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Terapia sem recorte racial afeta saúde de mulheres negras

Pessoas negras atendidas por profissionais negros e brancos contam suas diferentes experiências de tratamento

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A contadora Ana Carolina, 36, procurou a terapia depois de viver vários episódios de racismo dentro de um relacionamento inter-racial. As consultas psicológicas foram agendadas com uma profissional branca que atendia pelo plano de saúde numa região próxima à casa dela. Logo nas primeiras conversas, Ana começou a sentir um incômodo difícil de nomear. Gostava da terapeuta e se esforçava para estar ali emocionalmente, mas não conseguia se sentir à vontade para falar tudo nas sessões. “Existia um muro entre a gente”, lembra Ana. 

Levou um tempo para que ela conseguisse se abrir. Começou citando frases que ouvia do ex-namorado: “se fosse na época da escravidão, você ia receber muita chicotada”; “eu ia ser o seu o senhor e você ia ser minha escrava”; “você tem que fazer as coisas domésticas, porque é mulher”… Depois, Ana desabafou com a terapeuta sobre como ela era sempre colocada num lugar de “empregada” nessa relação. Estava traumatizada. 

Os ataques não vinham só do companheiro, mas de todas as pessoas ligadas a ele, que conviviam com os dois. Ambos vinham de origem simples e moravam na Bahia, mas Ana era de um núcleo familiar predominantemente negro, diferente do companheiro e seus familiares – todos brancos.

Falar do que viveu nesse relacionamento exigia coragem. Na terapia, Ana esperava acolhimento diante dos casos de racismo, mas o que ouviu foi: “não é porque você é negra, é porque você é mulher.” Logo em seguida, a terapeuta (branca) contou da vez que trançou o cabelo para o carnaval e foi “discriminada”.  Ana ficou sem reação. “Ela me silenciou.” Embora achasse absurdo o que tinha ouvido, não conseguia se expressar. 

“Ela me colocou no lugar da preta raivosa”

Com a chegada da pandemia, as sessões passaram a acontecer de forma online. Num desses atendimentos, Ana compartilhou com a psicóloga sobre a tranquilidade que estava sentindo na própria rotina, apesar do terror instalado pela Covid-19. Disse que estava conseguindo cuidar mais do cabelo, desembaraçando com mais paciência. Foi quando ouviu da terapeuta: “mas desembaraça?”. Ao apontar a fala racista por parte da profissional, Ana sofreu uma nova violência. “Ela me colocou no lugar da preta raivosa.”

Hoje, em terapia com uma mulher negra, Ana Carolina vem tratando o que viveu fora e dentro do processo terapêutico. Filha de uma mulher negra e mãe solo, Ana ficou com a responsabilidade de cuidar dos irmãos. No atendimento com a psicóloga anterior, sua mãe era vista apenas como alguém que sobrecarregou uma criança. Com a nova terapeuta, ela conseguiu compreender melhor a situação. “Não foi um abuso de trabalho infantil, né? Teve um contexto. Foi a forma que minha mãe encontrou para dar dignidade para a gente.”

Leia mais: Cada passo importa: mulheres contam como romperam com relacionamentos violentos

Consequências do racismo no divã

Numa representação de 17 páginas, Ana Carolina fez a denúncia contra a antiga terapeuta no Conselho Regional de Psicologia (CRP) da Bahia. A profissional levou uma advertência, que não impede o exercício da profissão, e precisou assumir a responsabilidade de estudar antes de atender outra pessoa negra. A suspensão e a cassação profissional só são consideradas em casos de reincidência, e, mesmo assim, após serem analisadas. 

Ana não foi a única vítima de situações com essa. Estudiosos sobre saúde mental e população negra têm apontado as violências que podem acontecer quando o psicólogo não tem letramento racial.

A psicanalista Jaqueline Conceição considera que os problemas vão além das violências mais diretas, como no caso de Ana. As falhas na prevenção e no diagnóstico de doenças mentais são consequências graves do que profissionais sem preparo podem cometer com pessoas negras no processo terapêutico. 

Um dos exemplos desse erro é o diagnóstico do transtorno de personalidade borderline, em que são comuns características como raiva e agressividade. Jaqueline Conceição observa que a doença tem uma grande incidência entre pessoas negras, mas o quadro nem sempre é considerado nos atendimentos. O motivo tem a ver com a ideia coletiva – e falsa – de que pessoas negras são naturalmente raivosas, então quando esse comportamento aparece é visto como um “traço de personalidade”.

Atendendo pessoas negras diariamente em seu consultório, Jaqueline observa que muitos pacientes desenvolveram a doença depois de viverem um trauma. Entre todas as histórias que já ouviu dentro da clínica, a violência sexual é a que mais aparece como disparador para o transtorno. No Brasil, mulheres negras estão mais vulneráveis a esse tipo de crime

Dados colhidos entre participantes de um estudo da Elsa-Brasil, mostram que mulheres pretas e pardas representaram 79,5% dos casos de transtornos mentais. A publicação faz um cruzamento entre a saúde mental e física dos participantes e suas raças. Em todos os indicadores de comorbidades, as pessoas negras concentram os piores índices.  É parte da prevenção e cuidado, o reconhecimento dessa realidade. 

Atendimento sempre ficava nas bordas

A paraense Gabriela Araújo define os atendimentos que tinha com a sua psicóloga como “aquele primeiro pezinho na água”. Toda vez que levava para a terapia incômodos relacionados a ser mulher negra, ela sentia que os assuntos não eram recebidos com aprofundamento. “Talvez por falta de repertório, de vivência, pela terapeuta não se sentir segura, ter medo de falar alguma coisa”. Fazia falta um olhar mais preparado. 

Gabriela é uma mulher negra, filha de pais brancos, e neta de um homem preto. As questões de raça dentro de casa não eram discutidas. A terapia seria o único lugar onde  via abertura para pensar a própria identidade e história, mas no atendimento a solidão persistia. A psicóloga se preocupava com essa lacuna e às vezes perguntava se Gabriela se sentia compreendida. “Eu dizia a ela: acho que não consegues entender 100%, mas eu entendo que tu tá te esforçando.” 

Conforme as questões de raça ficaram mais complexas, foi preciso romper. Hoje ela é atendida numa clínica voltada para mulheres negras. A experiência moldou também a forma com que Gabriela, que também é psicóloga, passou a atender suas pacientes. Tanto pessoas negras, quanto brancas frequentam seu consultório. Mas todos os atendimentos têm recorte racial. “Quando eu atendo pessoas brancas, eu não tenho como não pensar sobre recorte de classe, raça e gênero.” 

Mas basta ser um psicólogo negro?

Para a publicitária Nathália Barreto, o letramento na clínica não depende da raça do profissional, mas da dedicação. Com 20 anos, ela aceitou a indicação de uma colega de trabalho e começou a fazer terapia com uma mulher branca. O período era de mudança. Ela tinha saído da casa dos pais, terminado uma relação tóxica e vivido o falecimento da cachorrinha de estimação. O baque gerou um quadro depressivo. 

Nathália buscou alguém que trouxesse luz para a situação. Mas a sensação pós-consulta era sempre de não ter sido ouvida. Quando não era isso, sentia que a terapeuta a colocava num lugar infantilizado. Os incômodos a levaram a procurar outra profissional. “Queria alguém que combinasse comigo, sem perceber que esse combinar era a raça”.   

Na época, ela passava por uma transição capilar. E entendia, aos poucos, a própria identidade e raça. Ao ser atendida por uma mulher negra, houve uma identificação imediata. Mas a diferença de letramento racial entre as duas, com o tempo, começou a aparecer de um jeito ruim nas consultas. Nathália estava começando a entender a própria identidade, enquanto a profissional parecia já avançada na discussão. “Eu percebia que ela tentava me tirar, com um certo desespero, do lugar onde eu estava.” 

Outro incômodo que tinha, era a sensação de que a terapeuta conduzia todos os assuntos para a raça. O que lhe gerava o sentimento de que os fatos não estavam sendo analisados em sua completude. “Saí de um atendimento que não tinha esse olhar [com letramento racial] para outro que tinha muito”, lembra Nathália.   

Nos meses seguintes, Nathália acabou encontrando o conteúdo de uma psicóloga branca no Instagram e gostou. No novo consultório, a questão de raça foi abordada de maneira empática e delicada. Ela percebe que há um comprometimento da psicóloga não só com as questões raciais, mas também com o que importa e compõe a sua realidade. “Ela me traz escritoras, filmes e referências que eu estou acostumada”. A terapia segue firme há três anos. 

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Não é baixa autoestima, é falta de recorte racial

A sensação de não terem coisas relevantes para dizer é mais um dos sintomas que atravessam a saúde mental de pessoas negras no consultório – e que tem a ver com o racismo estrutural. Por acharem que tudo que sentem é menor, muitas nem procuram o tratamento.  A importância de um processo terapêutico com letramento racial está em se debruçar tanto nas questões subjetivas da pessoa, quanto nas sociais. Fazendo com que o paciente entenda de onde vem essa insegurança e resgatando a autonomia. 

“Pessoas negras sentem que só podem falar coisas que pessoas brancas querem ouvir. Falas autônomas, críticas, não são bem-vindas”, explica a psicanalista Jaqueline Conceição. E isso pode ser agravado ou atenuado a depender da condução do profissional. 

Quando não é visto com o recorte de raça, esse tipo de insegurança pode ser reduzido a baixa autoestima, ou a comportamentos como o “fenômeno da impostora” – algo que pode acometer todas as mulheres, pois tem a ver com o machismo -, que é quando a pessoa acredita que não tem conhecimento ou autoridade para falar de determinado tema, mesmo tendo total condições. 

Clínica para rebeldia

A psicanalista Jaqueline Conceição defende a “clínica para a rebeldia”. Uma forma de potencializar a pessoa até que ela consiga romper com os lugares de controle do racismo em sua vida. Como exemplo, ela cita o atendimento que fez com uma paciente. A mulher havia entrado na sessão dizendo que tinha passado o sábado inteiro limpando a casa “como todas as mulheres negras do mundo fazem.”

Por trás da fala, Jaqueline notou como a mulher estava reproduzindo a ideia de que o corpo negro serve para o trabalho até a exaustão. Esse pensamento é implantado por pessoas brancas, numa sociedade colonizada. Como resposta, Jaqueline provocou a paciente: “Será que a Michelle Obama, Taís Araújo, Viola Davis ou a Iza passaram o sábado limpando a casa?”  

A ideia era fazer a paciente perceber que ela estava presa a uma ideia do senso comum, e ajudá-la a se reconectar com o próprio desejo e com a possibilidade de escolhas. “Porque se ela percebe que não são todas as mulheres negras [que passam o sábado trabalhando], ela pode fazer o que ela quiser com o sábado dela. Inclusive limpar a casa, descansar ou tomar uma”, argumenta a psicanalista. 

A origem do divã

A  psicologia surge como um braço da filosofia na Grécia Antiga (400 a.c) e se estabelece no século XX, a partir dos trabalhos do psicólogo alemão Wilhelm Wundt (1832-1920). Já a psicanálise, nasce com Sigmund Freud no século XX e com as mulheres que eram consideradas histéricas. 

“[Pacientes] cujo conhecimento da medicina falha diante de seu sofrimento, e Freud propõe um outro tipo de abordagem, que é de escutá-las”, explica a psicóloga e psicanalista Thaina Oliveira. Isso dá margem para que se construa uma teoria sobre sofrimento e constituição do sujeito. Mas trata-se de uma discussão que ocorreu em Viena, na Europa, orientada pelos valores europeus no início do século 20. 

Ainda que essa seja uma linha do tempo considerada e validada ao longo da história, inclusive pelas faculdades de psicologia, Thaina Oliveira não duvida que já tivessem outros estudos, antes e depois dessa época, que não foram considerados justamente por não estarem localizados em solo europeu. “Não se pode apostar que é uma ciência intrinsecamente branca só porque a gente não tem acesso a outra história.”

Na origem registrada, o sofrimento e pensamento de pessoas negras não foram desenvolvidos nem por Freud e nem pelos psicanalistas que vieram depois, mas no Brasil, Neusa Santos Souza, Virgínia Bicudo e Lélia González foram algumas das psicanalistas e vozes importantes contra a hegemonia. “Elas pautaram o problema do racismo como central para pensar psicanálise no Brasil e a vida do povo brasileiro não só a partir de uma perspectiva branca”, conclui Thaina Oliveira. 

Psicanálise e psicologia: berço europeu e branco; resistência e produção intelectual negras 400 a.c: a psicologia surge como um braço da filosofia na Grécia Antiga; 1879: filosofia e psicologia começam a ser diferenciadas. O marco é a fundação do primeiro laboratório de psicologia experimental na Universidade de Leipzig, na Alemanha, pelo psicólogo Wilhelm Wundt (1832-1920); 1882: a psicanálise surge com Sigmund Freud e com as mulheres que eram consideradas histéricas. Ele propõe que elas sejam ouvidas, como forma de tratamento; 1930 em diante: Virgínia Bicudo, Neusa Santos Souza e Lélia González começam a pautar o racismo como central para pensar psicanálise no Brasil e a vida do povo brasileiro, expandindo uma discussão que antes passava apenas por uma perspectiva branca.

Formação sem estudo sobre raças

As faculdades que formam futuros profissionais não abordam suficientemente questões de raça e gênero, de acordo com o Conselho Federal de Psicologia (CFP). “Muitas delas passam de forma muito tangencial pelos debates”, diz Alessandra Santos de Almeida, vice-presidente do CFP.  

Na ausência de conteúdos focados no assunto, cabe aos próprios estudantes se informarem e buscarem conhecimento. “A gente tem visto sobretudo profissionais negros, mas não somente, fazendo esse aprofundamento sobre as relações raciais, o racismo, privilégios da branquitude…”, conta Alessandra. 

A falta de preocupação sobre raça não se concentra apenas dentro das salas. Não existem dados catalogados a respeito de denúncias feitas contra psicólogos no Conselho Federal. Alessandra esclarece que o órgão é uma instância recursal, isso significa que quando as denúncias chegam, elas já passaram pelos conselhos regionais onde os profissionais estão inscritos. 

Leia mais: Você sabe o que é branquitude?

Efeitos do racismo estrutural

Os cursos de psicologia não devem preparar os profissionais só para atender, mas também para pensar a própria identidade. É isso que as vivências da geógrafa Cristiana Alves fez ela entender. Quando era bolsista num curso elitizado de uma universidade federal, ela procurou um psicólogo negro para lidar com o desafio da vida acadêmica, sendo uma mulher negra. 

A ideia era suprir a lacuna que existia nos atendimentos que ela já tinha com uma psicóloga branca. “Queria me sentir um pouco mais acolhida nas questões que eu trazia sobre raça”. O resultado, porém, foi outro. “Ele sempre me podava”, disse Cristiana. 

Hoje, ela entende que o profissional negro também lidava com os sintomas do racismo estrutural. Alguns atravessamentos refletiam no comportamento e condução dele durante as sessões. “Acho que ele não se via como tal [negro]. Ele se embranquece, alisando o cabelo”, avaliou. Atualmente, ela faz terapia com um homem branco e sente as expectativas atendidas.  

Cristiana percebe que um bom sinal no atendimento é quando o profissional consegue acolher as demandas relacionadas à raça sem perder o olhar crítico. “Para não cair num lugar de coitadismo, que pode ser uma tendência do profissional branco”, opina. 

Sofri racismo no consultório, e agora?

Se você percebeu que sofreu racismo dentro do consultório terapêutico, faça um boletim de ocorrência na delegacia mais próxima, e procure o Conselho Regional de Psicologia da sua cidade. 

Priorize fazer a denúncia no local em que o profissional atua. De acordo com a esfera federal do Conselho de Psicologia, não existe um site para consultar quais profissionais já foram advertidos pela instituição por casos de racismo, porque essas informações são sigilosas. 

O que resta são as estratégias individuais de cuidado: pesquisar sobre o profissional em sites de busca, avaliando os comentários sobre ele; perguntar sobre letramento racial nas primeiras consultas; e procurar indicações de pessoas já conhecidas. 

Leia mais: “Sua raça é resistente à dor”: mulheres relatam racismo em atendimentos médicos

Atualizações

31 de outubro de 2024 15:00

Atualização do texto para corrigir a informação de que Alessandra Santos de Almeida é vice-presidente e não presidente do Conselho Federal de Psicologia.

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