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Quem são as mulheres que querem unir religião e feminismo

Entre católicas e evangélicas, surgem grupos que recusam a submissão

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Dajaconley/Pixabay

Pensemos nas imagens e ícones que ilustram textos sagrados e nos líderes das igrejas cristãs. Relembremos, ainda: doze apóstolos, uma Santa Ceia nenhuma mulher à mesa, o papa e um Deus com uma grande barba branca.

Agora, some a essa digressão uma estatística: 40% das mulheres vítimas de violência doméstica são evangélicas, de acordo com pesquisa sobre as mulheres atendidas na Casa Sofia, ONG destinada à vítimas de violência. Diante deste quadro, é possível relegar a importância do debate da questão de gênero no ambiente das religiões? Mulheres que militam nas fileiras do feminismo e mantêm acesa a chama da crença dizem, definitivamente, que não.

Não é o questionamento da fé, mas cresce no Brasil e no mundo o movimento da Teologia Feminista, que se propõe a desconstruir conceitos da organização social da igreja. Elas se reúnem em grupos pelas redes sociais, promovem debates, escrevem livros e analisam estatísticas de violência contra a mulher para reforçar a tese da importância da participação do movimento religioso na conquista do respeito às mulheres e no tratamento igualitário entre os gêneros.

Autora do livro-reportagem “Reféns da Fé”, a jornalista e social media da Evangélicas pela Igualdade de Gênero, Daiane Mendes, narra um comportamento que se repete nas igrejas pentecostais e, aos poucos, vem se diluindo graças ao movimento de feministas cristãs. Segundo ela, em sua vivência na igreja e nas pesquisas que fez para o livro, constatou que quando uma mulher sofre violência doméstica em vez de procurar a polícia ou grupo de apoio, a vítima apenas reza.

“As irmãs fazem grupos de oração para que o marido ‘melhore’, mas isso fica entre elas. Quando a coisa está muito feia, a mulher agredida recorre ao pastor. Aí é que está o problema, porque ela não é encaminhada para um centro de acolhimento ou para uma delegacia”, afirma Daiane, que é neta de um pastor de igreja pentecostal e mora em São Paulo.

Ela critica o comportamento de pastores que orientam a fiel a aceitar a agressão. “O pastor está participando de um crime, está acobertando”, alerta Daiane.

Leia também: Polônia nos ensina: religião e direito ao aborto não são incompatíveis 

A Bíblia e o machismo

A submissão da mulher ao homem está expressa em vários versículos da Bíblia. Nos livros de Pedro, Efésios e Colossenses, a orientação que denota hierarquia nas relações é taxativa. “Como, porém, a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo submissas ao seu marido”, em Efésios 5.24.

A analista de marketing Graciela Queiroz, da Comunidade das Nações, igreja evangélica em Brasília, é estudiosa da Bíblia, mas afirma que tem o cuidado de contextualizar os ensinamentos, para driblar o machismo do momento social em que o texto foi escrito. “Eu leio a Bíblia, foi a forma como eu aumentei minha fé. Mas ela foi escrita por homens há milhares de anos atrás, e o homem coloca a mão, há a carne falando”.

“Eu acho que parte do texto foi desviado. A bíblia é muito machista”, diz Graciela.

A interpretação feminista dos versículos é apontada pela coordenadora da Frente Evangélicos pelo Estado de Direito, a fluminense Nilza Valéria. “Há passagens da Bíblia que reforçam a predominância do masculino sobre o feminino. Um desses textos polêmicos diz: esposas, sede submissas ao próprio marido. E, maridos, amai vossa esposa e não a trateis com amargura.

“Eu vejo nesse texto a mensagem de submeter-se um ao outro, em uma consonância. Mas, geralmente, só destacam a parte de a mulher ser submissa. Não debatem a orientação para o homem amar a esposa, ninguém questiona a dificuldade do comportamento masculino de amar”, observa Nilza.

O machismo do texto bíblico, segundo Daiane, deve ser visto como uma herança do Antigo Testamento, em Gênesis. Eva seria o grande exemplo da representação social do papel da mulher à época que foi interpretado como desígnio de Deus.

A companheira de Adão, criada depois, a partir de sua “costela”, deu margem para uma interpretação de hierarquia do homem em relação à mulher. “O problema não é a Bíblia, mas como ela está sendo usada. Os textos foram escritos em outro tempo, há um contexto social. Apelar para a fé de uma mulher para silenciá-la, para que aceite uma agressão, é cruel.”

Jesus feminista?

As mulheres cristãs que assumem a missão de defender o direito das mulheres acreditam ter no maior símbolo da igreja, Jesus Cristo, um advogado. A cada vez que a militância feminista é confrontada com o texto sagrado, elas recorrem à vida de Cristo e seu exemplo para desarmar os combates.
Na Bíblia, existem poucas personagens femininas de destaque. As mulheres mais conhecidas nos livros que guardam a memória e o cerne do cristianismo são as que cruzaram os caminhos de Jesus Cristo.

Nilza lembra da intervenção de Jesus no julgamento da mulher flagrada em adultério, que seria apedrejada até a morte – pena que nunca existiu para um homem que cometesse o mesmo ato. “Jesus Cristo que é nosso referencial, não objetificou ou silenciou as mulheres”, conclui. Daiane concorda: “Um dos maiores feministas que já existiu foi Jesus. Não há uma passagem da Bíblia em que ele julgue a mulher.”

No México, o grupo Católicas pelo Direito de Decidir também apela para a tolerância e o exemplo. “Jesus não promoveu o medo ou a discriminação, mas a liberdade e a responsabilidade. Quando você ouvir que a ideologia de gênero é uma ameaça, tenha cuidado: que os grupos conservadores não se metam com seus direitos e suas liberdades”, publicou a entidade, em manifesto pelas redes sociais.

 

O feminismo cristão

Feminismo e religião é um campo que tem evoluído muito nos Estados Unidos, com contribuição das ciências da religião que apontam as mulheres no lugar de consumidoras de bens espirituais e raras vezes como liderança, explica Regina Soares Jurkewicz, doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) integrante da equipe do Católicas pelo Direito de Decidir.

Apesar de as mulheres serem maioria nas funções administrativas e sociais da igreja, Regina ressalta que os postos de liderança são ocupados por homens. Esse predomínio está, atualmente, sendo questionado. “Há uma sensibilidade maior e um cansaço. A vida da igreja é muito focada para as ações femininas. O estado físico das igrejas sempre requer mulheres. No Vaticano é possível ver, porém, que elas nunca ocupam lugar nas hierarquias.”

A pesquisadora afirma que as teólogas feministas têm trabalhado para desconstruir a visão da masculinidade de Deus, em prol de relações igualitárias de gênero. “A teologia feminista não é de massa, acontece a partir de grupos pequenos. Não existe proposta de melhora imediata, é uma desconstrução da teoria tradicional, para a formação de uma que seja mais libertadora.”

As mulheres religiosas sofrem represálias quando defendem o aborto, por isso muitas restringem o debate a grupo de outras cristãs e evitam confrontos públicos. Graciela conta que seu posicionamento causa reações desagradáveis no convívio da comunidade. “Legalizar o aborto para que a mulher tenha proteção, não banalizar o aborto. Principalmente em caso que se é detectado algum tipo de problema, a gente tem que ter o direito de decidir se quer ou não prosseguir com uma gestação.”

Os críticos do movimento afirmam que ser “pró-mulher” que a luta pelos direitos das mulheres não pode ser feita em detrimento da proteção da família. Em 2012, um patriarca da igreja católica de Guarulhos acionou a Católicas pelo Direito de Decidir na justiça pedindo indenização por danos morais. O representante da igreja afirmou, na justificativa, que elas não eram católicas e solicitou, até mesmo, que o site do grupo de mulheres fosse tirado do ar.

Apesar da pressão conservadora, as mulheres religiosas e feministas estão cada vez mais engajados e trazem uma novidade em relação ao comportamento religioso. Feministas cristãs de diferentes religiões passaram a acompanhar o trabalho de debate dos grupos de gênero, em ações colaborativas. No lugar da rivalidade ideológica de grupos de católicas e evangélicas, por exemplo, as cristãs optam pela sororidade.

Entre os líderes religiosos, geralmente, as diferentes vertentes ideológicas e dogmáticas das igrejas são motivos para divergências. Dificilmente um evangélico da igreja Adventista sentaria à mesa com um evangélico da igreja Batista para falar de religião sem uma discussão. O mesmo vale para um católico praticante. No caso das feministas cristãs, como estão unidas pela causa da defesa do direito das mulheres, elas aprenderam a conviver e relevar as diferenças dogmáticas. Em vez de buscar as diferenças, tentam encontrar similaridades na fé.

No Facebook, a página do Católicas pelo Direito de Decidir reúne 38 mil adeptos. Um grupo fechado, chamado Feministas Cristãs, tem 4,8 mil membros, e a comunidade Evangélicas pela Igualdade de Gênero mobiliza 2,4 mil mulheres.

Militar pela igualdade e permanecer na igreja não é tarefa fácil, principalmente quando o tema em discussão é a liberdade de dispor sobre o próprio corpo, e o aborto. “As perguntas trazem um mal-estar, mas os questionamentos partem de um problema experimentado pelas mulheres. Ele tem que ser enfrentado”, resume a professora Regina Soares Jurkewicz.

 

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