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A festa da sexta-feira à noite havia sido ótima para Elaine*. Ela bebeu, dançou, se divertiu. No final da noite, decidiu dormir na casa da colega do trabalho, mais próxima que a sua. Somente no dia seguinte foi que percebeu: o marido da amiga a havia estuprado durante a noite, enquanto estava desacordada pelo efeito do álcool. Passou o final de semana em pânico e, na segunda-feira, procurou a Delegacia da Mulher da cidade. Lá, ouviu foi que não havia acontecido nada, que se tivesse acontecido, ela estaria machucada. No fim, ela desistiu da denúncia e foi embora, sem provas físicas, sua palavra não tinha valor algum para abrir um inquérito.
O que aconteceu com Elaine não é exceção mas, sim, uma das principais queixas das mulheres que procuram as Delegacias da Mulher: parte-se do pressuposto de que estão mentindo.
“Por que motivos uma mulher não pode ser digna de crédito quando ela procura uma delegacia e diz que foi violentada?”
“Por que essa desconfiança deliberada em relação à palavra da mulher? Como se ela procurasse a delegacia nesses casos com a intenção de prejudicar um inocente”, questiona Silvia Chakian promotora de justiça e coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Ministério Público de São Paulo. Ela ressalta que a palavra deveria, sim, servir de argumento inicial para se dar início a uma investigação. “Eu trabalho há 17 anos com isso, nos últimos sete, exclusivamente no enfrentamento à violência contra a mulher. E eu te digo que a experiência demonstra de forma clara que o que ocorre é exatamente o oposto:
a mulher tende a minimizar os episódios de violência porque pra ela é um peso muito grande denunciar um parceiro ou ex-parceiro e não o contrário”.
Já para a delegada Laura de Castro Teixeira, da primeira DEAM de Goiânia, essas reclamações acontecem porque as mulheres não entendem o trabalho da polícia. “Acontecem casos de mulheres abrirem denúncia contra o marido para acelerar o processo de divórcio, por exemplo. Essas situações são raras, mas demonstram pra gente a necessidade de fazer uma investigação apurada. A grande maioria das situações são de boa fé, mas essas poucas que acontecem exigem da gente um cuidado maior, para evitar cometer injustiças e prejudicar um inocente”.
No entanto, vale ressaltar que o papel da polícia é investigar e não julgar. Aceitar que a denúncia pode ser verdadeira e investigá-la, para que, então, o Judiciário possa julgar o mérito. O excesso de zelo em verificar a coerência da história da mulher, na verdade, representa mais uma forma de violência, como explica a promotora Silvia: “O discurso da vitima de violencia sexual tende a ser entrecortado, até aparentemente incoerente, com lapsos de memória. Isso é muito comum, isso é próprio do pós-trauma. Mas, muitas vezes, esse agente público, que não tem essa capacitação sobre a perspectiva de gênero, tende a desacreditar, fazer questionamentos de forma exaustiva e revitimizar essas mulheres. É cobrado delas um excesso de coerência em detalhes, dificílimos de fornecer”.
Para responsabilizar o autor de um crime, é exigido um conjunto robusto de provas, mas, em muitos casos de violência doméstica e sexual, essas provas não existem. Naturalmente, não se deve condenar inocentes, mas é importante entender que se trata de um tipo de crime que tem como característica acontecer na clandestinidade, entre quatro paredes, longe do olhar de testemunhas. E as evidências, nesses casos, são de outro tipo.
A importância das provas não materiais
Um outro fator complicador é o perfil do homem que comete a violência: é um homem comum, totalmente fora do estereótipo do criminoso, muitas vezes calmo e mais coerente que a própria mulher que prestou a queixa. “Ele é um bom moço, é o colega ao lado. Mas dentro de casa, é um agressor”, diz a promotora.
Para ela, a solução seria contar com uma equipe multidisciplinar nas delegacias, não só para atendimento, mas também para investigação. Existem indicadores de violência que são psicológicos, emocionais, que podem ser verificados por psicólogos preparados para tanto e que, sim, devem servir de prova na Justiça. Ela explica que, atualmente, é comum fazer uso desse tipo de prova em denúncias de abuso de menores que também têm a mesma questão da falta de provas materiais.
Atualmente, porém, somente Mato Grosso, Paraná e Espírito Santo contam com atendimento de assistente social ou psicóloga em algumas das delegacias especializadas, segundo os dados fornecidos pelas secretarias de segurança. Para além da investigação, a presença dessas equipes é de extrema importância para que as mulheres possam romper o ciclo da violência doméstica.
Dependência emocional e financeira são o principal motivo para que mulheres continuem presas a parceiros violentos. Portanto, oferecer apoio psicológico, para que recupere sua auto estima e superer os vínculos com o agressor, e assistência social, para que possa se inserir no mercado de trabalho e encontrar alternativas para sustento dos filhos e de moradia, são essenciais para que elas saiam da situação de violência.
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