o hijab porque, no país dela e com a atual islamofobia que vivemos, usar hijab é um ato político! Mas, uma mulher do Afeganistão que pode ser morta se não usar a burca, isso já é violência.
Cultura, pra mim, é o que você faz porque se orgulha de ser assim. Se você tem medo ou sofre se não seguir isso, não é cultura, é violência.
Será que deveríamos fazer uma reportagem sobre casamento infantil cigano?
No Natal do meu 14º aniversário, minha mãe me deu minha última boneca. Ela era realista, respirava fazendo barulhinho e levantando o diafragma, bebia mamadeira e fazia xixi, pra eu trocar a fraldinha. Naquela altura, eu já ajudava a cuidar dos meus quatro irmãos mais novos e viria a acalentar o quinto, que nasceria não muito depois daquilo. Mas ela queria que eu não esquecesse de brincar. Não ainda.
Na mesma idade, Shanya* também ganhou uma boneca que respira e faz xixi. Ela já tinha uma casa inteira sob sua batuta e não podia fazer uma série de coisas que eram permitidas ao marido. A boneca de Shanya, ao contrário da minha, já estava prometida pra se casar, aos 13 ou 14 anos, feito a mãe, com um garotinho da vizinhança.
Com tudo isso, Shanya se dizia feliz. Felicidade pra ela era aquilo, um horizonte que cabia naquela vila do sertão baiano. E eu não duvido que seja mesmo.
Sorria como alguém feliz. Quem sou eu pra invalidar a felicidade de outro, afinal?
Será que eu, com meu etnocentrismo ocidental, deveria ir lá investigar a realidade da Shanya e apontar que talvez os últimos momentos da infância dela deviam ser mais como os meus e menos como os dela? Teve gente que me disse que não, que eu não deveria fazer esta reportagem.
Uma antropóloga cigana europeia, que não se sentiu confortável para ter seu nome citado aqui, me disse, inclusive:
“Você não quer estigmatizar os Romani (ciganos) para além do preconceito que eles já sofrem, mas focar no casamento infantil entre eles vai acabar fazendo exatamente isso. Além do mais, os Romani são um grupo extremamente heterogêneo e as práticas de algumas famílias não representam a de toda a nação.”
“Se há casos de casamentos infantis, ele devem ser isolados porque esta não é a prática geral. Na minha família, por exemplo, ninguém apoiaria um casamento de pessoas com menos de 18 anos”, completou.
Essa inteligente e crítica ativista cigana fez com que minha editora e eu hesitássemos e reavaliássemos toda a reportagem. Mas decidimos prosseguir e eu vou explicar o porquê: por que esta não é uma questão apenas da cultura cigana – na Europa, por exemplo, esta já não é mais a prática. E não sejamos hipócritas, casamento infantil era praxe entre meus avós que não eram ciganos, mas italianos, (e talvez os seus também) e pra maioria do mundo até uns 80 a 100 anos atrás.
Esta, na verdade, é uma questão de segregação, racismo e ausência de interesse do poder público.
Porque a principal diferença entre minha infância e a de Shanya é que ela não tinha muitas possibilidades pra almejar além do casamento. Ela não poderia ter muitas carreiras, porque aos 13, tinha largado a escola pra casar e a Secretaria de Educação ou de Serviços Sociais local não deram estímulos para que os pais a mantivessem estudando – ou, como alternativa, tampouco estimularam o debate sobre sua liberdade sexual. Shanya não podia sequer ter um emprego numa vendinha, porque todo mundo ali acha que cigana é tudo ladra e sequestradora de bebês. No máximo, serviria só pra ler mãos ou agiotar – ou casar e ter filhos aos 14.
Os preconceitos dos “brasileiros” – como chamam os ciganos, assim, em terceira pessoa porque eles não se sentem incluídos – e o descaso do governo com práticas que muitas ciganas, como Rebecca Taina, chamam de violência e não de cultura tinham deixado a felicidade de Shanya confinada ao casamento. Foi essa combinação que não deixou que a comunidade cigana de Boa Vista do Tupim fizesse as mesmas mudanças que as nossas avós e bisavós fizeram ao longo do último século. Essa argumentação convenceu até a ativista cigana que, inicialmente, se opunha à reportagem.
Aliás, a invisibilidade do povo cigano é tão tão grande, que quase ninguém sabe que eles também foram exterminados em campos de concentração pelos nazistas. Pois é. Dois milhões deles morreram no Holocausto.
E não que eu ache que casar não possa realmente fazer alguém feliz – sei bem da alegria que o meu próprio casamento me proporcionou, 13 anos após a minha última boneca. Mas acho que se os sonhos forem ganhar fronteiras, elas deveriam ser desenhadas por coisas mais bonitas que preconceitos. No meu delírio, Shanya poderia escrever as bordas das próprias aspirações e deixar que a filha fizesse o mesmo, em vez de ter o mundo mastigado pra si aos 5 meses de vida.
Ela deveria ter escolhas. O direito de seguir uma cultura própria, claro, mas também o de fazer diferente, se quisesse.
Quando perguntei à secretária de serviço social de Tupim qual era a política do governo pra prevenir o casamento infantil entre ciganos, a mulher tomou um susto. “Veja só, não é que você me deu uma ideia e uma provocação?”. Ela nunca tinha pensado nisso, mesmo que, durante a maior parte de sua vida, meninas ciganas de 12 ou 13 anos largassem a escola, inexoravelmente, pra casar. Ela também não sabia que o Brasil era líder em casamentos infantis na América Latina.
E nós, aqui, nos sentindo muito “evoluídos” com relação aos ciganos, ainda permitimos que exista uma lei que autoriza o casamento a meninas de 9 anos, desde que estejam grávidas. Uma lei. Que legaliza o estupro infantil.
E ninguém deu a essas mulheres ferramentas para se auto-organizar. Porque existem grupos de feministas ciganas na Europa, mas não no Brasil.
Quem está investindo (recursos mesmo) na organização desses grupos de mulheres aqui no Brasil e, especialmente, no sertão baiano, para que elas mesmas sentem, conversem e decidam que mudanças elas querem ver na própria comunidade?
“Os últimos governos nos davam apenas status consultivo, e status consultivo não significa nada”, reclama Nicolas Ramanush Leite, presidente da ONG Embaixada Cigana do Brasil. “Gastavam muito dinheiro consultando e pouco com resultados efetivos. Em vez disso, o governo poderia atuar empoderando grupos militantes ciganos e tendo políticas públicas voltadas em particular ao grupo calon, que está mais marginalizado.”
É, parece que a questão vai mesmo além da cultura. Mas Shanya parecia feliz, eu juro! Que coisa difícil é esta da felicidade. A Shanya dizia que não tinha sonhos e era feliz sem sonhar. Será que sonho é coisa boa ou sonhos só nos angustiam? (eu que sei o quanto o peso dos meus me deixam prostrada de vez em quando, temerosa de eles sempre correrem mais rápido do que meus pulmões asmáticos podem alcançar).
E enquanto os filósofos se dedicam a responder a essa questão tão complicada da felicidade, eu vou teimar com minha visão (simplória?) de que Shanya deveria ter escolhas delimitadas por ela mesma. E que, talvez, ela devesse ainda brincar escondida das amigas de vez em quando e sonhar com uma cadeira seja lá onde quisesse estar, na sala de casa, no caixa do supermercado ou na prefeitura de Salvador. Ou no Conselho do Prêmio Nobel. Mas, principalmente, que não deveria ter destino algum escrito pra sua filhinha antes dela engatinhar.
Me perdoe, Shanya, porque eu, até pouco, também não sabia que o Brasil era líder em casamentos infantis e nunca havia pensado sobre o preconceito que te obriga a um único destino possível. Eu sequer conhecia a história dos ciganos. Minha tentativa de pedido de desculpas é esta reportagem.
* Nomes fictícios para proteger a identidade de menores que são, segundo a lei brasileira, vítimas de casamento infantil.