Dizem que mulher fala mais que homem. Que mulher fala demais. Que mulher não sabe o que fala. Que mulher que se impõe, fala alto, bota a banca, é louca, desvairada, agressiva, é menos mulher. Dizem muita coisa quanto o assunto é o discurso que sai da boca delas.
As últimas manifestações políticas envolvendo figuras femininas trouxeram à tona questões profundas ligadas a como nossa fala ecoa no mundo. Mostraram, de forma cruel, que uma coisa que parece tão simples para os homens – como se colocar, se expressar – pode ter muitas nuances quando a voz que surge na sala é feminina.
Mas porquê?
Não é sobre quantidade, é sobre valor social
Tudo começa com a crença popular de que mulher fala demais.
Olhando estudos diversos, os resultados são contraditórios. Alguns dizem que homens falam mais (Universidade da Califórnia em 2007), outros que a diferença não é significativa (psicólogo social James W. Pennebaker), outros ainda que mulheres falam mais por questões biológicas e habilidades relacionadas à linguagem, e, por último, que tudo depende do contexto social, por exemplo, se o grupo é misto (Universidade Northeastern, em Boston). Todos têm especificidades e nenhum é conclusivo com relação a quantidade de fala de cada gênero.
Mas mais importante que provar quantas palavras saem da boca das mulheres por minuto é olhar para como a fala delas é colocada e recebida no mundo.
Pensando na função histórica da mulher no patriarcado – de suporte do homem, apoio, respaldo – mulher boa é, definitivamente, mulher que fala pouco. Fomos, por muito tempo, negadas à dignidade da expressão legítima, autêntica e natural.
É verdade que dependendo da época e da cultura, o silenciamento aparece com diferentes caras e justificativas. Proteção, necessidade de relegar a mulher ao âmbito privado, caracterizar o feminino como algo sagrado a ser preservado ou então nos deixar na posição de grandes conselheiras, ouvidas só em momentos importantes. Ainda, os espaços de fala públicos sempre foram masculinos, enquanto nossos lugares de expressão eram os domésticos, em meio a outras mulheres. Fechadas e delimitadas a alguns assuntos, sem microfone ou qualquer poder.
Hoje, a gente fala. Mas nossa fala ainda não é comparada à masculina. Ela segue tendo menos valor social.
Representatividade: o ciclo se retroalimenta
O ciclo se retroalimenta se olharmos por um víes de representatividade. Historicamente, tivemos menos espaços de exercício de livre pensamento e expressão social. A nós, bem mais tarde foi dado o direito de estudar e trabalhar com autonomia. Somos então minoria em várias profissões no mundo todo e ocupamos menos espaços de poder. No Brasil, somos só 4% dos postos de poder da estrutura corporativa. Na política não é diferente: em 2012, éramos 13% do total de assentos das Câmaras municipais. No Senado, somos 13 de 81 cadeiras, e na Câmara dos Deputados não chegamos nem a 10% do total das vagas. Agora, não ocupamos nenhum dos Ministérios.
Logo, estamos acostumados a ouvir falas de peso vindas de homens, como se eles fossem detentor do real conhecimento, simplesmente porque é eles que nos representam no sentido estrito da coisa. São eles lá, no holofote, ocupando os espaços públicos e exercendo poder e toda a sua potência.
Conversação não deveria ser um campo de batalha
Uma das consequências desse ciclo de poder é que a fala deles é mais apreciada, levada em consideração, menos julgada, interrompida ou descredibilizada. Por isso, as conversações às vezes são um campo de batalha pras mulheres. Temos que conquistar cada centímetro. Não é pouca coisa. É sobre dominação e política de gênero.
Um trecho do artigo Por que homens interrompem mulheres, do Daily Dot, fala sobre o assunto ao tratar de menrupting (quando homens interrompem falas das mulheres):
“O fenômeno reflete a crença que mulheres valem menos, socialmente, que homens, e que as vozes deles são mais importantes. Essa ideia é reforçada pelas punições às mulheres que são assertivas em conversações como negociações, por exemplo. Quando elas brigam de volta, são inevitavelmente tachadas de “mandonas”, “chatas”, criando um ambiente hostil que normaliza a interrupção.”
As disputas no campo da fala são tão recorrentes que, aos poucos, estão ganhado nome.
Além do mensrupting, existe o mansplaining, quando o cara explica coisas óbvias à mulher, de um jeito condescendente e desmerecedor, como se ela não fosse intelectualmente capaz de entender. Bropriating, quando um homem se apropria de ideias de uma mulher e leva o crédito por ela. E finalmente, o famoso gaslighting, violência emocional através de manipulação psicológica, por meio da qual o cara faz a mulher duvidar da sua fala, seus sentimentos, percepções da realidade e raciocínio.
“Você tá nervosa, tá de TPM?”
“Você é muito sensível.”
“Para de surtar!”
“Você está louca.”
“Nossa, falta senso de humor. Você não aceita brincadeiras.”
É comum vermos essas dinâmicas de comunicação acontecerem no dia a dia em qualquer grupo misto, de homens e mulheres. Elas acontecem também em telejornais (caso famoso de comentarista da CNN, ao falar sobre o caso Hollaback!, em Nova York), em premiações internacionais (cena viral do Kanye West interrompendo o discurso da Taylor Swift no VMA 2009) e em qualquer ambiente onde as mulheres tomam o lugar de foco e o bastão da fala.
No Brasil, vimos acontecer recentemente com as manifestações midiáticas sobre a Presidenta Dilma Rousseff, chamada de agressiva, descontrolada, nervosa e louca – numa tentativa de descredibilização e invalidação do seu discurso político.
Enquanto artififícios de linguagem que subjugam as mulheres seguirem postos e naturalizados, vai ser difícil para nós ganharmos espaços de expressão e igualarmos o jogo.
Espaços só de mulheres
Não à toa estes espaços têm surgido com velocidade. De grupos no Facebook a casas só de mulheres, passando por sites e fóruns, estamos criando todo o tipo de espaço pra nós mesmas, a partir de necessidades compartilhadas. E cada um deles têm seu valor próprio: resolver dúvidas rápidas, disponibilizar conteúdo informativo, permitir desabafos e relatos de assédios, começar discussões polêmicas ou conversas profundas e significativas.
Esses espaços nos permitem pular a parte dura da batalha e ir direto pro que interessa: trocar, abrir questões sem medo, nos identificar umas com as outras. Conexão e união são palavras de ordem. Num segundo momento, permitem que a gente aprenda com outras mulheres. Que a gente ocupe espaços de fala importantes: escrevendo textos, estrelando em vídeos, ensinando tutoriais em fóruns, relatando experiências vividas. Nesses lugares, nós somos as professoras umas das outras – e isso é bem mais poderoso do que pode parecer.
Nos dá confiança, e ganhar confiança é se empoderar. Fazer isso em círculos protegidos ajuda muito. Gera força pra depois exercitarmos essa confiança no mundo, no misto.
Também, faz com que, finalmente, sejamos referências umas das outras. E ver uma mulher nesse lugar de brilho e poder cria uma sensação incrível de que, se é possível pra ela, é pra mim também.
Foi pensando nisso, em um espaço só de mulheres, que criei a Comum. Uma plataforma e uma comunidade, que mistura textos, fórum online e encontros presenciais. Porque acredito muito em impulsionarmos os movimentos umas das outras em um local seguro e livre de amarras.
Consciência e cuidado pra virar o jogo
De qualquer modo, não é justo termos que brigar pela fala. Não é justo termos que, necessariamente, reproduzir modelos machistas para conseguirmos ganhar minutos de voz e atenção em meio a reuniões. No meio do caminho, tanto nós como outras mulheres são atropeladas e a estrutura nociva segue a mesma.
Uma pesquisa feita pela Universidade George Washington e depois por Kieran Snyder, PhD em linguística e líder de equipes na Microsoft e Amazon mostrou que mulheres não avançam em suas carreiras a partir de certo ponto se não aprenderem a interromper – ao menos em um ambiente de tecnologia dominado por homens. Isso é um reflexo de uma atitude social comum, onde elas tem que agir de modos entendidos tipicamente como masculinos se quiserem sucesso profissional:
“Interrupções nas conversações criam um ciclo que faz com que as pessoas – inclusive outras mulheres – percebam mulheres como menos importantes e passem a interrompê-las também, perpetuando a ideia de que isso é aceitável”
Por isso, precisamos manter um olhar atento para nossa linguagem para tentar romper com hábitos arraigados. Fazer o mesmo com pessoas ao redor e em espaços os quais frequentamos também é um bom jeito de desmontar padrões.
Se não fizemos isso – colocarmos atenção nas questões de fala e gênero – as conversas e os espaços de diálogo vão seguir reproduzindo o status quo: homens à frente, damas só se tivermos tempo para elas.