

Por Luciana Veloso
* Auditora-Fiscal do Ministério do Trabalho, Mestre e Doutoranda em Direito Político e Econômico, voluntária na Associação ARTEMIS, autora de “Riscos Psicossociais e Saúde Mental do Trabalhador” e uma vencedora diante de uma situação de assédio moral
D esde que iniciei a minha luta contra o assédio sexual e moral nos ambientes de trabalho conheci muitas pessoas inspiradoras que viveram situações de assédio e, a partir de então, passaram a combatê-lo. Uma delas foi Regina Célia Leal, que militava arduamente contra o assédio moral. Regina trabalhava como técnica de laboratório da Faculdade de Medicina da USP, onde foi vítima de assédio moral por duas décadas. Após 11 anos de luta judicial, em 2011, a USP foi condenada a pagar uma indenização por danos morais à Regina, mas os prejuízos psicológicos causados por aquela situação de abuso já tinham se instalado com força demais em sua psique. No dia 15 de outubro de 2014, após uma série de afastamentos por depressão, Regina ingeriu uma substância química em seu local de trabalho e tirou a própria vida.
Hoje ela se tornou símbolo dessa luta. Há uma petição no site de petições Avaaz para que seja aprovada a lei federal de combate ao assédio moral – o projeto leva o nome de Regina Célia. O caso de Regina, contudo, não está isolado, infelizmente. Não raras vezes o assédio moral leva ao suicídio e isso não necessariamente acontece durante ou logo após o término da situação de assédio, embora possa acontecer nesse período também.
Temos que entender que o assédio moral e o assédio sexual são violências. Ou seja, eles têm as mesmas consequências que outros tipos de violência podem ter. A tortura ou violência psicológica está frequentemente associada ao chamado Transtorno de Adaptação e, dependendo das situações vivenciadas no ambiente de trabalho, também pode ser causa de reações mais agudas como estresse pós traumático, que é um transtorno que se caracteriza pela lembrança de forma rotineira das situações traumáticas com toda a carga negativa original. São os chamados “flashbacks” que impedem que a pessoa leve uma vida normal, além de se apresentarem por vezes juntamente com outros problemas mentais como a depressão ou ansiedade patológica.
Um pouco de história
Nas últimas décadas houve uma série de mudanças no ambiente de trabalho que aumentaram os riscos de os funcionários desenvolverem doenças psicológicas, como a cultura do “cada um por si”, que estimula uma competição selvagem, ou alguns modelos importados do Japão, que exigem dos trabalhadores uma eficiência similar à da máquina. São o que eu chamo de riscos psicossociais. Eles podem ser coisas como baixa qualidade da liderança, tarefas repetitivas, falta de controle sobre o trabalho, falta de perspectivas ou estagnação na carreira, dupla ou tripla jornada de trabalho, falta de suporte social com filhos e idosos (o que atinge em cheio as mulheres por serem sobrecarregadas com o cuidado), ciclos curtos de trabalho, falta de clareza de objetivos, conflito de papéis e funções, carga qualitativa insuficiente, pouca carga de trabalho ou sobrecarga quantitativa, pouca participação em processos decisórios, competição extrema, assédio organizacional, cultura do cada um por si, exposição contínua a clientes ou grupos de consumidores, isolamento físico e social, comunicação insuficiente/ineficiente, apenas para citar alguns riscos dentre tantos outros.
Entre todos esses riscos se destacam os casos de assédio. É importante ter em mente que todos os tipos de assédio (moral, sexual e organizacional – sendo este último caracterizado pela cobrança abusiva de metas que muitas vezes são inatingíveis, de forma institucionalizada) representam riscos psicossociais que podem estar presentes no ambiente de trabalho. E minha prática profissional no atendimento de denúncias de assédio moral me mostrou que as organizações em que exitem mais daqueles primeiros riscos que citei, as situações de assédio também são mais comuns. Por exemplo, a baixa qualidade da liderança e a comunicação insuficiente geram um terreno fértil para que comecem a acontecer situações que se caracterizam como assédio moral.
Uma série de doenças mentais podem surgir em decorrência disso. Nos estudos que fiz para meu livro, identifiquei as mais comuns entre elas: depressão, transtornos de ansiedade, transtornos de adaptação, estresse pós traumático, suicídios e tentativas de suicídios.
O recorte de gênero
Muitas leis nacionais e internacionais já reconheceram que esse tipo de assédio afeta as mulheres de forma particular. A Convenção de Belém do Pará, por exemplo, tipifica como uma das formas de violência contra a mulher a violência física, sexual e psicológica ocorrida no local de trabalho.
Naturalmente as mulheres não são as únicas vítimas, mas em termos proporcionais, podemos dizer que representam a maioria esmagadora das vítimas de todos os tipos de assédio. A ocupação do espaço público pelas mulheres tem sido historicamente marcada por muita violência. É preciso ter em mente que o meio ambiente de trabalho é, por excelência, uma extensão do espaço público. Há muita reação – às vezes sútil, às vezes aberta – contra a entrada das mulheres no mercado de trabalho.
Veja alguns exemplos. No Núcleo de Combate ao Assédio Moral do Ministério do Trabalho em São Paulo, a quantidade de denúncias que chegam de mulheres que passaram a sofrer assédio após engravidarem (durante ou após o nascimento de seus filhos) é enorme. Salta aos olhos como o fato de engravidar aumenta consideravelmente as chances de que uma mulher venha a ser vítima de assédio moral em seu ambiente de trabalho.
No que diz respeito ao assédio sexual, a esmagadora maioria de vítimas são as mulheres. Segundo a Força Sindical, o assédio sexual é o segundo maior problema enfrentado pelas mulheres no ambiente de trabalho, ficando atrás somente dos baixos salários. O Sindicato das Secretárias do Estado de São Paulo (Sinesp) realizou pesquisa com suas filiadas e, destas, 25% disseram ter sido assediadas sexualmente pelos chefes. No trabalho doméstico, o assédio sexual é também especialmente comum. Uma situação bastante frequente é aquela em que a mulher, após ser vítima de assédio sexual, por não ceder às investidas passa a ser hostilizada se tornando vítima de assédio moral. Isto ocorre não apenas no setor privado, mas em órgãos públicos e corporações como por exemplo nas Forças Armadas ou mesmo na Polícia Militar.
A mulher que se encontra exercendo atividades em setores considerados como masculinos também tem maiores chances de sofrer assédio. Isso porque ela é vista como supostamente roubando o lugar de um homem e exercendo uma atividade para a qual não teria talento natural simplesmente pelo fato de ser mulher (exemplos: metalurgia, mercado financeiro, construção civil).
Vale mencionar ainda as mulheres trans, as mulheres negras, as mulheres lésbicas e as mulheres em posição de liderança que também se encontram em situação particular de risco. Estas últimas são vítimas do machismo de seus pares que podem ter dificuldades de serem chefiados e liderados por uma mulher. Portanto, o simples fato de ser mulher aumenta significativamente a chance de sofrer assédio de qualquer natureza no ambiente de trabalho. Se a mulher ainda está em situações que se associam com maior frequência a assédio como a de uma gravidez ou o fato de estar em posição de destaque na empresa, a chance de que isso venha de fato a acontecer é realmente muito alta.
Como se desligar de uma situação deste tipo
Se desligar de uma situação de assédio pode ser, em princípio, muito difícil para a mulher. O conselho que eu sempre dou em palestras é que a vítima de assédio procure uma válvula de escape. Em outras palavras: é necessário buscar ajuda de um terapeuta ou de alguma pessoa com quem se possa desabafar e explicar o que está acontecendo. A razão para proceder inicialmente desta forma é simples: o assédio de qualquer natureza muitas vezes desestrutura psicologicamente a vítima. Desta forma, ela pode adoecer rapidamente (se já não estiver doente) ou simplesmente buscar tomar medidas que visem a solucionar a questão de forma mais radical como, por exemplo, através de um pedido de demissão – o que muitas vezes pode trazer ainda mais problemas para a pessoa que já está abalada.
Tendo o apoio de um terapeuta, por exemplo, a vítima pode começar a raciocinar com mais clareza para então fazer o que considero um segundo passo para enfrentar este tipo de situação: a elaboração de um dossiê. Em uma pasta, a pessoa deve juntar relatos de todas as situações de constrangimentos e humilhações sofridas, se havia alguma testemunha, a data e local dos fatos. Essas evidências podem incluir e-mails, ligações telefônicas ou mesmo conversas (pode ser necessário usar um gravador ou um celular que possa fazer as vezes de um). Esta coleção de provas passa então a constituir um trunfo.
É aí que entra o terceiro passo que pode ser procurar um advogado para aconselhamento jurídico a respeito das formas de agir (uma das possibilidades seria, por exemplo, abrir uma ação judicial com pedido de indenização por danos morais, além da chamada rescisão indireta do contrato de trabalho, também popularmente conhecida como a justa causa no empregador); outra possibilidade seria a denúncia formal perante órgãos próprios da empresa ou órgão público (ouvidoria, auditoria interna, corregedoria, recursos humanos). Optar por este caminho depende muito da instituição na qual a vítima trabalha e o quanto essa instituição leva adiante a apuração de denúncias e a punição dos acusados de praticas de assédio. Existem muitas instituições que “abafam” o caso e não fazem absolutamente nada em relação à situação. Por outro lado, existem instituições que são seríssimas a esse respeito e têm por hábito apurar os fatos e punir de forma séria os envolvidos, inclusive com demissão.
Não há uma fórmula mágica. Se a situação tiver uma magnitude coletiva, isto é, se atingir uma quantidade maior de vítimas pode ser interessante denunciar ao Ministério Público do Trabalho. Por fim, qualquer situação de assédio pode ser denunciada no Sindicato da Categoria ou na Superintendência (dependendo da cidade, será na Gerência) Regional do Trabalho. O atendimento da denúncia não é garantido em virtude do quadro exíguo de Auditores-Fiscais do Trabalho (AFTs) bem como também da falta de conhecimento e intimidade com o tema por parte da grande maioria (questões como trabalho infantil, trabalho escravo, terceirização irregular e fraudes contratuais fazem parte da rotina e do dia a dia desses profissionais há mais tempo, sendo o assédio moral um tema ainda novo para esta categoria de servidores na qual eu me incluo como uma exceção).