“Nem com o marido preso a mulher tem sossego”. O comentário, em uma rede social, dizia respeito à notícia do assassinato de Karina Braga Soares, de 27 anos. Ela foi morta em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, em dezembro de 2019. Segundo o boletim de ocorrência, Karina não suportava mais a rotina de visitar o companheiro que cumpria pena por homicídios em um presídio a 230 quilômetros de distância de casa. Ela tentou terminar o relacionamento e o ex-companheiro tornou-se o principal suspeito de mandar matar a mulher na frente dos filhos de 2 e 8 anos.
Mais do que falta de sossego, as mulheres não escapam da violência doméstica mesmo quando os homens estão dentro de penitenciárias. Os muros prisionais são incapazes de conter as agressões que, no caso delas, significam ameaças, tortura e controle, quando não custa a própria vida. Elas sofrem caladas, com medo. Sem denúncias, esses casos não estão nas estatísticas de violência doméstica nem de feminicídios.
Se a aplicação da Lei Maria da Penha e a prevenção ao feminicídio ainda são um desafio no Brasil, as dificuldades aumentam quando esses casos cruzam com o crime organizado. “Essas mulheres estão mais desprotegidas, elas não vão ter acesso a lei como nós gostaríamos que tivessem, nem aos serviços de ajuda e às políticas públicas”, afirma a socióloga Wânia Pasinato, do Núcleo Pagu de estudos de gênero da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), referência em questões de gênero e enfrentamento à violência contra a mulher no país.
Morta por um telefonema
Esses agressores presos que possuem contatos do lado de fora da prisão normalmente pertencem ao mundo do crime organizado. Nas mãos deles, um aparelho de celular torna-se uma arma poderosa. Foi assim que Edjane da Silva foi morta aos 31 anos.
Seu companheiro recebeu fotos dela dançando forró com outro homem enquanto ele estava em uma cela no Presídio Advogado Brito Alves, em Arcoverde, sertão de Pernambuco, por ter tentado matar uma ex-companheira. Aprisionado, ele sabia tudo que ela fazia na rua e a controlava pelo celular. Ele é o suspeito de ter mandado matá-la, em uma cena parecida com o caso de Karina: na porta de casa, na frente dos filhos.
“O presídio não impediu que ele fizesse isso, ele comandou tudo aqui fora, através de um celular”, contou a irmã de Edjane, Ejany da Silva. O relacionamento deles durou oito meses e Ejany conta que a irmã negava que sofria ameaças, mas que acredita que Edjane mentia para tentar proteger a família. “Ela vivia chorando. Ele ligava e ela tinha que sair correndo para atender.”
Leia mais: Atendimento à violência doméstica muda em meio à pandemia
É só acordar e olhar para a rua que Maria Olizete da Silva lembra da morte da filha Edjane. O presídio em que o ex-companheiro permanece preso fica em frente à casa dela. Olizete ainda não entende como um namoro, em uma penitenciária, terminou com a morte da filha. “No dia que aconteceu [o crime], ela estava se arrumando para ir visitar ele”, lembrou a mãe.
O processo de investigação foi colocado em segredo de Justiça logo após crime e a família ainda aguarda uma conclusão do caso.
Violência sem registro
Para o Estado, esse é um problema que nem existe, uma vez que não se tem dados sobre ele. A reportagem procurou as secretarias de Segurança Pública brasileiras para saber se os assassinatos de mulheres com acusados ou suspeitos mandantes presos são quantificados. E a resposta foi não. Da mesma forma, não há nas denúncias de violência familiar informações sobre agressores que estejam encarcerados.
Por não “existirem” oficialmente, esses crimes não são punidos nem prevenidos. Nos estudos de criminalidade isso é chamado de “cifra oculta” porque não chega ao conhecimento do Estado, segundo Carolina Salazar, pesquisadora de violência de gênero do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Avançada) e do Grupo Asa Branca de Criminologia. “Essas mulheres que têm relação com pessoas no cárcere, que são agredidas, têm mais dificuldade em relatar o abuso por não querer prejudicar [o companheiro já preso] ou por medo das represálias externas”, diz.
Leia mais: Conheça o PenhaS, app de combate à violência contra a mulher
O risco dessas mulheres serem assassinadas por alguém a mando dos companheiros presos é real, afirma Wilma Melo, assistente social e coordenadora do serviço ecumênico de militância nas prisões de Pernambuco. Ela trabalha há 25 anos com presos e seus familiares e já ouviu o desabafo de várias mulheres agredidas. “Conheço mulher que apanhava e saia da prisão toda machucada, mas ela não vai falar. Ela continua com ele e vai cumprir o papel dela na cadeia, para se manter viva, porque ele faz com que ela fique numa situação de controle do corpo dela”, conta Wilma, acrescentando que essas mulheres raramente têm algum incentivo para denunciar.
Elas lidam com homens que vivem sobre regras de condutas do sistema prisional, que possui uma série de mecanismos de controle, fidelidade, códigos, acordos e dívidas. “A prisão é um foco muito mais machista do que aqui fora. A mulher realmente é considerada posse do homem, de uma forma muito cruel e desumana”, diz Wilma.
Essas agressões cometidas dentro dos presídios expõem como a violência contra a mulher é naturalizada. “Os homens podem agredir suas mulheres, inclusive quando elas vão para a visita, e nada é feito, como se isso fosse uma questão privada do casal, ninguém vai se meter naquilo. O que importa é que ele está preso por tráfico”, afirma a socióloga Wânia.
“Marchar cadeia com eles”
“Presas” aos homens que cumprem pena, as mulheres “marcham cadeia” com seus companheiros – expressão usada por elas e que traduz uma rotina de obrigações com o cárcere e manutenção do relacionamento. “Eles estão presos e acham que as mulheres também têm que estar”, diz Raíssa (nome fictício para preservar a identidade da mulher), de 26 anos, que namorou por três anos um homem que cumpria pena.
Um dia, ele soube que ela estava se divertindo na rua.”Ele xingou aqueles nomes feios, falou que ia mandar me matar”, conta Raíssa. E se ela não atendesse aos telefonemas, ele ligava para toda a família até achá-la. Ela não podia faltar a nenhuma das visitas e foi em uma delas que engravidou. Nas redes sociais, ela encontrou grupos de mulheres que vivem a mesma realidade que ela, onde encontram um espaço para desabafar e se ajudar.
Raíssa já era agredida pelo namorado em casa quando ele vivia em liberdade. Ao ser preso, a mãe de Raíssa achou que isso garantiria alguma tranquilidade à filha e à sua família. “Cansei de ir desesperada atrás da minha filha porque ficava sabendo da briga, estava vendo a hora de ele matar ela, não aguentava mais isso”, confidenciou. Mas a paz só veio mesmo quando ele foi assassinado por rivais em casa, pouco depois de progredir para o regime aberto.
Ouça o podcast dessa reportagem:
Uma vez que a violência se instala, ela costuma não cessar quando o homem é preso. Isso aconteceu também com Raquel Maria da Silva, 38 anos. Durante 11 anos, ela sofreu diversos tipos de agressão do marido: física, sexual e psicológica. Ele foi preso por roubo, mas continuou aterrorizando a vida dela de dentro da cadeia.
“Eu voltava para ele porque ele ameaçava a mim e à minha família, dizia que ia me entregar morta dentro de uma mala para minha mãe”, conta Raquel. O ex-marido chegou até a incendiar a casa em que ela vivia com as filhas do casal. Após a tentativa de feminicídio, ela o denunciou.
“Ele não me deixava em paz. Nas cartas que vinham do presídio, os agentes prisionais liam, ai ele não podia ser tão direto nas ameaças. Escrevia que me amava e que ia voltar para mim quando saísse.”
Leia mais: SUS pode deixar de ser porta de saída da violência
Raquel foi mais uma que só se viu livre quando ele foi assassinado, na favela em que estava morando, por envolvimento com a criminalidade. Hoje, ela participa de um grupo de apoio em Belo Horizonte chamado “Mulheres em Evolução”, pois acredita no poder de compartilhar as dores e as histórias para fortalecer outras mulheres. “Quem fala que é fácil, nunca passou por isso. Nesse tempo, a morte pra mim era lucro, porque eu vivia uma vida muito desgastada com ele.”
Vítimas sob julgamentos
Mulheres vítimas de violência, em geral, já são julgadas por manterem os relacionamentos em que são agredidas. Quando a relação é com uma pessoa envolvida com o crime, esse julgamento costuma ser ainda maior. Recentemente, nas redes sociais, uma mulher recebeu uma enxurrada de crítica por ter perdoado o companheiro, que havia tentado matá-la com cinco tiros. O vídeo dela beijando ele no tribunal viralizou nas redes sociais.
Situações como essa não são incomuns. A advogada Josilene Carvalho, da equipe de coordenação do Centro de Referência da Mulher Clarice Lispector, em Recife, conta o caso de uma vítima que ela atendeu na unidade, cuja história a marcou. Joelma (nome fictício) viu o companheiro ser preso em flagrante pela violência doméstica. No momento em que ele a agredia, uma viatura da polícia passava na rua e deu voz de prisão. Encarcerado, a pena dele aumentou porque tinha outros crimes a pagar.
Após pedidos de perdão e promessas de mudanças (fase conhecida como “lua de mel” dentro do ciclo de violência), Joelma passou a vê-lo na prisão. Como não tinha permissão para visita, uma vez que ele estava cumprindo pena justamente por agredi-la, ela burlou o sistema e entrou dizendo que encontraria outro preso – esquema armado pelo companheiro. Na penitenciária, ela engravidou dele, estava feliz e achava que ele tinha mudado. Até que o homem foi solto e, quatro dias depois, Joelma foi agredida novamente.
Grávida de três meses, ela chegou no Centro de Referência da Mulher com as pernas muito machucadas. “Ele arrancou parte do couro dela”, lembra Josilene, que a encaminhou para a rede de saúde e solicitou a prisão dele novamente. “Não é papel da gente questionar porque ela foi até o presídio, é papel da gente fortalecer essa mulher”, diz a advogada. Reconhecer que existe uma dor e pensar em saídas junto com a vítima, explica Josilene, é uma forma de ajudar a quebrar o ciclo de violência.
Presos por outros crimes
Os casos citados nesta reportagem estão relacionados com prisões por crimes de tráfico de drogas, homicídio e roubo, mas não propriamente pela violência doméstica e familiar praticada contra suas companheiras. Apenas o companheiro de Edjane estava preso por conta da tentativa de feminicídio de uma ex-companheira, o que não impediu que ele cometesse novamente o crime contra a mulher.
Pela Lei Maria da Penha, a pena de encarceramento ocorre apenas em casos extremos, quando há um flagrante grave, descumprimento de medidas protetivas e risco iminente de morte da mulher.
O homem preso por violência doméstica tem perfil de réu primário em praticamente 90% dos casos, segundo a pesquisadora Carolina Salazar. Os casos de violência doméstica que chegam à Justiça ocorrem, sobretudo, quando a própria mulher relata a agressão. E por não ser um preso envolvido com o crime organizado, ele não possui tantas facilidades no presídio. Mas, ainda assim, consegue enviar recados por meio de familiares ou cartas com ameaças veladas.
Renata Lima, delegada da mulher em Sorocaba, interior de São Paulo, conta que muitas mulheres cujos companheiros foram presos por agredí-las chegam na delegacia relatando que continuam sendo ameaçadas. Segundo ela, isso ocorre por não ter nenhuma proposta de ressignificação da violência com eles.
“Eles acabam aumentando e canalizando o ódio contra a mulher que o colocou na cadeia, pois eles não se sentem culpados e acham que ela está prejudicando a vida dele, e querem se vingar”, afirma a delegada. “É preciso trabalhar essa questão nos presídios, porque eles agridem e, quando são soltos, voltam para casa como se nada tivesse acontecido.”
Uma lacuna com os homens
Além da proteção das mulheres, a Lei Maria da Penha recomenda que os governos (em todas as esferas) criem e promovam centros de educação e de reabilitação para os agressores. Também prevê que o juiz pode determinar o comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação. Mas isso ainda está longe de ser realidade.
A reportagem procurou os Tribunais de Justiça dos 26 Estados e do Distrito Federal. Destes, 14 responderam que tinham algum tipo de projeto focado em homens agressores: Rondônia, Roraima, Pará, Maranhão, Bahia, Sergipe, Rio Grande do Norte, Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. São ações pontuais que abrangem grupos reflexivos, atendimentos terapêuticos e trabalhos educativos. “Pela experiência que tenho em várias regiões do país, há boas práticas locais, mas são escassas”, diz Carolina Salazar, que pesquisa o tema no Brasil.
Trabalhar com grupos reflexivos para homens autores de violência é condição para mudança e transformação social na avaliação da socióloga Wânia Pasinato. “É uma tarefa urgente que já tarda. Uma discussão que começou a ser feita e foi abandonada.”
Leia mais: Casa, um espaço para o feminicídio
Com isso, a atuação institucional tem sido apenas punitivista com os agressores, sem um trabalho de prevenção e educação. “Não foi para isso que boa parte do movimento feminista trabalhou ao longo das últimas décadas no país, mas para termos um olhar para as respostas preventivas e promoção de direitos, muito mais do que a criminalização”, destaca a socióloga.
“O Judiciário se interessa muito pouco em se articular com a rede de enfrentamento à violência doméstica”, avalia Carolina Salazar. Para a pesquisadora, só a penalização não está gerando efeito positivo sobre esses homens. “Precisamos pensar formas melhores de resolver o problema”, pondera.
A punição, por si só, não muda a forma como esses homens compreendem a violência que praticaram. O caminho é discutir igualdade de gênero desde a primeira formação das crianças, conclui Wânia, para que meninos e meninas cresçam numa sociedade que fomenta a igualdade entre homens e mulheres, e não a violência.
Essa reportagem foi produzida pela Bolsa de Reportagem AzMina Especial Violência Doméstica, realizada em parceria com o Volt Data Lab